O Uruguai sempre esteve nos meus planos, tanto comerciais, quanto pessoais. País pequeno e organizado; povo ordeiro, com escolaridade levada à sério, além de contar com moeda estável e segurança jurídica confiável. Uma estância próxima a Montevidéu, a meio caminho de Punta del Leste, seria local perfeito para uma base inspirada em Pasárgada, plagiando Manuel Bandeira, porque lá eu seria amigo do rei. E foi nessa canoa que embarquei, com o beneplácito do Roberto, cuja empresa também mirava a eventualidade de ampliar negócios no setor energético. Roberto não tinha, na empresa, o propósito de abrir picadas no emaranhado de oportunidades existentes em outros países, porque este propósito estava vinculado a outro segmento da organização. Contudo, ele se valia dos sonhos de alguns executivos sob o seu comando, visando estimular incursões necessárias para manter aceso não apenas o elã do seu grupo, mas, por acréscimo, o aguçamento de faro indispensável à percepção de oportunidades, em geral. Para ele toda prospecção resultava em aprendizado, o que era correto. E, também, em despesas, o que era ainda mais correto. Mas, o jogo tinha que ser jogado.

As eleições de 94, naquele país, ocorreriam também em novembro, coincidindo com o calendário de eleições no Brasil. A tarde estava gelada, com vento cortante brincando de assovios, em meio ao casario de arquitetura afrancesada. Fomos convidados para almoço na residência de Ulisses Reverbel, que havia presidido a UTE, empresa responsável pelo serviço de geração e distribuição de energia elétrica do Uruguai. Em minha companhia Pedro Barroso, que também atuava na área comercial da empresa, com pouco tempo de casa, mas suficiente para provar o seu talento na prospecção de novos negócios. Reverbel, alto, magro e de tez macilenta e ligeiramente esverdeada, era homem elegante, de gostos refinados e vivia solo. Tinha dedos longos, de pianista, e se movia, descontado o exagero, como Nosferatu. O almoço foi preparado sob a coordenação de governanta de beleza padrão e de aparência austera, que ostentava comportamento protocolar. Ele havia sido sequestrado duas vezes pelo Movimento Tupamaro, organização terrorista de enfrentamento ao governo e que não conhecia limites para as suas incursões de natureza paramilitar. No primeiro sequestro Reverbel permaneceu no cativeiro por uma semana e, no segundo, mais de um ano. O segundo cativeiro, no tocante às instalações, se tratava de algo simples e perverso: um buraco no chão, escavado em cômodo de imóvel residencial, situado na periferia de Montevidéu. No buraco Ulisses Reverbel fazia as suas necessidades fisiológicas, se alimentava, conversava consigo e com a terra que o circundava, enquanto apalpava insetos que, no escuro, o visitavam, vez por outra, enquanto meditava sonhando com dias melhores. Ele foi braço direito do ex-presidente Jorge Pacheco Areco, político oriundo dos ringues de boxe, o que lhe conferia ( ao Areco ) um toque de singularidade. Reverbel falava o português sem sotaque, e usava linguajar refinado; a sua inteligência transbordava. Areco, que havia exercido a presidência do Uruguai em outra oportunidade, retornava ao ringue da política contando, mais uma vez, com a ajuda de Reverbel, que o representava naquele almoço, em sua casa. Com Pacheco Areco nos avistamos em outro dia, quando ele argumentou acerca de sua afinidade com a direita conservadora do país e, foi por aí que eu entrei na estória.

Jorge Areco não era o candidato dos sonhos, mas já tinha sido presidente do país, em mandato anterior, em face da morte do titular do cargo, e agregava experiência e contatos. Mas, na eleição que se avizinhava, e na América Latina como um todo, vertente neoliberal, com flerte à esquerda, comprometia a chance de vitória de Areco, que empreendeu no passado ferrenho combate aos movimentos de oposição ao seu governo e foi, inclusive, acusado de homicídios e outras tantas barbaridades não provadas. O horizonte não nos favorecia, o futuro claudicava na concretização de oportunidades, mas era o que tínhamos e precisávamos fazer, daquela lanterna, o farol de entrada no país. O carro alegórico da empresa teria que ser conduzido em ritmo de bolero, agitando bem devagarinho, para não levantar marola, e ficarmos preparados para as devidas correções de rumo, tão logo a poeira baixasse.

