Ângela Carrato – Jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

São da máxima gravidade dois fatos que aconteceram em países da América Latina, quase simultaneamente, na sexta-feira (5/4).

Forças policiais do Equador, governado pelo extremista de direita, Daniel Noboa, invadiram a Embaixada do México, em Quito, para capturar o ex-vice-presidente Jorge Glas, que estava refugiado lá desde dezembro. A invasão se deu no mesmo dia em que o México concedeu asilo político a Glas.

A invasão de uma embaixada é algo inaceitável, pois se trata de território inviolável, protegido pela Convenção Americana sobre Asilo Diplomático e pela Convenção de Viena. Noboa, como tem feito outro extremista de direita, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, está se lixando para as leis e convenções internacionais. Tanto que divulgou comunicado à população para informar que Glas havia sido “detido e colocado à disposição das autoridades competentes”.

Nem uma palavra sobre as absurdas circunstâncias em que essa prisão se deu.

A reação do governo mexicano foi imediata. Rompeu relações diplomáticas com o Equador, com o presidente López Obrador tendo publicado em suas redes sociais que a medida foi uma “violação flagrante do direito internacional e da soberania do México”.

A situação se torna mais absurda ainda quando se observa a violência empregada pela polícia equatoriana para entrar na embaixada e o desrespeito total à Jorge Glas. Ex-vice presidente de Rafael Correa, juntos governaram o Equador entre maio de 2013 e novembro de 2017. Glas passou a ser perseguido quando houve uma guinada à direita no país.

Ele também foi vice-presidente de Lenin Moreno, o sucessor apoiado por Correa, que depois o traiu. A traição motivou o rompimento de Glas com Moreno e, desde então, vem sendo perseguido. As acusações contra Glas se basearam em documentos da Operação Lava Jato, relacionados a contratos com as empreiteiras OAS e Odebrecht no Equador. Documentos já invalidados pela Justiça brasileira.

Anteriormente Rafael Correa também foi acusado de corrupção, condenado e não pode voltar ao Equador. Nos dois casos, é fragrante o uso da Justiça para perseguição política, similar ao processo que atingiu o presidente Lula e o levou à prisão, sem provas, por 580 dias.

Desmoralizada e com suas ligações aos interesses dos Estados Unidos expostas, a Operação Lava Jato continua sendo utilizada pela extrema-direita para perseguir lideranças progressistas e de esquerda na região.

Até o momento em que escrevo, a OEA não se pronunciou sobre o assunto. Governos de diferentes orientações políticas como o argentino, uruguaio, chileno e colombiano condenaram a ação.

Joe Biden que, como todo presidente dos Estados Unidos, adora se meter nos assuntos Latino-americanos, não se manifestou. Fico imaginado a gritaria e quase o estado de guerra declarado se a invasão de uma embaixada tivesse se dado por parte de governos de esquerda, como da Venezuela ou de Cuba.

Como se trata de um governo de extrema-direita, apoiado pela Casa Branca, está tudo certo!!!!!

Distante desta lógica se coloca o governo Lula. Em nota, o Itamaraty afirmou que “o governo brasileiro condena, nos mais firmes termos, a ação empreendida por forças policiais na Embaixada mexicana em Quito”. Na mesma nota, manifesta solidariedade ao governo mexicano, destacando que o “grave precedente”, deve ser “objeto de enérgico repúdio, qualquer que seja a justificativa para sua realização”.

Em suas redes sociais, Lula fez questão de publicar a nota e acrescentar o seu apoio ao amigo Lopes Obrador.

O outro fato gravíssimo aconteceu, quando o presidente da Argentina, o extremista de direita Javier Milei, viajou às pressas para receber em Ushuaia, na Patagônia, a generala estadunidense Laura Richardson. Não se sabe se Milei não foi avisado sobre a visita ou perdeu o horário. O certo é que chegou afobado e num discurso considerado inaceitável pelos congressistas, pelos movimentos sociais e até por setores da mídia de seu país, garantiu que a melhor forma de defender a soberania argentina é alinhar-se incondicionalmente aos Estados Unidos.

