2ª. Parte

Sem me dar por vencido, agradeci à Polícia, toquei fogo na vela e saí rápido…

A presença do Telles se esgueirando em meio à insônia, que me submetia a vigília compulsória, era, por si só, suficiente para trazer-me desconfortável incômodo; imaginá-lo levitando e transmutado em vulto, por entre os cômodos da casa, era assustador. Assim, procurei ajuda. Carmem me indicou centro espírita seu conhecido e para lá fomos, e conosco a Anna, minha esposa. O centro tinha como médium coordenadora dos trabalhos uma médica de reconhecida idoneidade, senhora de cabelos brancos, que aparentava uns sessenta anos. O orientador das sessões e também médium, major da Polícia Militar, nos colocou na lista de atendimento. Fomos chamados e recebidos em pequeno cômodo, aonde a médium, já incorporada, desempenhava a sua missão. Se dirigindo a mim, que me encontrava sob a soleira da porta, ela disse: “o senhor pode entrar, mas o desencarnado, que o acompanha, espera do lado de fora”. Entramos os três, contando com a Anna e a Carmem, e o Fernando sobrou. A médium, mediante anuência dos seus guias espirituais, incorporou o Telles, que se apresentou lamuriante e extremamente infeliz. Não disse coisa com coisa, mas reclamou por se encontrar no outro plano em lugar sombrio e estar absolutamente solo. Disse que viria buscar a Carmem e retornou para o lugar de onde veio, em meio a soluços compulsivos e o balbucio de palavras ininteligíveis. Carmem não passou recibo, mas sentiu o golpe. A médium nos alertou sobre o espírito sofredor, que nos acompanhava, e disse que seria penoso colocá-lo no caminho da luz. Agradecemos e fomos embora e, certamente, levando conosco o encosto.

A presença do Fernando, em meio a noites mal dormidas, continuou. Telefonei para o amigo Roney Torres, Procurador do Estado, diligente estudioso de fenômenos paranormais e das modulações da espiritualidade, e pedi socorro. Ele me indicou outro centro espírita, no bairro Jaraguá, da linha do candomblé, dirigido por outra também psicóloga, uma jovem e bonita senhora, de refinada educação. Ela incorporou o Orixá Obaluaiê, divindade relacionada com a medicina, que no sincretismo se espelha nas figuras de São Lázaro e São Roque, a cuja entidade saudei com o devido atotô. O Orixá, mediante os prolegômenos de praxe e de marcante presença, alertou, de imediato, que eu estava com sérios problemas. Segundo a entidade, o espírito que me assombrava era muito esclarecido, e não se submeteria aos rituais que ele bem conhecia e que também praticara na vida terrena. Concluiu o Orixá dizendo que eu ia ter que aguentar o tranco, e que o Fernando só seguiria toada quando se desse por satisfeito com a realização do seu propósito, fosse ele qual fosse.

A angústia me dominou e no dia seguinte compareci a tradicional igreja católica, situada no bairro do Carmo. Levei uma lista com cem nomes de amigos e parentes desencarnados, aos quais eu pediria ajuda no tocante ao esclarecimento do espírito do Telles. Encomendei a missa de súplica, na secretaria da Igreja, recomendando a leitura dos nomes de todos os suplicados, e doei polpuda quantia pela celebração. Mas, a missa não aconteceu. Esperei por três semanas pelo aviso do evento, que não veio. Retornei à Igreja e pedi a devolução do dinheiro, o que me foi negado, por não ser usual, conforme dito. Saí à rua e pelo celular chamei a Polícia. A viatura chegou com um soldado e um cabo. O cabo ouviu a minha estória, me olhou por sobre os ombros e falou que o meu pedido era esquisito, muito fora do padrão usual, porque se referia também a espíritos e outras coisas do outro mundo. Alegou, ainda, o policial, que não poderia sequer lavrar o BO, sob pena de responder a alguma penalização, que certamente lhe seria imposta pelos seus superiores. A Polícia foi embora, mas não me conformei. Retornei ao recinto da Igreja, insisti e a oferta me foi devolvida. Não me vanglorio disto, mas, foi justo.

Na outra semana procurei a ajuda do Padre Eustáquio, religioso milagreiro, hoje santificado, cujo corpo se encontra enterrado na Igreja que leva o seu nome, em rua e bairro que o homenageiam. Na igreja, defronte o túmulo do beato, ornado com os adereços católicos e protegido por uma grade, que do mesmo não tira a visibilidade, contei a minha história, para espanto de alguns fiéis, que se encontravam no entorno. Confiante, na própria Igreja comprei uma vela de sete dias e fui até o velário próximo ao sepulcro, onde existia enorme bancada com dezenas de lumes, todos acesos e de tamanhos diversos. Acendi o meu e sob a vela deixei um bilhetinho, um lembrete, para o santo não se esquecer da minha demanda e da urgência do pedido. Sai em silêncio, pisando leve, contrito e esperançoso, mas a vela se apagou. Retornei ao velário, acendi-a novamente e ela recalcitrou. Insisti acendendo-a outra vez e saí rápido, escondendo-me por detrás de uma pilastra, mas, de olho na vela, que se apagou mais uma vez. O santo não está aceitando o meu pedido, deduzi. Enfim, sem me dar por vencido, toquei fogo na vela com vontade e saí rápido, sem olhar para trás, e quase blasfemei: vá se ferrar!!! Mas, felizmente, este ímpeto foi contido e me afastei com humildade e resignação.

Há, o Fernando, grande sacana, esse Telles, que me atormentava sob a forma de espírito arteiro e inquieto.

De novo, fui à luta. Quanto mais o Telles me assombrava, mais contra ele eu tramava, e a questão se transformou em bizarra cizânia, uma altercação com desconcerto mútuo, verdadeira queda de braços, até, então, com o Fernando em grotesca vantagem.

A minha última cartada estava na Ermida da Serra da Piedade, cujo Santuário, a 1700 metros de altitude, na serra de mesmo nome e localizado na cidade de Caeté, próxima a Belo Horizonte, tinha como vigário o Padre Marcos Gomes, velho amigo, que sucedeu o dominicano Frei Rosário Joffily e o Padre Virgílio Resi, ambos já falecidos. Contei a minha história e o padre não se surpreendeu. Segundo informou, a Igreja registra muitos casos semelhantes, e não foi além do comentário. Pedi que a missa, de encaminhamento da minha súplica, fosse celebrada na sexta-feira da Paixão. Disse o padre que isto não seria possível, porque é o único dia do ano em que, em nenhum lugar do mundo, é celebrada missa. Aduziu, contudo, que celebraria a missa no Sábado de Aleluia, que nominaria todos os cem nomes constantes da minha relação de amigos e parentes falecidos, que faria um pedido especial em prol de suas respectivas almas e da ajuda dos mesmos necessária ao esclarecimento espiritual do Telles, bem como ofereceria a missa também e especialmente, ao próprio Fernando. E, assim aconteceu, tendo sido a missa celebrada às seis horas da manhã, no sábado da ressurreição, e o Fernando Telles encontrou o seu caminho, GRAÇAS A DEUS…. e ao Padre Marcos.