Ângela Carrato – Jornalista. Professora da UFMG. Membro do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Imprensa (ABI)
Quando o presidente do Irã, Ebrahim Raisi, morreu em um acidente de helicóptero, há pouco mais de 10 dias, a mídia corporativa brasileira do nada o denominou de “carniceiro” e “ditador”. Raisi foi eleito há três anos e seu mandato iria até 2025. Não há contra ele qualquer evidência de que tenha mandado matar uma única pessoa.
Já o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, é o responsável direto pelo genocídio de 35 mil palestinos, a maioria mulheres e crianças na Faixa de Gaza, em pouco mais de sete meses.
No último domingo, para deixar bem claro que não acata decisões de quem quer que seja, mesmo vindas da Corte Internacional de Justiça, órgão máximo da ONU para deliberar sobre disputas entre Estados, Israel atacou a população de Rafah, no sul da Faixa de Gaza.
Dois dias antes, os juízes da Corte Internacional haviam ordenado que Israel interrompesse todas as operações militares em Rafah. Foi determinado, igualmente, que o governo israelense permitisse a entrada de ajuda humanitária aos palestinos, pela fronteira entre o sul de Gaza e o Egito, além de garantir o acesso de observadores externos.
O que fez Netanyahu? Ordenou que suas forças militares bombardeassem Rafah da forma mais bárbara e covarde. A cidade tem sido o lugar para onde cerca de 1,5 milhão de palestinos fugiram devido ao ataque de Israel ao resto do território em Gaza. Quarenta e cinco palestinos morreram queimados e os feridos, em sua maioria mulheres, idosos e crianças, ultrapassam uma centena em um acampamento considerado pelo próprio governo de Israel como “seguro”.
As cenas de palestinos sendo queimados vivos e de uma criança decapitada são tão chocantes, que muitos veículos de mídia corporativa preferiram não divulgá-las.
Mesmo assim, Netanyahu continua sendo tratado por essa mídia como se fosse um democrata e o conflito entre Israel e os palestinos uma guerra entre forças equivalentes.
Nem exército os palestinos possuem.
Na última segunda-feira, a mídia brasileira deu mais uma mostra de sua subserviência ao governo genocida de Israel. Governo que, como se sabe, apoia a extrema-direita no Brasil e tem em Jair Bolsonaro um aliado.
Diante da condenação de grande parte dos governos em todo o mundo ao ataque a Rafah, as manchetes destacavam apenas a posição de Netanyahu sobre o assunto: foi um “erro trágico”. Nenhum jornal, emissora de rádio ou de TV o chamou de carniceiro ou de genocida. Nenhum mencionou que ele sequer pediu desculpas pelo que aconteceu. É como se tivesse feito o que tinha que fazer e segue o extermínio dos palestinos.
Pelas cenas dantescas que tem patrocinado com suas forças “de defesa”, Netanyahu não deixa nada a dever a Adolf Hitler, o chanceler do Reich e Fuher da Alemanha nazista de 1934 a 1945. Hitler foi o responsável pela eliminação de seis milhões de judeus por ele considerados como “sub-humanos” e “socialmente indesejáveis”, confinados e mortos em campos de concentração, no que ficou conhecido como holocausto.
Não é coincidência o fato do atual ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, ter qualificado os palestinos como “animais humanos” para justificar que possam ser atacados de forma impiedosa. O sofrimento não ensinou nada a essa gente.
Apesar de tudo isso, como explicar que a mídia estadunidense e a brasileira continuem tratando Israel como uma democracia e jamais se refiram a Netanyahu como genocida, ditador ou carniceiro?
Uma possível explicação passa por conhecer o sionismo e a força do seu lobby junto ao governo dos Estados Unidos, na economia daquele país e na própria mídia. Lobby que tem presença fortíssima também no Brasil.
Nos Estados Unidos seu poder é tamanho, que leva o atual presidente, Joe Biden, a preferir perder a eleição em novembro a deixar de ser o financiador e sustentáculo das ações criminosas de Israel. Diante da crescente indignação mundial, Biden limita-se a tentar jogar para a plateia e faz criticas pontuais a Netanyahu.
Já no caso da mídia brasileira prevalece um equivocado e ultrapassado alinhamento automático aos interesses de Washington e um apoio meio que disfarçado à extrema-direita local de olho nas eleições municipais deste ano e na sucessão do próprio Lula, em 2026.
Entender esse processo exige, antes de qualquer coisa, um recuo na história.
Foi o sionismo enquanto movimento político que deu corpo à criação do Estado de Israel em 1947, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Surgido no século XIX na comunidade judia na Europa, ele buscava uma solução para a questão judaica. Naquela época, o antissemitismo – que é a discriminação contra os povos semitas, entre os quais está o judeu – crescia no continente.
