Alex M. S. Aguiar

Estamos nos aproximando de dois anos da Lei 14.026, publicada em 15 de julho de 2020, que definiu profundas alterações no cenário da prestação dos serviços de saneamento básico no país. Dentre essas alterações destacam-se (i) a implementação de obstáculos à continuação da atuação das empresas públicas do setor, como a Copasa em MG, e (ii) a imposição da prestação regionalizada como estratégia para assegurar sustentabilidade financeira negocial às empresas privadas, a quem a Lei se empenhou na tentativa de presentear com esse mercado.

Os avanços em termos daquilo que previu a Lei se deram de modo incompleto e lento até então. A ANA, agora denominada Agência Nacional de Águas e Saneamento, vem publicando uma ou outra resolução com diretrizes acerca da regulação. Nem todos os estados aprovaram suas leis de regionalização – Minas Gerais entre eles, com o PL 2884 ainda na ALMG – no prazo previsto (julho de 2021) e, pior, em alguns a lei aprovada começa a fazer água. Também não houve resultado na construção dos chamados “blocos de referência”, alternativa que seria imposta pela União para aqueles estados que não aprovaram suas leis de regionalização até julho de 2021.

Embora fundamentados obrigatoriamente em uma criticada metodologia publicada em um Decreto da Presidência com atraso de dez meses, o prazo para submissão dos estudos demonstrando capacidade financeira para cumprimento das arrojadas metas foi mantido, e a maior parte dos prestadores cumpriu esses prazos.

No que se refere à efetiva mudança do cenário da prestação dos serviços, apenas os leilões já realizados em Alagoas, Rio de Janeiro e Amapá, todos eles fundamentados em estudos do BNDES anteriores à publicação da Lei 14.026/2020, e as autorizações das respectivas Assembleias Legislativas para venda da gaúcha Corsane para a abertura de capital da baiana Embasa emplacaram até agora.

E por fim, não se viu ainda nenhuma alteração que possa esperançar o sucesso das propostas dessa Lei: as poucas mudanças não refletiram positivamente no atendimento às pessoas, mesmo já tendo sido passados 15% do prazo para a universalização dos serviços, tão conclamada por aqueles que defenderam a aprovação dessa Lei.

Esse quadro mostra apenas uma certeza: a de que essa Lei 14.026/2020, aprovada com o único interesse de transferir do poder público para o setor privado um mercado que envolve centenas de bilhões de reais, foi mais uma “tratorada”do governo Bolsonaro e de seu guru das moedas, o Ministro Paulo Guedes. Não se diferencia muito do fracasso e da absoluta falta de resultados positivos das reformas da previdência e trabalhistas, que, segundo seus autores, trariam o país de novo para os trilhos. Toda a veiculação maciça de imagens da ausência dos serviços de saneamento no país se prestou tão somente a sustentar uma proposta de apoio à ambição financeira do setor privado, empurrada pelos nossos congressistas sem que nenhum mínimo planejamento houvesse.Vendeu-se – e caro, conforme se vê pelas outorgas pagas – a impraticável ideia de que o abastecimento de água, a coleta e o tratamento de esgotos estariam universalizados no país em treze anos.

O naufrágio dessa aventura nem bem começou, mas a água que submerge o convés do barco já arrastou consigo algumas empresas públicas e seus quadros de funcionários.E no caminho desse mergulho às cegas deverão se incorporar outros afogados: (i) grande parte de nossa população em situação de vulnerabilidade financeira, que tem sido contratualmente excluída do acesso aos serviços por imposição de limites à oferta de benefícios como a tarifa social; (ii) os pequenos municípios, incapazes de gerar receitas suficientes para remunerar o prestador dos serviços e seus investimentos, e que serão empurrados sempre para o fim do prazo; (iii) e nossas populações rurais e comunidades tradicionais, que sequer foram parte dessa aventura, mas sofrerão com o abandono provocado pela resignação de que o país não sabe cuidar do saneamento.

A esperança do estabelecimento de políticas públicas que promovam e impulsionem o saneamento básico no Brasil não se relaciona com esse naufrágio, pois as evidências descritas apontam para uma pedra cantada por muitos. Essa esperança reside, na verdade, nas eleições próximas. Na escolha de governos federal e estadual que: (i)adotem a inclusão social como um componente essencial e obrigatório nos estudos de viabilidade econômica e financeira dos serviços essenciais à população, como o saneamento básico, (ii) que assumam como uma responsabilidade das administrações públicas o provimento dos direitos humanos de acesso à água e ao esgotamento sanitário a todas as suas populações, sem exceção; (iii) que profissionalizem a atuação de suas empresas públicas, deixando de subtrair seus recursos para outros fins que não a universalização dos serviços; e (iv) que resgatem e exerçam a alternativa de cooperação interfederativa, eliminada na atual legislação por meio da vedação aos contratos de programa.

E, não menos importante, na escolha de parlamentares – senadores(as), deputados(as) federais e estaduais –que sejam mais qualificados e mais cuidadosos com as matérias cuja apreciação será de sua responsabilidade.