Jorge e Deusa Prado, dois baianos muito diferentes entre si, mas que se complementam. Jorge, o jacobinense cerimonioso e solene, na sua real compostura, e Deusa, a libertária convicta, uma coiteense da gema, que nasceu para brilhar. Jorge levanta a bola e Deusa, com o seu desembaraço descontraído chuta, em tiro reto ou, com efeito, sem direção, ou alinhado, tanto faz, ela pontapeia no impulso, e Jorge torce para que o petardo não vitime algo, na sua errática trajetória. Mas, via de regra, alguma montra se espatifa, mas, como a Deusa é a Deusa, e o chute não foge do contexto, fica por isso mesmo.

Estávamos no muquifo, como adjetivado por ela, uma dependência do restaurante Alguidares, de propriedade do casal, pequeno apartamento de trânsito, mormente usado como albergue, quando eles se encontram em trânsito por Belo Horizonte, vindos de Salvador.

Naquela tarde celebrávamos alguma coisa, como feito ocasionalmente, e não importava o motivo da comemoração, desde que fosse regada a bom vinho, libado com fervor, em total desrespeito ao profeta Isaías, em 5:11 . O vinho estava presente, generoso e de qualidade, e a conversa fluindo solta, com o Jorge mantendo a postura de diplomata e a Deusa, despojada, na descontração típica de quem joga bolinha de gude com a meninada.

Por volta das onze da noite tocou, na rua, defronte o apartamento, que fica ao rés do chão, o som de alarme de carro, cujo tinido, de pronto, aterrou-me. A minha camionete, que não estava no seguro e não contava com uma tranca sequer, seria presa fácil e saí afoito para averiguar, seguido pelo Brando Mota, o sócio que, apesar dos seus afazeres no setor bancário, também carrega o piano no restaurante.

Mas, uma mera coincidência, em face de alarme de outro veículo, estacionado próximo, cuja codificação, idêntica ao meu, fez soar a buzina da camioneta. Contudo, não deu para comemorar. Vindo do nada e subitamente, parou ao nosso lado, rente à calçada, um carro com quatro ocupantes. Dois deles desceram aos berros, gritando “perdeu, perdeu”, e de arma em punho. Ficamos pasmos e tomados de grande desconforto, em face da visão dos canos das armas roçando os nossos narizes. Eu havia bebido além da conta, estava sofrendo o meu quarto assalto e tinha know how. Tomei a dianteira, ouvindo “cala a boca, filho da puta”, e “vou lhe dar um tiro na cara”, e com o olhar vazio, sem fixar o assaltante, disse estar tudo bem, a mesma frase que nos filmes alguém fala para o sujeito que teve a perna amputada pela locomotiva e se esvai em sangue. Respirei, em suspiro, e informei estarmos, todos, com sorte, porque eu tinha, casualmente, na carteira, cinco notas de cem reais. A malandragem se iluminou, eufórica, enquanto eu contava o dinheiro e preservava, face ao entusiasmo da galera, os meus cartões de crédito e o telefone celular alojado no bolso traseiro das calças. Brando não teve a mesma sorte e acabou tomando uns cascudos, porque a sua contribuição financeira não parecia satisfatória às circunstâncias.

Em meio à confusão, recheada de gritos, armas e com a carteira do Brando sendo chutada por um dos ladrões e esparramado documentos pela rua, surge, descontraído, o Romero Niquini, velho amigo, que participava do encontro e também havia saído, retardatário, para conferir o disparo do alarme. Diante do assalto, Romero, que já teve vários dos seus gerentes sequestrados, em São Paulo, e que mal havia ultrapassado a soleira da porta, retornou ao apartamento apressado e andando de costas. Chegou sussurrando, com os olhos esbugalhados, caminhando na posição típica de quem tentava se esconder do perigo, tendo o corpo arqueado e o dedo indicador em riste, postado no centro da boca e com a unha lhe roçando o nariz: “é um assalto, um assalto, tranquem a porta, eles estão sendo assaltados!!!!”. Deusa, alegórica, como sempre, entrou em cena de modo triunfal. Colocando em repouso a taça de vinho, subiu no encosto do sofá, alcançou o basculante que projetava visão para a calçada, sendo apoiada pelo Jorge, que lhe amparava as nádegas, e com a cabeça entalada entre as partes moveis da janela, gritou: “canalhas, tarados, pedófilos, filhos daquilo e coisa, e tal, socorro, polícia!!!” A gritaria da Deusa, que debulhou verbosidade estéril, de ocasião, e taludos impropérios, foi um desastre. Jorge e Romero, sob os olhares atônitos da Anna e da Fernanda, também presentes, se esforçavam tentando livrar a sua cabeça, presa no basculante, enquanto os ladrões, desorientados, não sabiam se atiravam na histérica, no Brando, em mim, ou nos três, em simultâneo. Um deles gritava: “cala a boca, filha da puta, vou matar todo mundo!!!”. Outro ladrão, de dentro do carro, bramia: “mata a vagabunda!!!”. Apesar do meu autocontrole, comecei a admitir a importância da indústria de fraldões, desses que a 4ª. Idade costuma usar para se prevenir de eventuais e urgentes necessidades.

Não me lembro do porque e nem do como, mas os ladrões optaram por entrar no carro e sair rapidamente do local, acelerando ao máximo o motor do veículo.

De volta ao apartamento, alguém perguntou: vocês têm Isordil sublingual ( remédio para o coração ), em casa? Não, não temos, disse o Jorge. E vinho? Esse não falta, respondeu. Então, atalhou o Romero, vamos beber… e a noite avançou sob o manto das narrativas, que se tornaram divertidas, apesar de trágicas