Deputados e senadores movimentaram aproximadamente R$ 21 bilhões nos últimos quatro anos por meio das chamadas emendas Pix, mas somente 4% desse montante, ou cerca de R$ 933 milhões, teve a prestação de contas efetivamente concluída por estados e municípios beneficiados. A ausência de transparência no uso desses recursos, que representa um desvio do planejamento federal, compromete a execução de políticas públicas, aumenta os riscos de corrupção e gera tensões sobre a governabilidade, segundo especialistas ouvidos.

As emendas Pix, criadas pelo Congresso Nacional em 2019, são um modelo de transferência direta que permite que parlamentares enviem recursos para prefeitos e governadores sem precisar vinculá-los a projetos ou obras específicas. Isso significa que o dinheiro pode ser usado de maneira ampla, sem que haja garantia de aplicação conforme o indicado inicialmente pelo parlamentar. Como resultado, não apenas a transparência é prejudicada, mas também a rastreabilidade desses recursos.

Humberto Nunes Alencar, Analista de Planejamento e Orçamento do Ministério do Planejamento, conduziu um estudo detalhado sobre essas transferências entre 2020 e 2024, revelando os desafios e problemas associados ao modelo. O levantamento mostrou que, embora os valores sem prestação de contas possam diminuir com o tempo, devido ao prazo estendido para estados e municípios enviarem relatórios aos Tribunais de Contas Estaduais e Municipais, a falta de fiscalização inicial reduz significativamente o controle sobre a aplicação desses recursos.

Antes da criação das emendas Pix, parlamentares eram obrigados a utilizar a modalidade tradicional para alocar emendas individuais, o que demandava projetos detalhados e convênios formalizados. Esse modelo seguia os critérios estabelecidos pelo Plano Plurianual (PPA), o principal instrumento de planejamento do governo federal, que orienta investimentos em áreas estratégicas ao longo de quatro anos.

Hoje, no entanto, os parlamentares têm maior flexibilidade. Eles podem optar pela modalidade Pix para transferir recursos diretamente, sem a necessidade de justificativa prévia. Por exemplo, um deputado que pretende destinar R$ 2 milhões para a construção de escolas pode fazê-lo por meio do modelo tradicional, com controle rigoroso, ou transferir os valores diretamente via emenda Pix, permitindo que prefeitos e governadores decidam livremente como alocar os recursos. Esse mecanismo tem atraído congressistas, principalmente pela facilidade em atender às bases eleitorais.

Entre 2020 e 2024, o volume de recursos destinados pelas emendas Pix cresceu substancialmente, passando de R$ 600 milhões para R$ 7,7 bilhões, um aumento de mais de 13 vezes. O modelo tornou-se popular por permitir que os parlamentares enviem recursos rapidamente a seus redutos eleitorais, sem os entraves burocráticos do sistema anterior. No entanto, críticos apontam que a ausência de critérios claros para a aplicação desses recursos abre margem para má gestão e desvio.

O modelo enfrenta críticas crescentes devido à falta de mecanismos de fiscalização e à incerteza sobre a aplicação dos recursos. De acordo com Marina Atoji, da Transparência Brasil, os parlamentares devem assumir maior responsabilidade no acompanhamento das emendas Pix. “A transparência começa no Congresso Nacional, com a indicação clara de como o dinheiro será utilizado. Isso impede que prefeitos e governadores utilizem os recursos de forma inadequada”, destaca.

Exemplos de mau uso das emendas Pix incluem cidades que destinaram recursos para eventos como shows sertanejos, ignorando prioridades essenciais, ou superfaturamento de materiais, como compras de asfalto e equipamentos. A Controladoria-Geral da União (CGU) relatou casos em que municípios utilizaram o dinheiro sem planejamento adequado e contrataram organizações sem capacidade técnica para realizar os projetos.

Após denúncias e ações judiciais, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou mudanças nas regras das emendas Pix. Em 2024, o ministro Flávio Dino suspendeu temporariamente os repasses, exigindo maior transparência. O STF aprovou novas normas que agora obrigam prefeitos e governadores a apresentarem planos detalhados antes de receberem os recursos, além de prestarem contas diretamente ao governo federal. O Tribunal de Contas da União (TCU) passou a ter maior poder de fiscalização sobre as transferências.

O deputado Glauber Braga (PSOL-RJ), um dos autores da ação no STF, elogiou a decisão, destacando que o modelo anterior favorecia práticas obscuras. “As emendas Pix eram um instrumento para beneficiar determinados grupos políticos sem nenhum controle”, afirma Braga.

A resposta do Congresso foi a aprovação de uma lei exigindo que parlamentares detalhem o valor e a finalidade das emendas no momento da indicação. Ainda assim, Humberto Nunes Alencar questiona se as mudanças serão suficientes para corrigir a falta de alinhamento estratégico na aplicação dos recursos. “Essas regras não resolvem o problema fundamental, que é a desconexão das emendas Pix com o planejamento nacional”, argumenta.

As emendas Pix operam fora das diretrizes do PPA, que busca garantir investimentos coordenados em áreas prioritárias, como educação, saúde e infraestrutura. Sem esse alinhamento, os recursos podem ser usados de maneira desordenada, comprometendo a execução de políticas públicas. “Esse modelo fragmenta o orçamento e favorece interesses eleitorais em vez de atender às necessidades reais da população”, alerta o economista Felipe Salto.

O consultor Helder Rebouças, do Senado, reforça a importância de condicionar as emendas ao PPA, destacando que o Executivo deveria impor limites à execução das transferências fora desse plano. A ausência de planejamento resulta em distorções na distribuição de recursos, beneficiando desproporcionalmente algumas regiões.

A distribuição desigual das emendas Pix é evidente em casos como o de Alagoas, estado do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Matriz de Camaragibe, uma cidade de 25 mil habitantes, recebeu R$ 21,6 milhões nos últimos quatro anos, equivalente a R$ 863,83 por habitante. Em contraste, Maceió, capital com quase 1 milhão de habitantes, recebeu apenas R$ 8,4 milhões, ou R$ 8,77 per capita. Essa concentração reforça acusações de favorecimento político.

A crescente autonomia do Congresso sobre o orçamento público, consolidada pelas emendas Pix, enfraqueceu a capacidade de negociação do Executivo. Tradicionalmente, as emendas individuais e de bancada eram utilizadas como moeda de troca para garantir apoio parlamentar. No entanto, com a independência proporcionada pelo orçamento impositivo, o governo perdeu parte desse controle, dificultando a articulação política.

Esse processo começou em 2015, quando Eduardo Cunha, então presidente da Câmara, implementou o orçamento impositivo. Posteriormente, Rodrigo Maia, em 2019, ampliou a autonomia do Congresso ao criar as emendas Pix e tornar obrigatórias as emendas de bancada. Essa evolução culminou no controverso Orçamento Secreto, revelado pelo Estadão, e declarado inconstitucional pelo STF em 2022.

Segundo o cientista político Lucio Rennó, da Universidade de Brasília (UnB), o modelo atual eleva os custos da governabilidade. “Os presidentes precisam negociar constantemente com um Congresso fortalecido, que agora controla grande parte dos recursos federais”, avalia Rennó.

Embora as novas regras representem um avanço, especialistas concordam que a existência das emendas Pix continua a ser um obstáculo à transparência e ao planejamento orçamentário. A tendência é que o modelo permaneça como um dos principais pontos de debate entre Executivo e Legislativo nos próximos anos, com implicações diretas para a governabilidade e a gestão pública no Brasil.

 

Foto: Pedro França/Agência Senado

 

 


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