Alex M. S. Aguiar(1)
Engº Civil, Mestre e doutorando em saneamento
(UFMG), diretor do SENGE-MG
O Brasil viveu um movimento de intensa divulgação por meio da mídia convencional do déficit dos serviços de saneamento básico em seu território. Esse momento serviu – de modo programado – para sustentar a aprovação no Congresso Nacional e a publicação pelo Executivo da Lei 14.026, em julho de 2020, que deu início ao processo de privatização dos serviços de saneamento básico em nosso país, em especial do abastecimento de água e de esgotamento sanitário.
Até a publicação da Lei 14.026, pouca discussão foi travada, permitindo a disseminação de um quadro bastante negativo da prestação pública desses serviços, tanto por meio de empresas municipais quanto das concessionárias estaduais – como a Sabesp (SP), a Cedae (RJ) e a Copasa (MG).
A ausência de discussão não evitou a manifestação da ala contrária à privatização, mas essa teve uma participação extremamente restrita junto aos meios de comunicação, inclusive via as redes sociais, tornando o debate absolutamente desigual. Enquanto a ala privatista contou com matérias e editais diários ou semanais em jornais de grande circulação no país e na televisão, os grupos contrários à privatização se viraram como podiam com “lives” em canais do YouTube®, usualmente com audiências pequenas e com pouca repercussão.
Os efeitos da aprovação da Lei 14.026 se desdobram ainda. Foram realizados leilões em AL, RJ, RS, AP, e em diversos municípios brasileiros. Estão em andamento as discussões para privatização da Sabesp (SP) e da Copasa (MG), e diversos municípios preparam suas licitações, com prefeitos ávidos pelas outorgas para exploração desses serviços em seus territórios.
A polarização “público x privado” no âmbito da prestação dos serviços de saneamento conta com a integralidade da polarização política que o país viveu nesse período pós impeachment da Presidenta Dilma Roussef – inclusive no que diz respeito às fake news, propagadas sem o menor constrangimento por aqueles que querem defender a qualquer custo seus pontos de vista. Assim, vão criando corpo e se aproximando de falácias perigosamente enraizadas na cultura das pessoas afirmações sobre “a maior eficiência privada”; sobre a “culpabilidade das empresas públicas no déficit do saneamento no país”; ou sobre “a importância da competição (licitação) para prestação dos serviços.”
A prestação dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário não se resume a preto e branco: tem mais tons de cinza do que se imagina. São incontáveis variáveis, desde as meramente associadas à gestão administrativa dos contratos firmados, até questões cujas especificidades variam de local para local (questões de disponibilidade de água e segurança hídrica; desigualdades sociais; níveis de pobreza; magnitude e prevalência de efeitos climáticos etc.). Entretanto, alguns aspectos são evidentes, confirmados aqui e em qualquer lugar do mundo – como, por exemplo, o aumento dos preços quando a prestação é privada. A “agilidade” das empresas privadas, assegurada pelo arcabouço legal a que se subordinam, e que difere daquele ao qual se subordinam os prestadores públicos, é frequentemente confundida com “eficiência econômica”. Essa, quando existente, advém de extrema contenção de despesas, procedimento que inclui o pagamento de baixos salários, menores benefícios aos empregados, e outras estratégias que visam apenas um objetivo: maximizar seus lucros e remunerar mais e melhor seus acionistas (donos). Assim, quaisquer reduções nos custos dos serviços têm como endereço não o bolso do consumidor (ou usuário dos serviços), mas o caixa do prestador privado. E os preços aumentam com esse fim.
Em Minas Gerais, a cidade de Pará de Minas, na região central do Estado, era atendida pela Copasa até que, no ano de 2015, privatizou os serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário. À época, a licitação foi vencida com a oferta pelo licitante vencedor de um desconto de 3% sobre a tarifa então praticada pela Copasa. Os dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) referentes ao ano de 2022 mostram que a Copasa tem indicadores de “receita direta sobre os serviços” (o quanto é apurado pelas contas emitidas aos usuários) sobre o número de economias (número de unidades consumidoras – uma casa ou um apartamento, por exemplo) de R$704,86/economia.ano para água, e de R$512,59/economia.ano para esgoto. Em outras palavras: em média, uma família pagou em 2022 à Copasa R$704,86 pela água e R$512,59 pela coleta e tratamento dos esgotos. Em Pará de Minas, que deixou de ser atendida pela Copasa e privatizou seus serviços em 2015, os dados do SNIS apontam para indicadores da receita direta por economia os valores de R$775,03 para água, e R$730,43 para esgoto – valores 10% e 43% mais caros que os da Copasa, respectivamente. Isso significa que, em média, as famílias em Pará de Minas estão pagando bem mais do que pagariam se ainda estivessem sendo atendidas pela Copasa. Os 3% de descontos que deram a vitória na licitação há muito foram para o espaço.
