Angela Carrato – Jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

Neste domingo, 31 de março, o golpe civil-militar, que mergulhou o Brasil numa ditadura que durou 21 anos, completa 60 anos.

Não há, obviamente, motivos para quaisquer comemorações. Mas há, de sobra, razões para lembrar o que se passou e, sobretudo, entender como a maioria da população brasileira acabou sendo levada a aceitar a derrubada de João Goulart, um presidente democraticamente eleito, que queria colocar o país na rota do desenvolvimento econômico, social e da soberania nacional.

Entender o que se passou em 1964 significa, guardadas as devidas proporções, entender o que se passa nos dias atuais, uma vez que os motivos que animavam os golpistas daquela época são praticamente os mesmos dos setores que hoje se colocam contra o terceiro governo Lula.

Entre os golpistas de ontem e de hoje estão os donos da mídia corporativa, meia dúzia de empresários que controlam perto de 90% de tudo o que a população brasileira lê, assiste e escuta, um dos maiores monopólios de que se tem notícia no planeta.

Historicamente, essa mídia sempre se bateu contra os poucos governos progressistas que o país já teve. O suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, não teria acontecido se não fosse a sórdida campanha (“mar de lama”) que jornais e emissoras de rádio daquela época fizeram contra ele.

João Goulart, o herdeiro político de Vargas, foi derrubado a partir da igualmente sórdida campanha que o identificava ao comunismo, logo ele que era um rico proprietário de terras e criador de gado no Rio Grande do Sul. O que Goulart pretendia, com as Reformas de Base, era que o Brasil ingressasse no século XX, enfrentando a má distribuição de terras, as péssimas condições de vida e trabalho da maioria da população e, sobretudo, não continuasse sendo uma espécie de quintal dos Estados Unidos.

O golpe contra Dilma Rousseff, em 2016, mentirosamente denominado de impeachment por essa mídia, teve como motivo principal o mesmo do suicídio de Vargas: a defesa dos recursos naturais, do petróleo e da Petrobras. Quem se lembra que esta mídia chegou a noticiar que Dilma disse que não iria renunciar, fugir ou se matar? No auge da campanha contra ela, a frase soava como algo prepotente. Não era. Dilma apenas deixava claro que conhecia bem a história e sabia de onde vinham os petardos.

Por trás da prisão, sem crime, do então ex-presidente Lula, em 2018, estava essa mesma mídia que, ao endeusar a Operação Lava Lato, passou para a maioria da população a falsa ideia de quem eram os mocinhos e os bandidos.

A Lava Jato já está mais do que desmoralizada, mas a mídia corporativa brasileira, à frente Grupo Globo e os jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, não desiste de tentar revive-la, orquestrando, eles próprios, campanha com objetivo de transformar em noticias ruins ações adequadas e positivas do atual governo.

É importante lembrar que essa mídia, que insiste em criticar e desgastar o terceiro governo Lula, foi a mesma que passou pano para os quatro anos de desmandos de Bolsonaro e já faz, ainda que de forma discreta, campanha pela anistia aos golpistas de 8 de janeiro de 2023.
Vamos aos fatos.

Qualquer mídia minimamente séria teria noticiado com o devido destaque que o país bateu em fevereiro um recorde da maior importância: gerou 306 mil empregos com carteira assinada, o maior número para esse mês em toda a história. Novos empregos de qualidade se transformaram em sonhos para as pessoas. Os governos golpistas Temer e Bolsonaro jogaram o país em índices estratosféricos de desemprego e o primeiro aprovou uma reforma dita trabalhista que cortou direitos e praticamente estabeleceu a informalidade como regra nas relações de trabalho.

Pois não é que a mídia corporativa fez de tudo para transformar uma notícia excelente em algo ruim! Como não havia como questionar o número dos novos empregos, tratou de relativizar sua importância e cercar o fato com o fantasma da volta da inflação. Para tanto se valeu da posição do Banco Central “independente”, cujo presidente é um sabido bolsonarista, Roberto Campos Neto, que além de advertir para os riscos da volta do “dragão”, também sinalizou com o possível fim no corte da taxa de juros.

