Ângela Carrato – jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG
Ao vetar, na última quarta-feira, a resolução proposta pelo Brasil no Conselho de Segurança da ONU, que previa uma pausa humanitária em Gaza – cessar fogo imediato entre Israel e o grupo Hamas e a abertura de corredor para a retirada de civis da região – o governo Joe Biden deixou claro o que é e a quem serve.
Após duas reuniões convocadas pelo Brasil, nas quais o assunto foi debatido sem consenso, a nossa diplomacia, orientada pelo presidente Lula, chegou a um texto que contava com o apoio majoritário dos 15 países que integram este conselho (5 permanentes e 10 rotativos). Ela obteve 12 votos a favor (França, Malta, Japão, Gana, Gabão, Suíça, Moçambique, Equador, China, Albânia, Emirados Árabes e o próprio Brasil), duas abstenções (Rússia e Reino Unido) e um contra (Estados Unidos).
Pela diversidade regional e política dos que aprovaram a resolução, tornava-se evidente a vitória diplomática do Brasil e a intransigência dos Estados Unidos. No entanto, a mídia corporativa brasileira, pautada e a serviço dos interesses da Casa Branca, tem feito de tudo para diminuir a atuação brasileira e transformar o belicoso Biden em agente da paz.
No dia seguinte ao veto, Biden desembarcava em Telavive para hipotecar irrestrito apoio ao primeiro-ministro de Israel, o extremista de direita Benjamin Netanyahu, e coonestar mais uma fake news contra o Hamas.
Ao descartar que pudesse ter sido Israel o autor do bombardeio ao hospital batista na Faixa de Gaza, apesar das evidências, e atribuir o ataque “ao time adversário”, como se a ação de matar centenas de civis palestinos pudesse guardar qualquer comparação com a de uma equipe esportiva, Biden deixou nítida a sua posição.
Antes mesmo de sua chegada, dois porta-aviões nucleares estadunidenses já estavam estacionados na costa de Israel. Um deles é o maior do mundo, com capacidade para 180 caças supersônicos e 12 mil militares prontos para o combate. A presença deles levou representantes do mundo árabe a informar à diplomacia estadunidense que se atacassem a Faixa de Gaza, eles entrariam no conflito ao lado dos palestinos. Também o presidente da Rússia, Vladimir Putin, que se encontrava na China, considerou a presença dos porta-aviões uma afronta aos países da região e anunciou que colocará caças de última geração patrulhando a área.
O mundo está á beira de um confronto cujas consequências podem ser imprevisíveis e a mídia brasileira segue passando pano para Biden e para Israel, uma espécie de sucursal dos interesses dos Estados Unidos no Oriente Médio.
Mesmo apoiando “irrestritamente” Israel, a mídia corporativa brasileira insiste em pintar Biden como alguém que trabalha pela paz, ao mesmo tempo em que ironiza e diminui os esforços brasileiros, esses, sim, efetivamente em busca da paz. Não faltaram notícias, reportagens, editoriais, artigos e fake news com o objetivo de colocar o governo brasileiro no seu “devido lugar” ou para dissuadi-lo de “influir nos rumos do planeta”.
Agindo assim, a mídia corporativa brasileira escancara o seu alinhamento ao decadente imperialismo e à velha ordem global, e se soma aos que defendem a marcha da insensatez.
Engana-se, no entanto, quem acredita que o presidente Lula possa se dar por vencido.
De volta às atividades no Palácio do Planalto nesta segunda-feira, ele não abrirá mão de continuar trabalhando pela paz, mesmo que desagrade aos senhores da guerra e a setores progressistas que gostariam de vê-lo ao lado do presidente da Colômbia, Gustavo Petro.
Em solidariedade aos palestinos, o presidente colombiano declarou que “não apoiamos genocídios” e frisou que poderá romper relações com Israel. Sua fala aconteceu após o governo israelense convocar sua embaixadora em reprimenda às críticas de Petro aos ataques na Faixa de Gaza.
O mundo assistiu, nas duas últimas semanas, cenas de absoluta barbárie, com as Forças Armadas de Israel bombardeando hospitais, templos, escolas, prédios e demais alvos civis em Gaza, com pelo menos 4.137 palestinos mortos e 13 mil feridos, principalmente crianças e mulheres. O objetivo era matar integrantes do grupo Hamas que, em 7 de outubro, atacou Israel, resultando em 1400 pessoas mortas, incluindo mulheres e crianças, e fazendo 199 reféns.
O conflito entre israelenses e palestinos teve início há 75 anos, quando a ONU decidiu, baseando-se apenas nos interesses dos vitoriosos na Segunda Guerra Mundial, criar o estado de Israel.
É importante lembrar que a milenar região da Palestina esteve sob o controle imperialista inglês (o chamado Mandato Britânico) de 1920 a 1948. Ao final da Segunda Guerra Mundial, os vitoriosos que decidiram por uma espécie de reparação aos judeus pelo holocausto, o fizeram à custa do território palestino. A Segunda Guerra, mesmo adjetivada como mundial, foi europeia.
