Angela Carrato – jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

A última quinta-feira deveria ter sido um dia especial no Brasil. Nela se comemorou os 470 anos da fundação da cidade de São Paulo, a maior metrópole nacional e uma das maiores do mundo, e também os 40 anos do comício das Diretas-Já, na Praça da Sé.

Como naquela época, apenas o aniversário de São Paulo mereceu a devida lembrança, com o histórico comício, que foi um marco na luta pela redemocratização do país, praticamente esquecido.

Freud ensina que os esquecimentos são plenos de sentido. E esse, sem dúvida, é dos mais reveladores.

Em 1984, como hoje, a maioria da população brasileira lutava para ter de volta a democracia. A ditadura militar completava 20 anos e deixava claro que nunca teve e nem teria nada a oferecer aos brasileiros, que enfrentavam taxas altíssimas de desemprego, inflação e carestia, sem falar nas barbáries contidas pelos donos do poder contra seus opositores.

Para uma imprensa que se dizia comprometida com a verdade e a liberdade, o mínimo que se podia esperar era que ela reportasse exatamente o que estava acontecendo.

Mas não foi isso o que se viu.

O caso mais grave de mentira foi o do Grupo Globo, da família Marinho. Na época, Roberto Marinho ainda estava vivo. Foi ele quem deu as instruções para que o comício das diretas fosse abafado e se mencionasse em seus veículos, principalmente na TV Globo, apenas a festa de aniversário da capital paulista.

Praticamente todos os demais veículos da mídia corporativa seguiram esta posição, deixando claro a adesão aos militares e servindo para explicitar que a censura que sofreram foi mais um alívio do que repressão propriamente dita. Alívio, porque poupou aos barões da mídia fazerem naquela época o que passaram a fazer depois: censura empresarial contra governos progressistas.

A Folha de S. Paulo, naquela época, foi a única excessão entre os veículos da mídia corporativa. Quebrando o silêncio dos chamados grandes veículos, estampou na capa de sua edição do dia 26 de janeiro de 1984 uma foto gigante que mostrava a Praça da Sé lotada, com mais de 160 mil pessoas exigindo o fim da ditadura e o voto direto para presidente da República.

Este comício, sem dúvida uma vitória do então governador de São Paulo, Franco Montoro, abriu espaço para outras manifestações semelhantes.

A ele se seguiram os igualmente históricos comícios no Rio de Janeiro, na Cinelândia, e em Belo Horizobte, na Praça da Rodoviária. Ambos arrebataram multidões e os cálculos naquela época superavam 300 mil pessoas em cada um deles.

Em Belo Horizonte, por exemplo, a multidão chegava até depois da Praça Sete, paralisando completamente a capital mineira.

Atos iguais se repetiram em todas as capitais e maiores cidades brasileiras, obrigando a mídia a cobri-los. A família Marinho, que sempre se beneficiou das ditaduras e andava de braços dados com os militares, resistiu o quanto pode. Ao perceber que os militares não teriam mais como se manter no poder, bandeou para o lado de Tancredo Neves, tentando escrever a história segundo os seus interesses.

As eleições diretas foram derrotadas e Tancredo venceu a disputa contra Paulo Maluf no Colégio Eleitoral Eleitoral. Sua doença e morte antes de tomar posse acabou abrindo espaço para que no lugar de retorno à democracia tivéssemos apenas uma transição pelo alto. Vale dizer: o poder civil estava de volta, mas a classe dominante de sempre e seu instrumento, os militares, continuaria dando as cartas.

Até hoje permanece infindável o debate sobre o papel de Tancredo, então ex-governador de Minas, neste processo. Se ele tivesse tomado posse, teria evitado um governo medíocre e tão submetido aos militares como foi o do seu vice, José Sarney, que assumiu graças a um arranjo?

Mais ainda, se Tancredo tivesse governado, o primeiro presidente eleito pelo voto direto teria sido o oportunista Fernando Collor, um fantoche dos interesses da classe dominante e do Tio Sam?

Como o “se” não entra em campo e não joga, nunca saberemos. Collor não foi apenas um atraso. Foi um instrumento desses interesses para impedir o desenvolvimento do Brasil. Basta lembrar que deu início à política neoliberal de desindustrialização e entrega do patrimônio e das riquezas nacionais.

Collor só não destruiu mais o Brasil, porque tentou ficar com a parte do leão e acabou desagradando às ditas elites de sempre. Desagrado que redundou em sua renúncia para fugir do impeachment e da inelegibilidade. Detalhe: talvez o principal ato que as elites, inclusive midiáticas, condenavam em Collor era tentar montar um grupo próprio de comunicação.