Laura Richardson foi a Ushuaia, porque os Estados Unidos planejam construir uma base militar no local, nos moldes das mais de 800 que possui espalhadas pelo mundo. Na América Latina e no Caribe já são, pelo menos, 76, sob a direção do Comando Sul (SouthCom), do Departamento de Defesa.

Também a Inglaterra, com o aval de Milei, pretende construir uma base militar no arquipélago das Malvinas. Até os militares argentinos estão indignados.

O que se passa no interior dessas bases não é sabido nem pelos governos dos países onde se localizam. Razão pela qual vai ficando mais distante a época em que a América Latina, sobretudo a América do Sul, era tida como zona livre de conflitos, de guerras e, sobretudo, região desnuclearizada.

O subserviente e patético gesto de Milei não chega a ser novidade para nós, brasileiros. Ele, aliás, parece uma constante em se tratando de políticos de extrema-direita na região. Basta lembrar que Bolsonaro também declarou amor a Donald Trump, então presidente dos Estados Unidos. Para provar o “afeto”, levou de presente um decreto em que entregava a base brasileira de Alcântara, no Maranhão, aos Estados Unidos.

Oficialmente, Alcântara continua sendo uma base de lançamento de foguetes operada pela Aeronáutica brasileira, mas os gringos estão lá. Sua localização geográfica privilegiada, na medida em que gera economia de combustível nestes lançamentos, a torna fator de enorme cobiça pelos Estados Unidos e demais países imperialistas.

O que se passa lá, depois que Bolsonaro deu esse presente a Trump não se sabe. As visitas são proibidas. É importante lembrar, no entanto, que em agosto de 2003, uma explosão no seu centro de lançamentos matou todos os 21 pesquisadores e cientistas envolvidos no programa espacial brasileiro.

Até hoje o episódio gera controvérsias e não está devidamente esclarecido.

O ataque do governo de Noboa à embaixada mexicana, a subserviência de Milei aos Estados Unidos, a permanência na prisão, há mais de um ano incomunicável, do ex-presidente peruano José Castillo, deposto por um golpe parlamentar sem ter, como a ex-presidente Dilma Rousseff, cometido crime de responsabilidade, indicam que da “onda vermelha” que marcou a América do Sul nos anos de 1998 a 2010 sobrou pouco.

A linha histórica de governos progressistas começou com a eleição de Hugo Chávez, na Venezuela, em 1999, seguida pelo chileno Ricardo Lagos, em 2000, por Lula, em 2003, pelo argentino Néstor Kirchner, também em 2003, por Tabaré Vázques no Uruguai, em 2005, por Alan Garcia, no Peru, e pelo boliviano Evo Morález, em 2006, por Rafael Correa no Equador, em 2007 e o paraguaio Fernando Lugo, em 2008. Neste período, progressistas igualmente eram os presidentes de países da América Central como Honduras e Nicarágua.

Destes governos, pouquíssimos continuam de pé. Lula, que retornou ao poder em 2023 depois de superar todo tipo de perseguição e prisão é um exemplo. O sucessor de Chávez, Nicolás Maduro, considerado inimigo pelos Estados Unidos, que disputará eleição novamente em junho, é outro. A Venezuela não limita o numero de reeleições.

É interessante – e ao mesmo tempo preocupante – observar que todo governante latino-americano cuja gestão se centrou na população mais pobre e excluída, na justiça social e na defesa da soberania de seu país recebeu, no passado, a pecha de comunista. Pecha que, nos períodos mais recentes, foi alterada para corrupto.

Todos esses presidentes progressistas foram acusados de corrupção. Acusações tão fortes quanto sem provas, a ponto de alguns não resistirem, como Alan Garcia, que se suicidou, ou Lugo, que teve a saúde profundamente abalada.

Como é improvável que a corrupção seja um crime comum apenas a líderes progressistas e que todos os políticos de direita ou de extrema-direita sejam íntegros e honestos, torna-se fundamental perceber que tais denúncias fazem parte de um instrumento mais amplo para manter a América Latina na condição de quintal dos Estados Unidos.

O nome deste instrumento é guerra híbrida.