Fugindo dessa discriminação, milhares de judeus passaram a imigrar anualmente para os Estados Unidos, onde encontraram um ambiente acolhedor e rapidamente conseguiram se apresentar como “superiores aos imigrantes árabes”. Já naquela época, os judeus se diziam “ocidentais, modernos e democráticos”, ao mesmo tempo em que designavam os árabes como “atrasados, medievais e avessos à democracia”.
Tudo não passava de puro preconceito, mas funcionou.
Além da imagem positiva, rapidamente setores da comunidade judaica enriqueceram e passaram a influir em diversos âmbitos da sociedade que os acolheu. Se os estadunidenses tinham na crença/ideologia do “Destino Manifesto” o marco zero da criação de seu país e da força que justifica o seu expansionismo/imperialismo, os judeus se consideram portadores de algo semelhante, ao lutarem por uma terra para construírem o seu Estado.
É dentro deste contexto que tem início, a partir dos anos 1940, a parceria da Casa Branca com as indústrias armamentista e da comunicação. Tão importante quanto a vitória pelas armas era conquistar o coração e mente das pessoas, papel atribuído desde então à mídia. Os Estados Unidos já projetavam que, antes mesmo do fim da Segunda Guerra, que tinha chegado o momento de consolidarem sua liderança no mundo.
O caso mais emblemático nesta parceria pelo ângulo da mídia foi o do empresário Henry Luce, fundador e mentor do grupo Time-Life, o estadunidense mais influente de sua época. Antes de lançar-se no rádio e na televisão, Luce já havia se consagrado com um conjunto de revistas campeãs nas quais se destacavam Time (que foi modelo para a Veja brasileira) e Life (copiada pela Manchete).
Interessava ao governo dos Estados Unidos, já em plena vigência da Guerra Fria, garantir o seu domínio sobre os países da América Latina e também ter o controle do Oriente Médio, locais para onde pretendia expandir seu “way of life” e seu “modelo de democracia”.
Em outras palavras, se os Estados Unidos viam a América Latina como uma espécie de “quintal”, Israel significava e significa para a Casa Branca um posto avançado para vigiar e controlar os árabes, grandes produtores de petróleo e, em vários momentos, aliados da União Soviética, enquanto ela existiu.
Ninguém melhor para auxiliar o establishment estadunidense nestas ações do que Luce.
Foi ele quem propôs ao empresário Roberto Marinho uma espécie de parceria, que se transformou em sociedade. Foi graças a esta sociedade que Marinho pode lançar, em 1965, a TV Globo.
Não faltoram na época denúncias da participação do capital estrangeiro na criação da emissora, o que ficou devidamente comprovado por CPI instituída pelo Congresso Nacional. Através de um minucioso trabalho conduzido pelo então deputado Roberto Saturnino, provou-se não só a presença deste capital, como o fato de Marinho ter infringido vários itens da Constituição então em vigor.
A punição deveria ter sido a perda da concessão para o funcionamento do canal. Isso só não aconteceu, porque os militares que deram golpe e chegaram ao poder em 1964, preferiram ignorar os resultados da CPI e transformaram a Globo em aliada. De aliada dos militares a apoiadora de golpes, a exemplo do que derrubou a então presidente Dilma Rousseff, em 2016, a família Marinho, proprietária do Grupo Globo, segue se posicionando e articulando contra os interesses da maioria da população brasileira e contra todo governo que tenha compromisso com esses interesses.
Daí a importância de se frisar que a origem e a trajetória da TV Globo, principal veículo do Grupo Globo, estão ligadas aos interesses da Casa Branca e do próprio Luce. Em comum, Luce e Marinho tinham a convicção sobre a “superioridade do Ocidente”, a necessidade de combater o comunismo e o apoio a Israel. Apoio que, no caso de Israel, se mantem, a despeito de todas as atrocidades que Netanyahu e os sionistas estão cometendo.
Um exemplo da subserviência do Jornal Nacional, o principal telejornal do Grupo Globo e da TV brasileira, aos interesses de Israel, foi a não divulgação, no dia em que se deu, do pedido de mandado de prisão pelo procurador do Tribunal Penal Internacional da ONU, Karim Khan, contra Netanyahu e o seu ministro Gallant.
O permanente passar pano para o governo israelense está presente também em quase todos os demais veículos da mídia corporativa brasileira. O bombardeio ao campo de refugiados em Rafah, dois dias após o pedido de prisão para Netanyahu feito pelo TPI, constitui uma criminosa resposta de Israel. Algo como: não há quem me faça parar. Mesmo assim, a mídia brasileira evitou tratar o assunto com a gravidade e importância que merece.
