Mesmo diante do período mais quente já registrado na história, o calor ainda é um tema secundário nas eleições municipais. Enquanto tragédias causadas por chuvas são mencionadas, embora com propostas pouco detalhadas, o impacto do calor praticamente não aparece nos planos de governo dos candidatos a prefeito. Esta é a constatação da segunda reportagem da série “Cidades Resilientes”, que investiga como os municípios estão se preparando para as mudanças climáticas. Especialistas alertam que, apesar do calor não ser uma prioridade eleitoral, essa questão se tornará inevitável nos próximos anos, devido aos seus efeitos na saúde, bem-estar, produtividade, educação e economia.
A tendência é que as temperaturas continuem a subir — 2023 foi o ano mais quente já registrado, e 2024 promete superar esse recorde. O risco para a saúde nas cidades é ainda maior, pois áreas urbanas geram seu próprio calor, podendo ser até 10 graus Celsius mais quentes que zonas rurais, segundo estudo da revista *Nature*. Este fenômeno é conhecido como o efeito de ilha de calor urbana.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) destaca que o calor já causa mais mortes do que qualquer outro evento climático extremo combinado. Entre 2000 e 2019, cerca de 489 mil pessoas morriam por ano em decorrência do calor, mas especialistas afirmam que esse número é subnotificado e pode ser até 30 vezes maior, chegando a 14 milhões de mortes anuais.
Paulo Saldiva, professor de medicina da USP, enfatiza que o calor é um “assassino silencioso” e que o tema precisa ser incluído nas discussões políticas. Ele destaca que as grandes cidades brasileiras não estão preparadas para enfrentar o calor, e as eleições poderiam ser uma oportunidade para propor soluções inovadoras.
Propostas concretas para enfrentar o calor são raras nos planos de governo. Poucas cidades possuem planos de contingência específicos para ondas de calor, como São Paulo e Rio de Janeiro. Algumas capitais, como Belo Horizonte, Salvador e Fortaleza, também possuem planos de contingência, mas as propostas mais comuns envolvem apenas a criação de áreas verdes, sem medidas estruturais mais profundas, como mudanças no zoneamento urbano ou melhorias na malha de transportes.
Em São Paulo, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) promete expandir o Programa Local de Adaptação e Resiliência Climática (PLARC), que inclui a criação de áreas verdes estratégicas. Em outras cidades, como Rio de Janeiro, Porto Alegre e Salvador, os candidatos também mencionam a arborização urbana como uma solução para mitigar os efeitos do calor.
Henrique Frota, diretor do Instituto Polis, explica que as ondas de calor não geram o mesmo impacto emocional que tempestades, o que resulta em menos promessas eleitorais. No entanto, ele lembra que o calor já levou a prefeitura de São Paulo a implementar ações para proteger a população em situação de rua.
Paulo Saldiva acrescenta que durante ondas de calor, o número de mortes naturais em São Paulo aumenta em 50%. Um estudo recente da revista *Journal of Applied Physiology* mostrou que temperaturas acima de 34°C, combinadas com alta umidade, podem afetar até mesmo o coração de jovens saudáveis.
Andrea Santos, especialista em mudanças climáticas, destaca que os transportes são um dos principais desafios na construção de resiliência ao calor. Ela sugere a climatização de toda a frota de ônibus e a criação de pontos de resfriamento e hidratação nas cidades. Estudos apontam a necessidade de sensores para monitorar o clima e ferramentas de resiliência para garantir o funcionamento dos sistemas de transporte em condições extremas.
O calor também afeta a educação. Pesquisas da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) mostram que o desempenho dos alunos cai significativamente em dias quentes. O Censo Escolar de 2022 revelou que 70% das salas de aula no Brasil não possuem climatização, com exceção de algumas cidades como Rio de Janeiro, Recife e Manaus.
Um estudo publicado na *Nature Medicine* mostrou que medidas de adaptação ao calor já salvaram vidas. Na Europa, onde o calor extremo matou quase 48 mil pessoas em 2023, o número de vítimas poderia ter sido 80% maior sem as adaptações feitas nos últimos anos.
À medida que o planeta continua a aquecer, a necessidade de políticas públicas voltadas para a adaptação ao calor se torna cada vez mais urgente.