Ângela Carrato – Jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG
Uma das palavras mais desagradáveis da língua portuguesa é regular. Quase ninguém gosta de agir o tempo todo conforme as regras, as leis, as praxes. Nem pessoas, nem empresas.
Daí transgressão ser parte constitutiva – em maior ou menor grau – do ser humano e do chamado mundo corporativo.
Por outro lado, sem regulação, sem leis, sem regras, a vida se torna um inferno. Voltamos aos tempos da selva e do “homem lobo do homem”. Por isso o pai da Psicanálise, Sigmund Freud, mostra, no clássico “O Mal Estar na Civilização”, como civilizar-se implica aceitar atos penosos e mesmo abrir mão de prazeres.
Se as leis e regras são indispensáveis e necessárias para pessoas e empresas, os barões da mídia no Brasil insistem em desconhecer tal obviedade.
Entra ano, sai ano, continuam defendendo leis apenas para os outros. Para eles e o negócio deles, quanto menos ou nenhuma lei, melhor.
Num momento em que as fake news (novas e velhas mentiras) dominam a mídia corporativa aqui e as redes sociais aqui e na maior parte do chamado Ocidente, esses senhores têm a cara de pau de defender regulação só para os concorrentes.
É o que ficou claro, mais uma vez, na última terça-feira, através de editorial “Eleições tornam urgente regulação das redes sociais”, do jornal O Globo. O escriba a serviço da família Marinho assegurou, com todas as letras, que está passando da hora de se aprovar o PL das Fake News, que tem a relatoria do deputado Orlando Silva (PC do B-SP). O referido PL introduz uma série de regras para as big techs (as donas das redes sociais), mas esquece de qualquer tipo de regulação para a radiodifusão corporativa (rádio e TV), que continuaria assim livre para desinformar ao seu bel prazer.
De acordo com o escriba, “a falta de regras transformou as redes sociais e os aplicativos de comunicação em centros de disseminação de desinformação. Repetidas vezes, as empresas de tecnologia falharam. Quando vídeos, áudios ou memes fraudulentos são removidos, milhões já os viram, e o estrago já está feito”.
Desnecessário dizer que as big techs são as concorrentes e a radiodifusão a praia dominada no Brasil por seis oligarcas.
O tal editorial antecipa a provável entrada em pauta, já nos primeiros meses de 2024, do PL 2630. No ano passado, um PL semelhante quase chegou a ser votado, retirado de pauta na última hora, pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira. O argumento era de que precisava de aperfeiçoamentos. Na prática, houve receio do Grupo Globo que a medida pudesse ser derrotada, tal o volume de críticas que passou a receber.
Entre as acertadas críticas estava a de que o Grupo Globo seria o principal beneficiado com a medida, pois conseguiria, numa tacada só, atingir três objetivos: dificultar o avanço dos seus concorrentes digitais, frear a imprensa independente em visível ascensão e, sobretudo, ganhar dinheiro. Muito dinheiro.
Você deve estar se perguntando como assim?
Explico.
O Grupo Globo, como os demais grupos privados de mídia no Brasil e no mundo, sabe que as big techs e suas redes sociais vieram para ficar. Sabe que não tem como competir com elas, mas quer porque quer retardar ao máximo esse processo. Para tanto precisa do Estado. Logo essa turma que defende com unhas e dentes o Estado mínimo, obviamente só para os outros.
Dito de outra forma, os barões da mídia brasileira estão infernando a vida do governo Lula e do próprio presidente, para que ele assuma o comando da articulação para essa provação. E, ao que tudo indica, estão conseguindo.
Na solenidade do 8 de janeiro, quando o governo federal exaltou a democracia e a derrota da tentativa golpista de um ano atrás, o presidente Lula, que até então havia se mantido distante do assunto, foi claro ao defender a necessidade de se regular as redes sociais. A ele se somaram os representantes dos demais poderes. Até aí, tudo bem, se o Brasil não figurasse no rol dos raríssimos países em que nem a velha mídia é regulada.
Dito de outra forma, o Brasil é o paraíso da impunidade quando se trata dos inúmeros crimes cometidos diariamente pela mídia tradicional quando se trata de desinformar, manipular e mentir para leitores e audiência. E sem fazer o dever de casa básico, os três poderes arvoraram-se em regular apenas uma parte do setor.
No caso da Europa e dos Estados Unidos onde a mídia corporativa – a autointitulada grande mídia – há décadas é regulada, faz todo sentido caminhar-se somente para a regulação das plataformas. No Reino Unido, por exemplo, além do rádio e da TV, a regulação atinge também os jornais.
Antes do início da guerra na Ucrânia, a regulação das redes sociais estava na ordem do dia em países como França e Alemanha. A guerra fez com que desaparecesse do horizonte em ambos os países e não falta quem veja nisso uma das razões para a própria eclosão da guerra. Ninguém pode se esquecer de que as big techs são majoritariamente estadunidenses e que vinha sendo a Casa Branca que, historicamente, cercava a Rússia e a empurrava para o combate a partir das ex-repúblicas soviéticas.
