Ângela Carrato – jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG
O relatório final da Equipe de Transição precisa ser conhecido pela população brasileira. Se a autointitulada “grande mídia” tivesse algum compromisso com o país – o que definitivamente não é o caso -, a destruição provocada por Bolsonaro seria, por muitos dias, manchete nos jornais, emissoras de rádio e de televisão.
Bolsonaro e sua turma (melhor seria dizer gangue) deixam como herança a desorganização do Estado e o desmonte dos serviços públicos essenciais. Não se trata de erro de gestão. Os processos foram “contínuos, abrangentes e sistemáticos”, ressalta o relatório, enfatizando que se seguiu a uma lógica de “menos direitos para a maioria, e mais privilégios para uma minoria”.
Um dos resultados mais dramáticos deste desgoverno é o reingresso do Brasil no mapa da fome, do qual tinha saído em 2014, fruto das políticas do PT, em especial o Programa Bolsa Família. São 33,1 milhões de brasileiros que vão passar o Natal com fome e outras 125,2 milhões de pessoas, mais da metade da população, que vivem em insegurança alimentar.
A sistemática destruição provocada por Bolsonaro inclui também o meio ambiente, a educação, a saúde e a violência, materializada no número de pessoas mortas pelo acesso às armas de fogo. Bolsonaro também investiu contra mulheres, negros, índios e grupos LGBTQIA+, com as chamadas “pautas de costumes”, uma das bandeiras do extremismo de direita, do qual faz parte.
Privatizações absurdas e a preço de banana como a da Eletrobras e o fatiamento da Petrobras são igualmente apontadas, quando o mundo inteiro segue em sentido oposto. Razão pela qual o relatório sugere que, em seu terceiro mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva revogue uma grande maioria dos atos editados por Bolsonaro ao longo dos últimos quatro anos.
Ao invés de mostrar isso, como seria o esperado, a “grande mídia”, na realidade a velha mídia, manteve a usual posição de esconder do seu “respeitável público” o que fez Bolsonaro. E, desde já, começa a tentar responsabilizar o terceiro governo Lula, que nem empossado foi, pelos desmandos do atual ocupante do Palácio do Planalto, cujas consequências vão perdurar por bastante tempo e exigirão um tremendo esforço para serem alteradas.
O Jornal Nacional, da TV Globo, por exemplo, destacou somente os retrocessos provocados pelas “pautas de costumes”, escondendo tudo o que diz respeito às políticas públicas, destruição do patrimônio público e retorno do Brasil à condição de colônia.
Neste quesito, Bolsonaro, o ministro Paulo Guedes e os irmãos Marinho estão fechados. Sempre quiseram privatizar a Petrobras e acham que o futuro do país está na agricultura e nas mãos dos rentistas. Há poucos dias, um editorial do jornal O Globo, chegou a defender, com todas as letras, que reindustrializar o Brasil seria um erro, retomando posições absurdas de liberais como Eugênio Gudin, defendidas nos anos 1940 e 1950, e já devidamente sepultadas por economistas como Celso Furtado e todos os trabalhos da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).
A Folha de S. Paulo, da família Frias, seguiu caminho semelhante. Ao invés de dar espaço para o balanço desastroso do governo Bolsonaro, preferiu atacar Lula e decretar antecipadamente o fracasso de seu governo. Em editorial e manchete em seu site, acusa Lula de ter “visão ultrapassada e corporativista” por não defender a ortodoxia neoliberal que envolve privatizações generalizadas e os cortes que destruíram a máquina pública.
Na visão dos Frias, dos Marinho, de Edir Macedo, de Silvio Santos e de Johnny Saad, os principais “barões” da mídia, o Brasil melhorou. Pelo visto, melhorou só para eles, que possivelmente vivam numa realidade paralela, comparável à da turma acampada na porta dos quartéis. Não por acaso, um dos atos de Bolsonaro nesta semana foi o de renovar, por mais 15 anos, as concessões de canais de televisão da Globo, Record, SBT e Bandeirantes. Detalhe: um dos Frias se tornou dono de empreendimento financeiro e sua fortuna é a 12ª do país. A dos irmãos Marinho somada ainda é maior, segue sendo a 6ª do Brasil.
