Conforme o Conselho de Segurança avança a filiação da Palestina à ONU como membro pleno, Brasil e Rússia querem a volta da solução de dois Estados. Para analistas ouvidos pela Sputnik Brasil, Moscou e Brasília podem unir a maioria global e pressionar pelo fim das hostilidades na Faixa de Gaza.
Nesta quarta-feira (10), o Conselho de Segurança da ONU encaminhou proposta de adesão da Palestina à organização como membro pleno. A decisão vem 12 anos após a Palestina ser aceita como membro observador da ONU.
O pedido palestino para adesão plena à ONU estava parado desde 2011, por inação do Conselho de Segurança. Atualmente, a Palestina é um membro observador da ONU, assim como a Santa Sé, responsável pela administração do Vaticano. Estados observadores podem participar dos debates na ONU, mas sem direito a voto.
Em avanço sem precedentes, o presidente do Conselho de Segurança solicitou ao comitê de adesão da ONU que emita decisão sobre a entrada da Palestina como Estado-membro na organização ainda no mês de abril.
Para o representante palestino na ONU, Riyad Mansour, a Palestina esperava que o Conselho de Segurança da ONU implementasse “o consenso global sobre a solução de dois Estados” e “admitisse o Estado da Palestina para adesão plena” na ONU.
Apesar do avanço, o Conselho de Segurança da ONU ainda não conseguiu implementar uma resolução sobre cessar-fogo na Faixa de Gaza. Os repetidos vetos dos EUA impedem a aplicação de resoluções contundentes para colocar fim às hostilidades.
Ainda na quarta-feira (10), o chanceler russo Sergei Lavrov criticou a posição dos EUA e aliados em relação ao conflito na Palestina, durante visita do coordenador especial das Nações Unidas para o Processo de Paz no Oriente Médio, Tor Wennesland, a Moscou.
Lavrov lamentou a falta de foco na solução de dois Estados e reiterou a posição russa em favor da “criação de um Estado da Palestina independente, dentro das fronteiras de 1967 com Jerusalém Oriental como sua capital, coexistindo em paz e segurança com Israel”.
Para o chanceler russo, ainda que seja necessário condenar os ataques perpetrados pelo Hamas em Israel em 7 de outubro de 2023, que levaram à escalada nas hostilidades, eles não justificariam a “punição coletiva de milhões de palestinos”.
A posição russa sobre o conflito israelo-palestino é similar à brasileira, o que sugere possível cooperação entre Brasília e Moscou, acreditam especialistas em política externa russa ouvidas pela Sputnik Brasil.
“Brasil e Rússia defendem a solução de dois Estados […] e condenaram tanto os ataques de 7 de outubro, quanto a dura retaliação que Israel tem feito, causando a morte de inúmeros civis”, disse a doutoranda em Relações Internacionais pelo Santiago Dantas (UNICAMP/UNESP/PUC-SP), Fernanda Albuquerque, à Sputnik Brasil. “Além disso, nem Brasil, nem Rússia classificam o Hamas como uma organização terrorista.”
A sintonia entre as posições de Brasil e Rússia ficou clara durante conversa telefônica entre o presidente russo Vladimir Putin e seu homólogo brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, realizada nas primeiras semanas da atual operação israelense. Durante a conversa, Lula e Putin pediram observância à solução de dois Estados e medidas urgentes para desencalhar as hostilidades.
No entanto, a Rússia tem maior capacidade para influenciar a comunidade internacional e pressionar por um cessar-fogo em Gaza, notou a doutoranda em Ciências Políticas pela USP, Giovana Branco.
Segundo Branco, “a Rússia oferece no Oriente Médio uma forma de balanceamento em relação à política tradicional dos EUA. Enquanto os EUA apoiam Israel, de forma que até pouco tempo era de alinhamento automático, a Rússia promove a necessidade de um Estado palestino”.
“A principal contribuição da Rússia para um cessar-fogo é exercer pressão no Conselho de Segurança, o que ela já vem fazendo”, disse Branco à Sputnik Brasil. “A Rússia também usa o conselho para criticar a política dos EUA em relação ao conflito.”
