Ângela Carrato  – jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

Foi impossível não pensar em Jessé Souza e em seu livro “A Elite do atraso” ao acompanhar as manchetes dos principais jornais brasileiros na semana que passou. Foi a imagem desta suposta elite, composta por oligarcas descompromissados com o presente e o futuro do Brasil, que também não me saiu da cabeça ao assistir aos telejornais das TVs abertas, das emissoras pagas e acompanhar as repercussões deste noticiário nas redes sociais.

Com raríssimas exceções, a mídia corporativa exercitou seu esporte favorito: esconder o que não lhe interessa e divulgar para o seu respeitável público somente o que lhe é conveniente. E as redes sociais amplificaram tudo isso.

Nos governos golpistas de Michel Temer e Jair Bolsonaro adotar tal atitude foi fácil. Os interesses da elite do atraso e do governo coincidiam e a mídia corporativa, que é parte dessa elite do atraso, coroava o processo pintando de bom tudo aquilo que era lesivo ao interesse popular.

Verdadeiros atentados contra os interesses da maioria da população, como as Reformas Trabalhista e da Previdência, foram apresentadas e vendidas como “necessárias” e “essenciais”, quando nada mais fizeram do que retirar direitos dos trabalhadores e  inviabilizar a aposentadoria das camadas médias e pobres.

Como quem está no Palácio do Planalto agora não pertence ao time dos oligarcas, políticas públicas que interessam efetivamente à maioria da população estão sendo adotadas.  Os oligarcas odeiam essas políticas, porque significam que o orçamento público, que antes eles controlavam, passa a ter outro direcionamento.

O resultado é que está em processo uma poderosa guerra dos oligarcas contra o governo Lula, que a grande maioria da população não percebe e sequer desconfia. Guerra que se materializa através da desinformação, da manipulação e das mentiras divulgadas para jogar a população contra o governo e, no limite, desacreditar e desestabilizar o próprio governo.

Vamos aos fatos.

Na segunda-feira, o governo Lula fez o anúncio de microcrédito e linhas de financiamento para vários setores. Num país onde o principal desafio atual é crescer com maior intensidade, esse anúncio deveria ganhar destaque, especialmente porque as linhas de crédito começam a funcionar imediatamente. A mídia simplesmente desconheceu o assunto, preferindo insistir nas críticas de que o governo Lula “gasta demais” e “coloca em risco o equilíbrio nas contas fiscais”. Repetiu o “gelo” dado a outro importante programa, o Desenrola, voltado para a renegociação com descontos de até 90% de dívidas contraídas por pessoas físicas nos anos dos governos golpistas.

Também praticamente não foi notícia o conteúdo do café da manhã, seguido de entrevista, que o presidente Lula ofereceu aos jornalistas na terça-feira. Por mais de três horas, o presidente respondeu a perguntas sobre os mais diversos assuntos.  Do alto do olimpo em que se encontram, editores e diretores de redação, de olho no que mandam os patrões, decidiram que a fala do presidente não era importante. Tanto que foram publicados apenas registros do evento com trechos insignificantes das respostas de Lula.

Mas os absurdos maiores ainda estavam por vir.

Na quarta-feira, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, foi pessoalmente à Câmara dos Deputados entregar ao presidente da Casa, o “coronel” bolsonarista Arthur Lira, o projeto que regula a Reforma Tributária. Aprovada há quatro meses, ela só terá validade após a aprovação dessas regras que, por sua vez, vão entrar em vigor de forma gradual até 2030.

A proposta é das mais interessantes e abrangentes. Além de unificar impostos, aliviar as cobranças sobre produtos da cesta básica, cria o cash back (retorno) dos impostos pagos pelos setores carentes no que se refere à agua, luz, esgoto e gás. A regulação, por outro lado, cria impostos sobre bens como jatinhos, iates e jet-skis, que nunca foram alvo de taxação no Brasil.