Mesmo sendo mentira que haja risco de volta da inflação por esse motivo, a mídia insiste na tecla. Baixa remuneração e desemprego fazem parte do kit de exploração máxima que caracteriza a classe dominante brasileira, da qual os donos da mídia são parte integrante.

Na linha do transformar boas em más notícias, essa mídia continua insistindo “nos riscos da interferência do governo na Petrobras e na mineradora Vale”, anunciando, como o fez em editorial O Globo na última quinta-feira, que os investidores podem se sentir “afugentados”. Nada mais mentiroso!

Em primeiro lugar é preciso que as pessoas saibam que tanto no caso dos novos empregos quanto em se tratando da Petrobras e da Vale, essa mídia não cobre o assunto. Ela defende seus próprios interesses e os interesses imperialistas à revelia da maioria da população brasileira. Ela preferia que dividendos bilionários continuassem sendo distribuídos para meia dúzia de tubarões (ela própria um deles) ao invés de vê-los investidos no desenvolvimento do Brasil. Se isso é gritante em se tratando da Petrobras, torna-se tapa na cara dos brasileiros, quando se sabe que a atual gestão da mineradora Vale privatizada foi responsável pela morte de centenas de pessoas e pela destruição de amplas regiões e rios em Minas Gerais.

Não me recordo dessa mídia ter demonstrado indignação ou fosse buscar as raízes dos crimes humano e ambiental em Bento Rodrigues e Brumadinho, que chocaram o país.

São inúmeros os exemplos de como essa mídia age para desgastar o terceiro governo Lula e é importante que fique claro que isso não se dá por acaso. Faz parte de uma campanha cuidadosamente articulada, planejada e colocada em prática. Nesse sentido, a manchete da Folha de S. Paulo da última quinta-feira é exemplar.

Do nada, os institutos de pesquisa que andaram sumidos nos governos golpistas, estão de volta. A pesquisa que gerou a manchete da Folha diz respeito à avaliação da população brasileira em relação ao Senado e à Câmara dos Deputados. Elaborada pelo DataFolha, instituto que pertence ao próprio jornal, ela indicou uma pequena melhoria na percepção das pessoas em relação ao Legislativo. Foi o suficiente para o jornal manchetar: “Câmara e Senado têm melhor avaliação em 21 anos de DataFolha”.

Para quem está acostumado com ardis, tal manchete soa como uma espécie de complementação de outras que, nas semanas anteriores, davam conta da queda de avaliação do governo Lula. Dito de outra forma, enquanto a mídia tenta passar para a população que o terceiro governo Lula vai mal, com avaliação positiva “apenas” na casa dos 35%, faz de tudo para incutir na cabeça do cidadão comum que um Legislativo que tem 22% de aprovação vai bem.

O nome disso é manipulação, mas poucos se dão conta. Mais ainda: depois que se tornou público que a Folha divulgou como matéria jornalística publicidade milionária do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, e, a partir daí, vem destacando “aspectos positivos” de sua gestão, é bom ficar de olho na cobertura que o jornal dos Frias dá para o bolsonarista Arthur Lira, presidente da Câmara, e para o escorregadio Rodrigo Pacheco, presidente do Senado.

Chefe do Centrão, Lira, cujas atividades políticas e empresariais merecem reportagens investigativas que nunca são feitas, tem sido tratado a pão de ló por esta mídia, que vê nele um aliado. Não por acaso, ele é também um dos principais adversários de Lula. Ninguém pode perder de vista que o governo não tem maioria na Câmara e para a aprovação de qualquer medida de interesse popular, tem que negociar com Lira. O mesmo se dando em relação a Pacheco.

Se fosse para noticiar o que acontece, era para essa mídia estar mostrando as chantagens que Lira e Pacheco fazem permanentemente contra o governo. Não se trata, como alguns alegam, de parte do jogo democrático. Não é competência de o Legislativo abocanhar amplos nacos do orçamento da União, mas isso tem acontecido sob o silêncio de jornais, emissoras de rádio, de TV e de seus comentaristas amestrados.

A divulgação de outra pesquisa, dessa vez por parte do controvertido Instituto Paraná, paga pelo PP, uma das agremiações bolsonaristas que integram o Centrão, vem se somar a essa campanha, pois visou pesquisar o ambiente político eleitoral. Do nada, o instituto divulga, com ampla repercussão na mídia, que num eventual embate hoje entre Lula e Bolsonaro, Lula teria 41,6% e Bolsonaro 41,7%, empate técnico.