A resolução da ONU em 1948, que criou o estado de Israel, previa também a criação do estado Palestino. O estado palestino até hoje não saiu do papel. Mais grave ainda: Israel passou a promover ataques sistemáticos aos palestinos, com o objetivo de ampliar seus domínios e expulsá-los da região que, longe de ser Oriente Médio, é parte da Ásia.
Desde então, cerca de 260 mil palestinos foram mortos.
Quando jovem, sempre me intrigou o fato de o mundo ter deixado o holocausto acontecer. Como seis milhões de judeus puderam ser mortos pelos nazistas, sem que nada fosse feito? É importante lembrar que as perseguições, confinamentos em campos de concentração e mortes começaram em 1933 e só cinco anos depois, quando a Alemanha invadiu a Polônia, a Inglaterra e a França responderam, dando início à guerra. Já os Estados Unidos, ingressaram no conflito somente no final de 1941, quando os japoneses atacaram a base de Pearl Harbor.
Ao longo daqueles anos, será que o mundo desconhecia a existência dos campos de concentração, dos trens da morte, de fornos crematórios? Estudos acadêmicos indicam que não. Grandes empresas, como IBM, Siemens e Coca-Cola, usaram mão de obra escrava e venderam tecnologia que possibilitaram o holocausto. Os grandes industriais alemães apoiaram Hitler. Em nome do lucro, eles e o mundo fecharam os olhos para a shoah, palavra hebraica que significa destruição.
Em se tratando dos palestinos, as perseguições, confinamentos e mortes a que são submetidos por Israel já duram mais de sete décadas e em nada ficam a dever ao holocausto. A Faixa de Gaza é um grande campo de concentração a céu aberto, onde 2,1 milhões de pessoas vivem amontoadas numa área equivalente a um quarto da cidade de São Paulo. Ela é cercada por um muro de sete metros de altura. Ninguém entra ou sai sem a autorização de Israel, que também controla a água, a energia elétrica e os combustíveis.
O sofrimento experimentado pelos judeus parece não ter ensinado nada às autoridades de Israel.
Não é mais possível que, em pleno século XXI, Israel promova, aos olhos de todo o mundo, uma verdadeira limpeza étnica. É inaceitável que os Estados Unidos respaldem este tipo de comportamento e ajam como xerife mundial, como disse com todas as letras Biden em um dos seus mais recentes e lamentáveis discursos.
Não é mais possível que um estado como Israel atue infringindo até convenções internacionais de guerra.
Para a mídia brasileira, que trata Israel como “mocinho” e o Hamas como “terrorista”, é importante lembrar que a ONU não inclui o grupo palestino nesta classificação. As Nações Unidas reconhecem o direito de todo povo submetido a uma situação colonial, lutar pela sua libertação. E é isso que têm feito os palestinos, mesmo que nem todos pertençam ou apoiem o Hamas.
Importante movimento islamita, o Hamas não reconhece o estado de Israel e luta pela criação do estado palestino. Seu ato de violência, ao que tudo indica, visou chamar a atenção do mundo para o drama de seu povo, vítima da velha ordem imperialista, colonialista e racista, respaldada pela mídia ocidental.
Não por acaso, Estados Unidos e Europa estão juntos em outra guerra em curso há mais de um ano, que tem lugar na Ucrânia.
Engana-se quem acredita que o presidente Lula, defensor incansável da paz tanto na Ucrânia quanto do cessar fogo imediato na Faixa de Gaza, possa se dar por vencido. De volta às atividades no Palácio do Planalto, depois de dias afastado recuperando-se de uma cirurgia, ele não abrirá mão de continuar trabalhando nesta direção, mesmo que desagrade aos senhores da guerra e a setores progressistas que gostariam de vê-lo ao lado dos que combatem Israel.
Em solidariedade aos palestinos, Petro declarou que “não apoiamos genocídios” e admitiu que poderá romper relações com Israel. Sua fala aconteceu após o governo de Netanyahu convocar sua embaixadora em Bogotá em reprimenda às críticas do governante colombiano aos ataques a Gaza.
Se é para lá de vergonhosa a cobertura que a mídia brasileira, TV Globo à frente, vem realizando sobre esse conflito, ela também não tem feito as devidas conexões entre dois outros assuntos que guardam relação direta com Israel e os Estados Unidos. O primeiro diz respeito ao escândalo da espionagem ilegal, realizada por dirigentes e técnicos da Agência Brasileira de Informação (ABIN), durante o governo de Jair Bolsonaro. O segundo se refere à conexão existente entre os grandes grupos financeiros dos Estados Unidos e o candidato de extrema-direita à presidência da Argentina, Javier Milei.
Os argentinos vão às urnas, em primeiro turno, neste domingo (22/10).
Valendo-se de tecnologia israelense, integrantes da ABIN monitoraram irregularmente a localização de celulares de políticos, policiais, jornalistas e até mesmo juízes brasileiros. O objetivo parece convergir para as ações golpistas de Bolsonaro, cujo indiciamento por vários crimes nos atos de 8 de janeiro foi solicitado à Justiça no relatório final da CPMI do Congresso Nacional, divulgado na última quarta-feira.