Em suas 500 páginas, a proposta do governo deixa nítido o compromisso com a redução de impostos para os mais pobres e vai até o cash back para os setores carentes, ao mesmo tempo em que taxa produtos e bens supérfluos, que sempre tiveram alíquotas baixas ou eram isentos.  Uma quase revolução no que se refere a tributos no Brasil, onde o pobre paga muito e os mais ricos ficam isentos.

Sempre considerei indefensável que carros comuns pagassem impostos, enquanto jatinhos e iates dos bilionários permaneciam sem qualquer tributação.

Na quinta-feira, os principais jornais brasileiros simplesmente distorciam e mentiam sobre o assunto. O Globo manchetou: “Proposta do governo cria cesta básica nacional e imposto médio de 26,5%”. A publicação desinforma ao dizer que o governo cria imposto, pois não se trata de criação, mas de unificação de impostos já existentes.

A Folha de S. Paulo conseguiu fazer ainda pior. Com a manchete “Tributária prevê imposto de até 27,3%”, desinformou e irritou a população. Ninguém gosta de pagar  impostos e considera os existentes elevados. Daí esta manchete contribuir em muito para ampliar o nível de insatisfação com o governo que, mesmo trabalhando muito e focando no interesse da maioria, assiste à redução de seus índices de popularidade.

A manchete mais desinformativa e absurda, no entanto, ficou por conta do jornal  Estado de S. Paulo. A velha publicação saiu-se com essa: “Governo livra alimento ultraprocessado de ‘imposto do pecado’ e inclui veículos”. Além da semelhança com  manchetes dos jornais do bispo/empresário Edir Macedo (livramento, pecado), ela se apegou a detalhes e desinformou sobre o que importa para a maioria.

Agindo assim, a mídia tentou transformar medidas positivas e de amplo alcance popular em coisas ruins e temidas pela maioria da população.

A leitura dessas notícias não melhora em nada o nível de informação das pessoas sobre as regras para a reforma tributária, deixando para o cidadão comum a impressão de que ele vai ser mais uma vez garfado pelo governo.

A quem interessa esse tipo de atitude não é difícil perceber: à elite do atraso que não se conforma com o retorno de Lula ao poder e, menos ainda com o retorno e o aprofundamento de políticas públicas voltadas para o interesse social e não apenas para os interesses dos oligarcas.

Como se isso não bastasse, não faltaram editoriais e comentários em jornais, emissoras de TVs e rádios dando conta que o Brasil passará a ter “um dos maiores índices de impostos do mundo”. O que esta mídia não disse é que nos Estados Unidos e na Europa, sempre os mais ricos pagaram impostos – e altos. Aqui, sempre foram isentos.

Se tais absurdos já seriam suficientes para mostrar o caráter e a quem esta mídia serve, a “cereja do bolo” ainda estava por vir.

A principal e recorrente crítica que a elite do atraso faz ao governo Lula é “gastar demais”. Todo investimento social que o governo faz ou vai fazer é tachado de “gasto”. No mundo inteiro, ninguém sério confunde investimento com gasto. Educação e saúde não são gastos. São investimentos, menos no Brasil. Aqui oligarcas e sua mídia, se pudessem, extinguiriam todos os programas sociais e destinariam o orçamento federal apenas para o pagamento da dívida interna e de seus juros nas alturas. Não por acaso, essa mídia adora o presidente do Banco Central dito independente, Roberto Campos Neto, que mesmo diante do crescimento da economia, insiste em cortar o valor da taxa de juros (Selic) a conta gotas. Desnecessário dizer que Campos Neto é o herói desses oligarcas, que são também os rentistas nacionais.

Neste sentido, a posição de contra o Brasil e o povo brasileiro por parte desta mídia fica explicita ao defender, com unhas e dentes, que o governo deva prorrogar a desoneração da folha de pagamentos de 17 setores econômicos, a começar pelo dela própria, telecomunicações, até 2030.