Em si a pesquisa é uma provocação às instituições brasileiras, uma vez que Bolsonaro está inelegível por oito anos. Mais grave ainda: no momento em que a Justiça analisa se, ao permanecer dois dias na Embaixada da Hungria, após ter seu passaporte aprendido, o ex-presidente descumpriu medidas disciplinares, a pesquisa funciona como combustível para alimentar o fanatismo dos seus seguidores e tentar inibir que a lei seja cumprida.

Era para a mídia estar cobrindo todos os passos de Bolsonaro, se tivesse – o que não é o caso – compromisso mínimo com a informação. Tanto não tem que foi pelo jornal estadunidense The New York Times que a população brasileira ficou sabendo, na última segunda-feira, da estranha presença e hospedagem do ex-capitão na embaixada da Hungria.

Ele e sua defesa dizem que seria “ilógico” pensar em fuga, mas tudo indica que sua intenção era pedir asilo político para o governo de um país governado pela extrema- direita e por um político que ele considera amigo, o primeiro-ministro Viktor Orbán.

Esse assunto, que teve enorme repercussão na mídia internacional, praticamente já sumiu da mídia local, deixando claro como ela está fechada com a campanha que se desenvolve nos bastidores para que os golpistas de 8 de janeiro sejam anistiados. À frente desta campanha estão setores militares, os parlamentares do Centrão e, discretamente, o próprio Lira. É o Legislativo que teria que aprova tal anistia.

Ligando os pontos, faz sentido a manchete da Folha procurando melhorar a imagem da Câmara dos Deputados e do Senado, não é mesmo?

Não faltam, portanto, exemplos de como a mídia brasileira age em sua sanha golpista contra o terceiro governo Lula. Tão importante quanto saber identificar este tipo de atuação é denunciar o que ela faz. Sua atuação hoje é a mesma de seis décadas atrás, com a diferença que, nesse período, suas técnicas de manipulação, silenciamento e persuasão se sofisticaram e ela tem a desculpa de jogar para as redes sociais a culpa pelas mentiras que ela própria cria e divulga. Nesse aspecto, mídia corporativa e redes sociais estão juntas e afinadas.

Por tudo isso, o balanço desses 60 anos do golpe de 1964 está longe de uma conclusão. Tivemos a redemocratização, a eleição direta de péssimos governantes como Collor, FHC e Bolsonaro, para os quais a mídia desempenhou papel fundamental para que chegassem ao poder e lá permanecessem. Tivemos também a eleição de governos progressistas como foram os dois primeiros de Lula e o primeiro de Dilma, pois o segundo na prática não existiu. Esses governos, no entanto, foram hostilizados e permanentemente emparedados pela mídia, a ponto de Dilma ter sido derrubada.

O papel da mídia para a eleição de Bolsonaro e sua permanência no poder é por demais conhecido, mesmo sendo o pior presidente de toda a história republicana.

Se o golpe de 8 de janeiro tivesse sido vitorioso, possivelmente essa mídia estaria, como sempre, se referindo aos ditadores de forma muito respeitosa, como fez durante 21 anos, e exigindo cadeia para todos que defendem os interesses nacionais. Por tudo isso, é fundamental que Bolsonaro e demais golpistas sejam julgados e recebam a devida punição.

Foi um erro anistiar, no passado, militares golpistas, como será um erro anistiar golpistas agora. Sem a anistia em 1979 para quem golpeou, matou e torturou, dificilmente teríamos o golpe contra Dilma e a tentativa de golpe em 8 de janeiro. O espírito que aninou esses episódios é o mesmo e vários de seus personagens também.

Quanto à mídia golpista, mesmo o governo Lula indo bem, ela continuará tentando fazer de tudo para desgastá-lo e, se possível, derrubá-lo. A população brasileira precisa estar atenta para inibir novas tentativas de golpe. Essa talvez seja a principal lição a se tirar dessas últimas seis décadas.

Se não conseguirmos fazer com que a democracia avance, daqui a 60 anos as novas gerações continuarão se debatendo para entender as razões pelas quais governos progressistas não conseguem avançar no Brasil.