Não é exagero imaginar que as constantes e inexplicáveis viagens do clã Bolsonaro a Israel possam ter tido como objetivo conseguir softwares para atuações contra adversários. Além de políticos de extrema-direita e amigos, Bolsonaro e Netanyahu têm em comum o ódio a setores do PT, em especial à ex-presidente Dilma Rousseff.
Quem se recorda que Dilma, em 2015, não aceitou as credenciais do embaixador israelense Dani Dayas, um empresário de origem argentina, por ele viver em um assentamento no território ocupado palestino e ter sido acusado de violar o direito internacional? Israel só voltou a ter embaixador no Brasil em 2017, quando o golpista Michel Temer já estava no poder.
Israel é tema presente nas eleições argentinas há pelo menos quatro décadas, desde o ataque terrorista à sede de uma entidade judia em Buenos Aires. Com a maior comunidade judaica fora de Israel, o episódio levou os adversários da ex-presidente e atual vice, Cristina Kirchner, a tentar forjar uma conexão entre ela e os supostos responsáveis pelo ataque. O Caso Niesman, como ficou conhecido, é uma espécie de Operação Lava Jato portenha, com direito à série na Netflix.
Os candidatos que disputam a Casa Rosada nas eleições deste ano têm evitado condenar o governo de Netanyahu temendo perder votos.
A disputa está extremamente acirrada. O peronista Sérgio Massa, atual ministro da Economia, aparece nas últimas pesquisas empatado ou pouco atrás do extremista de direita, Javier Milei. A legislação argentina permite que um ministro dispute mesmo permanecendo no cargo.
Milei, que se apresenta como candidato “contra hegemônico”, é infinitamente mais nocivo que Bolsonaro. Ele promete extinguir o banco central, dolarizar a economia, privatizar tudo (educação, saúde, previdência social, empresa aérea e a estatal de petróleo). Defende que seja liberada a comercialização de órgãos humanos, bem como de bebes e já elencou entre suas primeiras providências no plano internacional sair do Mercosul, romper com a China, com o BRICS e com o Papa.
Detalhe: Argentina e Brasil são sócios fundadores do Mercosul. A Argentina acaba de ser admitida na primeira – e disputadíssima – ampliação do BRICS e a China, além de principal parceiro econômico do país, impediu, mediante recente empréstimo, que o governo de Alberto Fernández ficasse inadimplente e sofresse sansões pela enorme dívida junto ao FMI, contraída por seu antecessor, o neoliberal Maurício Macri. Quanto ao papa Francisco, ele é o primeiro argentino e latino-americano a chegar ao topo na hierarquia do Vaticano.
Se alguém tinha dúvidas de que Milei, como Bolsonaro, é um legítimo representante dos interesses de grandes grupos financeiros estadunidenses, não há como mantê-las. Nas últimas semanas, esses grupos nem disfarçam mais esse apoio.
Além do lobby sionista ter fortíssima presença na Argentina, o país viveu a maior parte do século XX e início do XXI sob imperialismo inglês não declarado. As recentes exceções foram os anos em que o peronismo mais à esquerda esteve no poder, com Néstor e Cristina Kirchner.
Não por acaso Cristina enfrentou e continua enfrentando lawfare semelhante às acusações mentirosas contra Lula. A guerra híbrida desencadeada pelos Estados Unidos contra o Brasil, que derrubou Dilma, impediu o retorno de Lula ao poder em 2018, e teve em Bolsonaro um aliado incondicional, segue na Argentina.
Exemplo disso é que o jornal O Estado de S. Paulo criou uma fake news que foi utilizada por Milei para acusar o governo Lula de interferir nas eleições em seu país. A mentira consistiu em atribuir ao governo Lula a aprovação do empréstimo da Comunidade Andina de Fomento (CAF) em benefício da Argentina. O jornal, cuja relação com os golpistas brasileiros é notória, publicou que o objetivo do empréstimo era auxiliar na renegociação da dívida argentina com o FMI, o que acabaria por favorecer a candidatura de Massa.
Tanto o Palácio do Planalto quanto a ministra do Planejamento, Simone Tebet, desmentiram, lembrando que o Brasil tinha apenas um voto num colegiado composto por 21 países. A concessão do empréstimo venceu por 19 votos. Além de turbinar as redes sociais de Milei, a fake news do matutino paulista serviu para que a oposição bolsonarista criasse problemas internos para o governo Lula, a exemplo da convocação da ministra Tebet para prestar explicações no Senado.
Por tudo isso, enquanto Lula fala em paz, busca a integração latino-americana e trabalha por um mundo multipolar, Biden, Netanyahu e Milei fazem profissão de fé num neoliberalismo tão extremado que se assemelha ao nazismo e ao fascismo de meados do século passado.
Em certos aspectos, eles até parecem dispostos a repetir esses processos. Afinal, como lembra o consagrado cineasta estadunidense Oliver Stone, os grandes grupos empresariais do seu país e seus aliados mundo a fora, sempre perdem dinheiro quando reinas a paz.
Tempos terríveis, onde defender a paz é crime e fomentar a guerra merece elogios da mídia.
Uma apologia à insensatez!