Os interesses envolvidos no episódio da eleição eram ainda prospectivos e sem o dispêndio de haveres significativos. As partes se entrosavam mediante reservas, mas procuravam se conhecer através da aferição de ideias, de convicções e, principalmente, de propósitos. Pacheco Areco perdeu a eleição para Julio Maria Sanguinetti, do Partido Colorado, o não me surpreendeu. Do episódio, malgrado a evaporação da estância dos meus sonhos, implodida pela esquerda, restaram nos escombros, como salvados, os relatos do encarceramento de Ulisses Reverbel, cujas narrativas ainda preservo na memória. Tenho muito respeito pela sua pessoa.

Mas, o meu interesse particular, pelo Uruguai, não parou por aí. Eu havia sido contratado, como advogado, em caráter pessoal, por empresários mineiros para aferir, e nada além disto, a viabilidade de transferência de recursos oriundos de um país africano, algo em torno de 40 milhões de dólares, recursos cuja origem me parecia duvidosa, destinados a crédito em conta corrente aberta no Banco de Boston, em Montevidéu. Isto ocorreu algum tempo depois do evento Jorge Pacheco Areco. Compareci à sede do Banco, na capital, acompanhado do amigo Jefferson Araújo, cuja participação estava restrita ao consumo de bons vinhos, à presença em lugares da moda e sem maiores envolvimentos com a missão propriamente dita.

A reunião começou tensa, participando o presidente da instituição e vários diretores do Banco de Boston. Foram múltiplos questionamentos sobre a origem do dinheiro, os nomes dos titulares das contas no país de origem, bem como os respectivos currículos e demais referências das partes interessadas, e, enfim, a diretoria havia se protegido em trincheira profunda, cavada em anos de repúdio a picaretagens diversas, o que, no momento, parecia ser o caso. Eu já havia me dado por vencido e certo estava de que os banqueiros tinham razão, porque o barco estava furado e a canoa afundava a pique e rápido. Mas, não podia simplesmente jogar a tolha, me desculpar e sair andando de costas, em direção à porta de saída, nocauteado e com cara de paisagem. Por sorte, o Jefferson, que nada tinha a ver com a estória, ronronava em despudorado cochilo, dormitando de boca aberta um sono juvenil e sem remorsos. Eu me levantei, apontei para o Jefferson e com a cabeça erguida para o pelotão de fuzilamento, disparei: Os senhores acham, que se esta operação não fosse lícita, o meu sócio estaria dormindo na reunião? Ato contínuo externei com a fisionomia o meu desagrado pelo desfecho da consulta, agradeci a atenção dos banqueiros e tomei o rumo de casa no primeiro avião, mas, não sem antes conhecer os projetos do reverendo Moon, Sun Myung Moon. O reverendo Moon, coreano, detentor de fortuna gigantesca, estava de chegada ao Uruguai, através de empreendimentos lançados no setor imobiliário, inclusive no segmento hoteleiro. Ele seria um bom caminho para eu renovar o sonho da estância próxima a Punta del Leste, mas esta estória fica para depois.

PS: Pelo Acordo Ortográfico, prospecção virou prospeção e percepção virou perceção. Vou continuar escrevendo à moda antiga.


1 Comentário

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    Edson Paulino, abril 18, 2022 00:43 @ 00:43

    Além da excepcionalidade do texto, o que não me surpreende, vc define o país dos meus sonhos, caso a esquerda volte ao poder do Brasil. Pretendo, caso aconteça, embora ache improvável, convidar você pra gente passar uns tempos por lá, tomando bons vinhos, whiskies e carnes de primeira! Certo ou errado? Parabéns! Abrs!!!

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