Como sempre faz nessas situações, o caminho foi enfatizar “a dor das pessoas”, sem indicar os responsáveis. O jornal Folha de S. Paulo, por exemplo, manchetou; “Sinto que vou enlouquecer, diz palestino após bombardeio”. Como se isso não bastasse, a publicação acrescentou que o “Hamas voltou a disparar foguetes contra Tel Aviv”, numa tentativa de igualar os ataques.
Em toda a mídia brasileira, o Hamas continua sendo apresentado como “grupo terrorista” e não como o partido que foi eleito e governa a Faixa de Gaza. Já o Exército de Israel é descrito como “força de defesa”, mesmo que sua especialidade seja atacar e matar.
Haja manipulações e preconceitos!
Publicações como O Globo e Estado de S. Paulo deram a mesma notícia de forma mais simplificada ainda, quase lacônica: “Israel bombardeia Rafah”. Nada sobre a tremenda crueldade contra os palestinos praticada por Israel e, menos ainda, nada sobre Netanyahu, que se sente e age como um ditador.
Até a TV Record e a Record News, emissoras do empresário/bispo Edir Macedo, dono da Igreja Universal do Reino de Deus, que possui notórias ligações com Israel e o sionismo, fizeram coberturas menos execráveis. Macedo nunca escondeu suas ligações com Bolsonaro e com Israel, enquanto as demais famílias donas da mídia brasileira tentam se passar por “imparciais”.
A subserviência da mídia brasileira ao lobby sionista fica mais nítida ainda, nas duras criticas que o presidente Lula recebeu, quando, em fevereiro, acusou Israel de cometer genocídio e comparou suas ações com a campanha de Hitler para exterminar os judeus. Em Adis Abeba, na Etiópia, onde participava da cúpula da União Africana, ele declarou textualmente: “o que está acontecendo na Faixa de Gaza não é uma guerra, mas um genocídio”.
A carnificina provocada por Israel em Rafah não só deu razão a Lula, como levou o mundo a uma indignação tamanha, que não deveria ter como a mídia brasileira desconhecer. Mas é exatamente isso que ela continua fazendo.
Na semana passada, três importantes países europeus – Espanha, Irlanda e Noruega – se somaram aos mais de 140 que já reconhecem a Palestina como um Estado. O assunto mereceu cobertura quase protocolar.
Ao todo 75% dos integrantes da ONU reconhecem o Estado da Palestina, independentemente do veto dos Estados Unidos. Aliás, a leitura que a Casa Branca faz neste processo em nada se diferencia daquela lá dos anos da Guerra Fria. O tio Sam insiste em desconhecer que o mundo mudou e que não há mais como tentar manter as decisões exclusivamente em suas mãos.
O mundo multipolar já é uma realidade.
A decisão do presidente Lula de remover o embaixador brasileiro de Israel, tomada nesta quarta-feira, e de não indicar nenhum nome para o posto foi um gesto claramente político. Bem ao seu estilo e mesmo não formalizando um rompimento de relações diplomáticas, como fez o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, Lula enviou uma clara mensagem sobre o nível de prioridade que o governo brasileiro atribui ao relacionamento com o governo israelense atual.
Mesmo com essa clara sinalização por parte de Lula e sabendo-se que, do ponto de vista econômico, as exportações brasileiras para Israel representam irrisórios 0,2% do total, não se deve descartar o peso e o poder de pressão do lobby sionista no Congresso Nacional, junto ao mercado financeiro e, obviamente, através da mídia. Em outras palavras, Lula deve se preparar para enfrentar maiores e ainda mais poderosas pressões.
Uma prova do peso do lobby sionista no Brasil é o fato do genocídio cometido por Netanyahu continuar conhecimento apenas por um grupo minoritário de pessoas e de uma maioria seguir apoiando Israel e considerá-lo, como fazem os neopentecostais, um “local sagrado”.
Essa situação deve começar a mudar, na medida em que a mídia corporativa brasileira, por mais mentirosa que seja, não terá mais como esconder que o mundo quer o fim do genocídio dos palestinos e a condenação de seus responsáveis.
O criminoso silêncio que persistiu até o momento, incluindo as universidades, os artistas e intelectuais, tem tudo para dar lugar a um intenso debate.
Não por acaso um grupo formado por 44 personalidades como artistas, escritores, advogados e intelectuais – incluindo judeus – assinou carta em que apoia medidas mais drásticas contra a “carnificina” em Gaza e pede que o Brasil corte relações diplomáticas e comerciais com Israel. Entre os signatários estão Chico Buarque e Gilberto Gil.
Quem sabe finalmente esta mídia comece a chamar Netanyahu pelo seu verdadeiro nome: o carniceiro de Tel Aviv.