De fato, o chanceler russo Lavrov aponta a política dos EUA para a questão palestina como uma das responsáveis pela crise atual. Em encontro com o secretário-geral da Liga Árabe, Ahmed Aboul Gheit, Lavrov notou que Washington tentou impedir a continuidade dos trabalhos do Quarteto, grupo formado por EUA, União Europeia, Rússia e ONU, indicado por resoluções do Conselho de Segurança como responsável pelo tema.
“Além disso, países do Ocidente são muito ferozes em suas críticas ao conflito na Ucrânia, mas fazem vista grossa ao que está acontecendo em relação a Israel contra os palestinos”, disse Branco. “A Rússia realmente coloca esses países em xeque [no Conselho de Segurança da ONU], questionando suas políticas externas duais.”
Relações com Israel
Apesar da posição favorável à solução de dois Estados, Rússia e Israel mantêm laços diplomáticos, classificados pelo presidente Putin como “relações sólidas de trabalho”. Os contatos entre Israel e Rússia se intensificam desde o restabelecimento de relações diplomáticas, em 1991, e atingiram seu pico durante o início dos anos 2000.
“A Rússia mantém relações tanto com Israel quanto com a Palestina e realmente tenta manter um equilíbrio”, declarou Albuquerque. “Porém, a Rússia muitas vezes é considerada pró-Palestina pela sua defesa do Estado palestino, algo previsto por resolução da ONU […], e pela Rússia não classificar o Hamas como organização terrorista.”
Do ponto de vista pragmático, as relações comerciais entre Rússia e Israel apresentam dinâmica positiva, com superávit significativo para Moscou. Israel adquire de fornecedores russos recursos energéticos, metais, fertilizantes e trigos, que continuarão sendo demandados durante o conflito.
A Rússia, por sua vez, pode ter mais dificuldades para importar produtos israelenses enquanto as hostilidades continuarem: 75% dos tomates, pimentões e outros alimentos que a Rússia importa de Israel são oriundos de comunidades rurais localizadas próximo à Faixa de Gaza.
“Se por um lado, Israel é aliado dos EUA e votou contra a Rússia em resoluções na ONU sobre a Ucrânia; por outro, Israel não adotou sanções econômicas contra Moscou, como fizeram seus aliados ocidentais”, considerou Albuquerque.
Apesar das relações entre Israel e Rússia serem neutras e pragmáticas, o atual conflito desgasta os laços, conforme aumentam as “desavenças de ambos os lados”, notou Albuquerque.
“Israel condenou a Rússia por ter recebido uma delegação do Hamas em Moscou, durante uma conferência em fevereiro deste ano. A Rússia havia convidado diversos grupos palestinos para conversas, inclusive a Autoridade Palestina e o Hamas, o que gerou a insatisfação israelense”, lembrou Albuquerque. “Por outro lado, recentemente a Rússia condenou o bombardeio de Israel a instalações diplomáticas do Irã na Síria.”
As diferenças não retiram a posição da Rússia como possível mediadora do conflito, afinal Moscou mantém relações com Tel Aviv, com os principais grupos palestinos, com o Hezbollah, Irã e diversos atores relevantes no Oriente Médio.
Nesse sentido, uma aproximação entre Rússia e países como o Brasil poderia fortalecer as negociações para o fim das hostilidades na Faixa de Gaza, acredita Branco.
“O Brasil é um aliado possível nessas pressões internacionais para criar alianças entre a maioria global e pressionar pela necessidade de um cessar-fogo em Gaza”, sugeriu Branco. “Sozinho, o Brasil tem mais dificuldade de inserção nesse tema.”
Segundo a especialista, a política externa brasileira não foi capaz de articular com clareza sua posição sobre o conflito israelo-palestino à comunidade internacional. Além disso, críticas de autoridades brasileiras a Israel “foram mal recebidas pelos aliados ocidentais do Brasil”.
“O Brasil tem um papel diminuto em relação ao Oriente Médio, diferentemente da Rússia, que tem inserção na região e consegue, de fato, influenciar discursos, debates e decisões sobre esse tema”, concluiu a especialista.
No dia 7 de outubro de 2023, o ataque perpetrado pelo Hamas em Israel deu início à mais recente operação israelense na Faixa de Gaza. De acordo com o Ministério da Saúde de Gaza, pelo menos 33.482 pessoas morreram no conflito, em sua maioria mulheres e crianças. Além disso, milhares de pessoas estão desaparecidas sob os escombros de edifícios e objetos de infraestrutura destruídos.