Criar ou estimular atritos entre países da região, como vem acontecendo entre Venezuela e Guiana ou entre Argentina e Brasil, são táticas de guerra híbrida, de que se valem o imperialismo estadunidense na lógica do dividir para imperar. Divididos sempre será mais fácil para sermos roubados em nossas riquezas, seja o petróleo, o cobre, o lítio ou as terras raras. Todos essenciais para indústrias como a aeroespacial e a de chips.

Não por acaso, o empresário de extrema-direita, Elon Musk, não se furtou a dizer que daria tantos golpes quantos fossem necessários para obter o lítio boliviano. Sua empresa, a Tesla, tem no lítio matéria-prima fundamental. Se esse empresário, que também é dono do X (ex-Twitter) não se comportasse como delinquente, deveria pagar pelo bem que deseja utilizar.

Ontem, Musk, através do X, resolveu se meter também na vida brasileira e questionar o que considera falta de liberdade no país, acusando diretamente o ministro do STF, Alexandre Moraes. O que ele pretende é evidente: atuar em defesa de Bolsonaro e da anistia para os golpistas de 8 de janeiro. O que esse cidadão entende de liberdade, logo ele que censura abertamente sua rede social?

Voltando à Venezuela, o que sempre está em jogo é o petróleo, que os Estados Unidos gostariam de controlar, seja pela qualidade, seja pela proximidade. Enquanto os governos pré-Chávez faziam exatamente o que determinava a Casa Branca, eram considerados democráticos, mesmo que enfrentassem rebeliões populares e matassem indiscriminadamente.

Bastou Chávez colocar ponto final no controle do Tio Sam sobre o petróleo de seu país, para ser transformado em ditador, designação que segue com Maduro, coisa que obviamente ambos nunca foram.

A imprensa corporativa brasileira, cuja sede é em Washington, tem a cara de pau de tratar Maduro como ditador e continuar denominando o genocida Benjamin Netanyahu de primeiro-ministro, sem qualquer outra adjetivação.

A cobiça pelo pré-sal brasileiro está na raiz do golpe de 2016, que derrubou a presidente Dilma Rousseff, exatamente no momento em que ela caminhava, junto com a Petrobras, para definir qual regime seria utilizado pela empresa para explorar as reservas de óleo no mar. Uma das primeiras ações do golpista Michel Temer no Planalto foi isentar as petroleiras estrangeiras que atuavam no pré-sal brasileiro de pagar impostos.

Você já imaginou quantas escolas, hospitais, obras de infraestrutura, casas populares, parques e áreas de lazer poderiam ter sido construídos com o dinheiro que meia dúzia de bilionários estrangeiros deixaram de pagar?

A questão do petróleo, que nunca saiu de pauta, está de novo na ordem do dia no Brasil, seja com a com a descoberta, pela Petrobras, de novo pré-sal na chamada Margem Equatoriana, seja pelas seguidas tentativas de desestabilizar a empresa por parte do chamado “mercado”.

A subserviência da mídia corporativa brasileira também nesse caso é tamanha, que chega ao absurdo de fazer reportagem destacando a melhoria na qualidade de vida na Guiana (colônia francesa) devido à exploração do petróleo, ao mesmo tempo em que critica a decisão do governo Lula de explorar o mesmo óleo, alguns quilômetros de distância, em águas brasileiras.

Mais ainda, a tentativa de transformar em crise divergências entre o presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, e o ministro das Minas e Energia, Alexandre Silveira, pode ser vista como mais uma tentativa para desestabilizar a maior empresa pública da América Latina. Desestabilização que muitos problemas e dores de cabeça trariam ao governo Lula, já às voltas com dificuldades de toda ordem para colocar o Brasil nos eixos.

Como em política não há ingênuos, as lideranças progressistas na América Latina, ou o que sobrou delas, sabem que a região está sob ataque dos Estados Unidos. Ataques que podem permanecer com ações de guerra híbrida como vem acontecendo ou evoluir para conflitos abertos. O Tio Sam é especialista em desorganizar a casa e a vida casa alheia.

Os solavancos que vamos enfrentar dependem do grau de desespero das elites de um império em franco declínio e da habilidade das lideranças progressista regionais para defender os interesses de seus países e buscar incansavelmente a integração latino-americana.

O caminho será árduo.