As forças progressistas, atentas ao fato e após denunciarem que o tal PL tinha um “jabuti” escondido, exatamente um “jabuti” do interesse da família Marinho, fizeram com que o assunto fosse retirado da pauta na Câmara dos Deputados. No entanto, ele está de volta e as chances de ser aprovado são grandes.
O Jabuti era um artigo que garantia à chamada imprensa profissional (os barões de sempre), o direito de receberem pagamento pelo uso de suas publicações e textos por parte das big techs. Se isso for aprovado, é claro que as big techs vão pagar esses impostos, mas irão recuperar o dinheiro retirando o que pagam de anúncios para a mídia independente.
Lula está certo quando afirma que é preciso combater as fake news e ao defender a regulação para as redes sociais, que nada mais são do que multinacionais especializadas na extração de dados de seus usuários e na perpetuação da dominação de uns poucos países sobre a maioria do planeta.
Lula erra, no entanto, quando acredita que ao regular somente as redes sociais conseguirá impedir ou mesmo diminuir a propagação das mentiras. Vale lembrar que no Brasil, as principais fake news, que mudaram a vida política para muito pior, nasceram e prosperaram na mídia tradicional. É o caso do Mensalão Petista, da Operação Lava Jato como exemplo do combate à corrupção, da prisão, sem crime, do próprio Lula e mesmo nos erros e problemas a ele atribuídos neste primeiro ano do seu terceiro mandato.
Se a mídia corporativa tivesse um mínimo de vergonha na cara, era para estar se penitenciando e mostrando, uma por uma, as conquistas e avanços do atual governo. Mas ela fez e continua fazendo o contrário. Desconhece as enormes vitórias do governo neste primeiro ano e tenta criar problemas e dificuldades para o seu andamento em 2024.
Apesar de todos os entraves que permanecem no Congresso Nacional, nas Forças Armadas e na ação dos imperialistas sobre o Brasil, o país avançou em todos os campos. Teve um crescimento de 3,1% no PIB, bem acima do 1% que a turma do mercado havia vaticinado, está consolidando a própria democracia e retomou uma das políticas externas mais consistentes do mundo.
Mas a velha mídia não se dá por vencida. Critica o ministro Fernando Haddad, da Fazenda, por continuar defendendo o déficit fiscal zero e critica o presidente Lula por bancar novos investimentos públicos, especialmente na área do desenvolvimento e das empresas estatais.
Com mentiras assim chega-se a situações absurdas como a do Grupo Globo defender, ao mesmo tempo, o déficit zero e a tal desoneração da folha de pagamento de 17 setores econômicos, a começar pelo da comunicação, onde se situam. Dito de outra forma, querem que o governo faça a mágica de zerar o déficit, mas sem cobrar impostos. Logo eles, os super-ricos, que já se beneficiam de milhares de isenções, sejam como pessoas físicas ou jurídicas.
Óbvio que Lula sabe disso. Óbvio que o pessoal da Secom também. Então, o que justifica toda essa conversa em torno da necessidade de se regular as redes sociais e silêncio total em relação à mídia tradicional?
Posso estar enganada, mas Lula tenta fazer também na comunicação, o que fez no ministério da Justiça. Num ano fundamental como 2024, com eleições municipais e a extrema-direita espreitando para avançar posições, o pior para ele será entrar em disputa de narrativa com quem quer que seja.
Ao deixar a mídia corporativa fora de qualquer regulação, Lula está dando o seu recado, ao mesmo tempo em que busca maneiras para tolher a propagação de fake news que atingem a população menos informada e os tiozões e tiazonas de sempre.
Não deixa de ser uma aposta arriscada, uma vez que a mídia corporativa já deu provas suficientes de que não há diálogo com ela. Algo como: o governo Lula capitula ou é guerra.
Por tudo isso, está passando da hora dos diversos setores sociais se pronunciarem sobre um tema tão importante, essencial e estratégico como a comunicação.
Onde estão os sindicatos dos jornalistas, a Fenaj, a ABI, as escolas e faculdades de Jornalismo, as diversas entidades sociais que sabem da importância da informação para uma sociedade democrática?
Foi pela atuação de décadas e potencializada pelas redes sociais que Dilma, sem crime de responsabilidade, foi deposta, que Lula, sem qualquer prova de corrupção, foi preso, que na vizinha Argentina um pau mandado do imperialismo estadunidense chegou ao poder pelas urnas e está destruindo o país e que no Equador, depois de inúmeros governos neoliberais que o faliram, fala-se agora em transformá-lo numa espécie de 51º estrela informal na bandeira do Tio Sam.
Não é só pelas eleições municipais que 2024 se torna um ano chave. É pelas consequências que podem ter o que for feito e também o que não for feito em termos de comunicação no Brasil.
Não há futuro possível sem uma comunicação regulada.
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