A comparação do mesmo indicador com duas cidades de porte e características semelhantes a Pará de Minas, mas atendidas pela Copasa, confirmam a constatação de pagamento superior pelas famílias em Pará de Minas:
Valores da Receita Direta por Economia – Ano 2022
Parâmetro | Pará de Minas | Nova Serrana | Vespasiano |
Nº de Economias – Água | 42.308 | 42.185 | 45.460 |
Nº de Economias – Esgoto | 40.658 | 41.748 | 42.772 |
Relação EcE/EcA | 96% | 99% | 94% |
Índice de Tratamento do Esgoto Coletado | 100% | 100% | 100% |
Receita Direta – Água (R$) | 32.789.773,86 | 25.012.918,90 | 29.823.355,61 |
Receita Direta – Esgoto (R$) | 29.697.831,91 | 18.376.553,75 | 18.599.836,77 |
Receita Direta (Água)/EcA (R$/ECA) | 775,03 | 592,93 | 656,04 |
Receita Direta (Esgoto)/EcE (R$/ECE) | 730,43 | 440,18 | 434,86 |
FONTE: SNIS 2022
Essa não é uma prerrogativa exclusiva do prestador privado de Pará de Minas. Os dados do SNIS mostram que a receita direta por economia também cresceu no Rio de Janeiro, com a chamada “privatização da CEDAE”.
No Bloco 1, em 2022 constituído de 19 municípios, a receita direta por economia resultou em valores de R$1.182,58 e R$1.534,87 por economia de água e de esgoto, respectivamente. Esses valores se mostram 12% e 29% mais elevados que a média apurada para a Cedae nos quatro anos (2017-2020) que antecedem a aprovação da Lei 14.026, com os valores corrigidos pelo IPCA/IBGE para dezembro de 2022.
No Bloco 4, em 2022 constituído de 9 municípios, a receita direta por economia resultou em valores de R$1.179,24 e R$1.324,29 por economia de água e de esgoto, respectivamente. Esses valores se mostram 12% e 11% mais elevados que a média apurada para a Cedae nos quatro anos (2017-2020) que antecedem a aprovação da Lei 14.026. Para esses anos, os valores também foram corrigidos pelo IPCA/IBGE para dezembro de 2022.
A privatização dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário em curso no Brasil não encontra similaridade no resto do mundo. Ao contrário, enquanto testemunhamos a remunicipalização, a reestatização e a renacionalização desses serviços em mais de 300 locais do planeta, além da falência do modelo privatista britânico, vemos o Brasil sem forças para evitar que os interesses particulares se sobressaiam sobre o interesse público – particularmente perigoso nas áreas onde tratamos de bens essenciais à vida, como a água.
Privatizar o abastecimento de água e o esgotamento sanitário sai caro para quem usa o sistema – as eventuais vantagens financeiras iniciais desaparecem rapidamente – e, principalmente, para quem tem pouca capacidade de pagar pelos serviços. Esses últimos nunca foram, não são, e não serão jamais o foco de atendimento dos prestadores privados. A privatização de serviços essenciais à vida de todas as pessoas, como água e esgotamento sanitário, põe em risco a realização dos direitos humanos de acesso a esses serviços, e conflita com compromissos internacionais assumidos pelo país na realização desses direitos.
Sob atual governo federal temos tido mostras de continuidade da política privatista instituída por Bolsonaro. Nada tem sido feito com vista a direcionar as políticas e os recursos públicos para onde se encontra efetivamente o déficit dos serviços: aqueles que não podem pagar por eles.
Se Lula não intervir de alguma forma na insistência em fazer do país uma economia de mercado, pauta defendida por parte de seu atual governo e sua “base de apoio”, corremos o risco de nos transformamos mesmo é em uma sociedade de mercado, como pretendeu o governo que o antecedeu. E, sob a perspectiva dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário, virar de vez as costas àqueles que mais precisam, e que precisaram sempre.
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