Por Maria Hermínia Tavares

Preocupado desde a primeira hora apenas com sua permanência no Planalto, Bolsonaro terminou por estimular a antecipação do processo eleitoral. Embora não tendo chegado à massa dos votantes, o assunto consome bom espaço na imprensa e nos partidos, despertando o interesse da delgada camada da opinião pública que acompanha o vaivém da política.

A menos de dez meses da ida às urnas, tudo pode acontecer, a começar da confirmação do cenário traçado pelas pesquisas: a disputa cristalizada entre a extrema direita bolsonarista e a esquerda moderada —hoje francamente favorita— personificada por Lula. Entre ambas, no território das forças de direita e de centro que rejeitam o ex-capitão, movimentam-se protocandidatos, embora nenhum deles já capaz de desfilar como líder da chamada terceira via.

O desastre econômico, social e moral produzido pela direita autoritária e a elevada rejeição popular a Bolsonaro —sua mais acabada encarnação— parecem estar levando alguns a prever que a volta das esquerdas é certa como o dia depois da noite e que elas podem não só ganhar sozinhas mas também governar sem alianças ao centro e além.

Desde a redemocratização, sob a liderança do PT, representaram uma força eleitoral a ser levada a sério, embora de desigual potência: vertebradora da competição pelo centro do poder, relativamente importante nas disputas estaduais e menos expressiva na formação das duas casas do Congresso.

De toda maneira, candidatos petistas jamais levaram a melhor no primeiro turno; vencedora, sua chapa nunca dispensou um vice que indicasse o intento de se entender com centro e mesmo a direita. Os governos do PT sempre se lastrearam, no Legislativo, em coalizões amplíssimas —bem mais heterogêneas daquelas que sustentaram Fernando Henrique durante oito anos.

Sistematicamente atravessaram o espectro político para incluir partidos de perfil conservador e centrões pragmáticos. As esquerdas jamais ganharam eleições por si sós, que dirá governar sozinhas. Desde a sua fundação, o PT jogou conforme essas regras e apenas dentro delas.

O aceno de Lula a Geraldo Alckmin reafirma o retrospecto e reitera esse compromisso da sigla com a continuidade da democracia. A aproximação entre os outrora adversários indica também reconhecimento recíproco de que os tempos são outros —e mais duros— e de que a competição pelo voto já não se dá entre forças igualmente comprometidas com a Constituição Cidadã. O embate de outubro provavelmente oporá defensores da democracia e da civilidade mínima às falanges da ignorância, do atraso e da crua brutalidade.

Fonte: Folha de São Paulo