Essa desoneração, iniciada no governo Dilma Rousseff, derrubado por um golpe que teve na mídia um dos seus apoios, mais do que se provou inadequada. Ao contrário do que apregoa a mídia, esses setores não investiram e não cumpriram acordos de manter o nível de empregos. O grupo Globo que o diga, ao demitir funcionários em todas as suas empresas, a título de “reorganização”.

Como a mídia tradicional brasileira está nas mãos de oligarcas e a maior parte dos atuais integrantes do Congresso Nacional é bancada por oligarcas, um projeto atendendo a esses interesses foi apresentado por parlamentar do União Brasil. Teve aprovação em tempo recorde na Câmara e no Senado não sem antes receber uma série de penduricalhos que estendia esta desoneração para a folha de pagamentos de mais de uma centena de prefeituras.

A jogada não podia ser mais óbvia: colocar nas costas do governo federal as dívidas municipais e ainda constranger o presidente Lula a sancionar o projeto, sob pena de se indispor com prefeitos, num ano de eleições municipais.

Curiosamente, ao defender com unhas e dentes a aprovação deste projeto – só no Jornal Nacional foram inúmeras matérias destacando a sua “importância” – em momento algum foi mencionado o “teto de gastos” e, menos ainda, feita qualquer referência à  suposta “gastança” do governo.

Num momento em que  Lula ainda enfrenta dificuldades por causa da herança golpista do teto de gastos, um projeto assim se torna enorme complicador para as contas públicas. Mas os oligarcas não querem nem saber. Defendem os próprios interesses e o resto que se dane.

O problema é que na mídia a situação é apresentada de forma que as pessoas não entendam o que se passa. O projeto da desoneração, por exemplo, é mostrando como gerando “empregos e desenvolvendo a economia”, enquanto os que efetivamente desenvolvem a economia são apontados como “gastança” e nocivos ao interesse público.

A origem de muitos dos “atritos” atuais entre os Poderes Executivo e Legislativo está neste tipo de projeto. Tanto que a desoneração desses 17 setores foi vetada pelo governo, mas o Congresso derrubou o veto. A solução para o governo não estourar as contas públicas foi recorrer ao STF, onde o ministro Cristiano Zanin, sorteado para relatar o assunto, deu parecer favorável ao pleito e suspendeu a vigência da medida até que seja discutida pela Suprema Corte.  Foi o suficiente para a mídia declarar guerra contra o governo e manchetar que a decisão “abre nova frente de crise entre os três Poderes”.

Essa mídia que nunca fez críticas ou falou em crise, quando não faltavam crises durante os governos Temer e Bolsonaro, é a mesma que forja uma crise por dia em se tratando do governo Lula.

É gente do tipo Temer e Bolsonaro que a elite do atraso apoia e para o qual a mídia corporativa bate palmas.

Para ela, o péssimo governo Temer foi ótimo. Já o governo genocida e corrupto de Bolsonaro “não era tão ruim assim”, porque neles a elite do atraso se apoderou do orçamento público.  Basta conferir a indignação da turma do Lira e  do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, quando Lula tenta mudar o jogo. Basta ver como ao mesmo tempo em que a mídia diz que o governo gasta, os juízes federais querem que seja aprovado – e têm apoio no Congresso – para ganharem novo quinquênio,  que implicará em gasto de cerca de R$ 81,6 bilhões em três anos.

Onde está a indignação da mídia com esses verdadeiros marajás?

Para quem não sabe, a média salarial dos brasileiros é de R$ 2.900, enquanto a média salarial dos juízes é de R$ 28 mil, fora vantagens e penduricalhos que mais do que dobram esse valor. Quem se lembra que uma das razões da queda de Dilma Rousseff foi não ter aceita dar reajuste aos juízes?

Nada disso você, leitor/leitora vê na mídia brasileira.  Mídia que nada mais é do que o partido da elite do atraso.  Ela é a responsável por embalar e vender como se fossem positivas as piores atrocidades contra os interesses populares.

Quando se entende isso, todo o reto fica claro. E o leitor/eleitor deixa de servir como massa de manobra para esta elite e o seu partido.