Muito do que Collor não conseguiu fazer, Fernando Henrique Cardoso fez nos dois mandatos que conquistou ao se tornar o queridinho da mídia e de todos que sempre trabalharam contra o Brasil e o povo brasileiro.

Basta lembrar que a mídia não deu um pio diante do escândalo que deveria ter sido a compra de votos para aprovar a sua reeleição. Mais ainda: como esta mídia aplaudiu privatizações a preços de banana, como a da mineradora Vale do Rio Doce, e, por pouco, a própria Petrobras também não teria sido privatizada.

Em outras palavras, FHC fez muito mal ao Brasil. Mal que outro fantoche das elites, Jair Bolsonaro retomou e aprofundou.

Claro que esta história que estou descrevendo aqui, você não vai encontrar na mídia corporativa. Nem mesmo na Folha de S. Paulo que, soube depois, apoiou as Diretas-Já por mera jogada de marketing.

A empresa, que tinha apoiado torturas e emprestado seus veículos para transportar presos políticos, viu no novo contexto político uma maneira de tentar limpar o seu passado.

O lamentável é que 40 anos depois, toda esta mídia está onde sempre esteve: trabalhando contra o Brasil e os interesses da maioria esmagadora do povo brasileiro.

Verificar isso não é difícil. Basta ter olhos para ver.

Da chamada Nova República, apenas os governos do PT, nominadamente Lula e Dilma, tiveram políticas sociais e comprometidas com o desenvolvimento nacional. Não por acaso foram combatidos e sabotados com apoio integral e redobrado desta mídia.

Lula enfrentou o Escândalo do Mensalão, mas nada se provou contra ele. Na realidade o dito Mensalão era o dos tucanos, mas esse foi devidamente escondido pela Globo e assemelhados. Tentou-se de todas as maneiras derrubar Lula, mas ele conseguiu se reeleger e ainda fez sua sucessora.

O primeiro governo Dilma foi excelente do ponto de vista dos interesses nacionais. Foi tão bom, que a classe dominante, em conluio com os interesses do Tio Sam, armou um golpe contra ela. Mas a mídia corporativa, golpista como sempre, apressou-se em denominar o golpe de impeachment e elevou a criminosa e lesa-pátria Operação Lava Jato e seus responsáveis à condição de heróis.

Esta história deveria ser mais conhecida do que aquela de 40 anos atrás. Não o é, porque nos dois casos a mídia corporativa manipulou e continua manipulando as informações ao seu bel prazer.

A título de exemplo, a mídia que passou pano para os militares é a mesma que agora passa pano para os crimes de Bolsonaro.

Se o Brasil tivesse uma mídia corporativa digna de respeito, era para ela estar mostrando como o ex-capitão e o igualmente golpista Michel Temer atrasaram o país 60 anos em seis.

Mas não. O que esta mídia faz é criticar a política fundamental e necessária de reindustrialização lançada por Lula, criticar o retorno e a ampliação das políticas sociais e a reinserção soberana do Brasil no mundo.

O que está mídia quer, mas não tem coragem de dizer, é manter os privilégios daqueles 0,5% da população, que vivem como nababos, enquanto a grande maioria enfrenta todas as privatizações.

O que está mídia não tem coragem para dizer é que ela é contra tudo e todos que quiserem desenvolver o Brasil e garantir ao país e à sua população o que merece na repartição democrática dos confortos da civilização moderna e também das decisões mundiais.

O que esta mídia quer é o Brasil sendo tutelado pelo decadente império estadinidense. Algo que aconteceu com a vizinha Argentina e que não será fácil para los hermanos resolver. Aliás, chega a ser constrangedor ver a ginástica que Globo e seus jornalistas amestrados fazem para defender o ditador Javier Milei.

O que explica o silêncio desta mídia em relação aos 40 anos do comício das diretas-já é que ela continua tão golpista e mentirosa quanto antes.

Por último, mas não menos importante, é preciso lembrar que o panorama da comunicação complicou-se muito nas últimas décadas. O surgimento das big techs, com suas redes sociais controladas, deu para alguns a sensação de uma suposta liberdade que não existe. Mais ainda. Deu para as velhas oligarquias que controlam a mídia brasileira um argumento que tem enganado até quem não se acha bobo: mentiras existem apenas nas redes sociais.

A mídia corporativa sempre mentiu e segue mentindo. As redes sociais amplificam suas mentiras. Não por acaso o jornalista Paulo Henrique Amorim criou uma apropriada designação para a velha mídia: PIG, com seu duplo sentido: porca e golpista.

É isso: a mídia brasileira continua porca e golpista.