Ao renovar a concessão da Globo, Bolsonaro deixou desconsolada parte dos seus seguidores. Em diversas oportunidades, ele chamou a Globo de “lixo” e ameaçou cassar a sua concessão. Agora, no final, fez “esse papelão”, lamentam alguns, “afinando” para a emissora dos Marinho, emendam outros. No balanço do perde e ganha, ele deve ter concluído que o apoio da Globo e demais emissoras pode ser precioso no futuro.
Bolsonaro não tem nada de original e continuará seguindo os passos de Donald Trump.
Mas tanto o futuro de Trump quanto o dele não estão nada cor de rosa. Perto de 900 pessoas já foram presas nos Estados Unidos, acusadas de participarem da invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021. As investigações seguem e as chances de Trump vir a responder processo e ser preso crescem. Após deixar a presidência, vários processos aguardam Bolsonaro e novos devem ser abertos em função de suas ações e omissões nos últimos meses de mandato.
Nos Estados Unidos, a mídia tem sido quase unânime na criminalização de Trump, exceção para veículos de extrema-direita como a Fox News. Aqui, Bolsonaro, que teve o apoio da velha mídia para chegar ao poder e lá permanecer, continuará a contar com este apoio, especialmente quando o objetivo for tentar desgastar Lula.
A título de exemplo, para a Folha de S. Paulo, a PEC do Bolsa Família, aprovada nesta semana pelo Congresso Nacional, para enfrentar a fome e a miséria, nada mais é do que sinônimo de “gastança”. Bolsonaro foi elogiado pela mídia, sempre que cortou dos pobres para garantir e ampliar o pagamento de juros aos rentistas. Já Lula será sempre combatido toda vez que lutar e for vitorioso ao garantir recursos para os mais pobres, como agora.
Até o momento, a composição do ministério de Lula aponta para a concretização de um dos seus principais compromissos de campanha: colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda. Mas faltam pastas importantíssimas a serem preenchidas, como a das Comunicações e a Secom. Lula precisará dar enorme atenção à comunicação em seu terceiro governo para que não prosperem ataques similares aos que enfrentou no chamado “mensalão” e através da Operação Lava Jato.
Está mais do que provado que o Mensalão foi uma mentira patrocinada pelo inescrupuloso Roberto Jefferson, hoje na cadeia, e comprada pela mídia. A mesma mídia que nunca quis investigar o Orçamento Secreto, agora derrubado pelo STF. Aliás, será que existiu algum mensalão maior do que o Orçamento Secreto? Já a Operação Lava integra o kit da Guerra Híbrida, nome pela qual se convencionou chamar as tentativas de mudanças de governo e de regime, articuladas por potências estrangeiras, valendo-se do parlamento, da justiça e da mídia.
Se grupos de extrema-direita no mundo já andam insinuando que o Brasil pode viver em breve uma “primavera”, mesmo o verão estando apenas começando, a velha mídia nem disfarça suas intenções.
Daí uma comunicação ágil e capilarizada por todo o país ser essencial para o terceiro governo Lula. Afinal, ele sabe – e já experimentou na própria pele – do que esses “barões” são capazes.
P.S. No apagar do governo Bolsonaro, o governador de Minas, Romeu Zema, privatizou o Metrô de Belo Horizonte, que era gerido pela CBTU, órgão do governo federal, subordinado ao Ministério das Cidades. Trata-se de uma privatização absurda da qual o governador diz orgulhar-se. Nesse caso, as boas notícias são que Bolsonaro está de saída e Lula já disse que as privatizações acabaram. A má notícia é que um novo governo Zema vai começar.