Ângela Carrato – Jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

Os argentinos vão às urnas neste domingo para eleger, em segundo turno, quem ocupará a Casa Rosada pelos próximos quatro anos. Mesmo apresentando resultados diferentes ao longo da campanha, com o peronista Sérgio Massa e o extremista de direita Javier Milei alterando-se na preferência do eleitorado, as últimas pesquisas apontam para empate técnico.

O resultado não sinaliza apenas que um ou outro pode vencer. Aponta para a absoluta incerteza sobre o futuro da Argentina, enquanto país livre e democrático, mas também sobre parte significativa dos tratados e blocos internacionais aos quais integra. Em outras palavras, os eleitores argentinos estarão escolhendo bem mais do que um presidente. Estarão definindo, em grande medida, a própria correlação de forças que pode vigorar na América Latina nos próximos anos.

A mídia corporativa argentina e brasileira, semelhantes em sua posição subserviente aos interesses do Tio Sam, esconde o assunto, mas ele é o que prioritariamente importa. Daí essa eleição, que poderia ser mais uma na América Latina, estar sendo acompanhada com tamanha atenção por países tão diferentes quanto Estados Unidos, China, Brasil, Inglaterra e Israel.

A atual disputa pela Casa Rosada guarda muitas semelhanças com as eleições brasileiras de 2018 e de 2022. Nelas os candidatos que passaram para o segundo turno deixaram a nu um país cindido, manipulado pelos interesses imperialistas e pela desinformação das fake news.

Sérgio Massa está longe de ser o nome dos sonhos dos peronistas de esquerda, que estiveram no poder de 2007 a 2015. Se dependesse deles, a candidata seria a ex-presidente e atual vice, Cristina Kirchner. Sua candidatura, no entanto, acabou sendo inviabilizada pelo agressivo lawfare que enfrenta por parte do Judiciário e pela pesada campanha da mídia corporativa de lá, que guarda semelhança com a brasileira Operação Lava Jato.

A escolha de Massa como candidato acabou se dando não necessariamente por seus méritos, mas por ser talvez o único nome no governo de Alberto Fernández disposto a assumir riscos máximos. Massa é o atual ministro da Economia, num momento em que a hiperinflação domina o país, os juros altíssimos travam a Argentina e 40% da população se encontra na linha da pobreza.

Ele é o responsável por isso? Claro que não. Como a mídia não conta a verdade, ele aparece como o responsável para significativa parcela da população.

A Argentina ter chegado a esse descontrole econômico e financeiro envolve múltiplos aspectos. Os sete anos da última ditadura militar (1976-1983) deixaram como herança uma dívida externa impagável. Os militares fizeram uma farra com o dinheiro de fora e com os impostos dos contribuintes. Como se isso não bastasse, para arranjar dinheiro novo para pagar os juros da dívida, o então presidente Maurício Macri, um playboy e neoliberal a la Aécio Neves, deixou para seu sucessor, Alberto Fernández, uma conta que não fecha.

Os neoliberais tinham certeza que Macri seria reeleito e se entenderia com os credores, à custa, claro, dos contribuintes. Como perdeu a eleição, a conta caiu no colo de Alberto Fernández que, diferentemente do que pensava seu partido e a própria Cristina Kirchner, sua vice-presidente, preferiu, sem sucesso, tentar negociar ao invés de romper com as regras draconianas do FMI.

A criminalização que os argentinos conseguiram fazer em se tratando dos militares, colocando-os no banco dos réus e na cadeia, por mortes, prisões e torturas a adversários políticos na ditadura, não incluiu os ladrões do dinheiro público.

Os eleitores bem informados e aqueles que têm tradição de votar no peronismo sabem o que aconteceu e o que está acontecendo. Mas parcela expressiva, especialmente a composta por jovens entre 18 e 25 anos, que não têm memória do que foi a ditadura militar e não acompanhou o governo neoliberal de Maurício Macri, acredita que “a culpa é dos políticos”. São esses os fechados com o bolsonarismo de lá, que atende pelo nome de Javier Milei.

Donald Trump, Jair Bolsonaro e Javier Milei não surgiram do nada. São criações da extrema direita de seus países em parceria com os grandes interesses econômicos e financeiros internacionais. O objetivo é confundir o jogo, tirar o foco do que interessa e manter a exploração máxima sobre enormes contingentes populacionais. O neoliberalismo nada mais é do que o capitalismo elevado à potencia máxima, com o Estado sendo substituído pelo mercado e a vida humana não valendo nada.

A ligação desses três políticos com o que há de mais nefasto na cena internacional explica como Trump, que era um empresário de sucesso e Bolsonaro um ex-capitão defensor da tortura, se tornaram candidatos à presidência de seus países e venceram, no caso dos dois primeiros.

Milei é, sem dúvida, o exemplo mais paradigmático. Comediante num agressivo programa popular na TV, ele foi devidamente trabalhado para canalizar a frustração dos argentinos e atribuí-la aos “políticos profissionais”. Isso não soa familiar? Bolsonaro fez o mesmo aqui, aos criticar os políticos, sendo que ele e família estavam aboletados na política há décadas.

Milei não ocupou nenhum cargo público e é por isso que se sente mais à vontade para falar e propor absurdos. De seu programa de governo consta, por exemplo, dolarizar a economia, acabar com o Banco Central, privatizar tudo inclusive educação, saúde e previdência social, além de romper relações com os principais parceiros econômicos e comerciais da Argentina, o Brasil e a China.

Como se isso não bastasse, Milei terminou todos os comícios no segundo turno gritando “liberdade” e acompanhado essa palavra de um sonoro palavrão, abraçado à bandeira de Israel. Mais patético, impossível, mas a plebe embrutecida e indignada o aplaudia.

Quando os 35,8 milhões de argentinos aptos a votar estiveram fazendo suas escolhas neste domingo, dificilmente estarão pensando em algo além da performance de Massa, de Milei e na poderosa campanha que cada um realizou. Só que as consequências dessa escolha num país onde o trágico, está espelhado em sua música maior, o tango, podem ser fatais.

Sérgio Massa fez campanha tentando apelar à razão, num momento em que Milei não mede consequências para puxar os argentinos a votarem exclusivamente pela emoção. Milei critica tudo e a todos, com exceção de Trump e de Bolsonaro. Para ele, o Papa Francisco, o primeiro argentino a chegar ao cargo maior no Vaticano, é “comunista”. Segundo ele, também é “comunista” o presidente Lula. Já o primeiro-ministro de Israel, o genocida Benjamin Netanyahu, a seu ver, merece todo crédito.

Possivelmente seja o apelo emocional que marcou a campanha de Milei o que impediu que milhões de jovens argentinos percebessem que quando ele fala em privatizar tudo, está incluindo a escola e a faculdade que cursam, os empregos que têm e os que poderiam ter nas áreas de ciência e tecnologia, além do próprio futuro de cada um e do país.

Quem tem interesse num fim trágico assim para Argentina, que nas primeiras décadas do século XX chegou a ser a sexta maior potência econômica do mundo?

A resposta é simples. Os mesmos que tiraram Dilma Rousseff do poder, em 2016, prenderam Lula, em 2018, fizeram e fazem de tudo para inviabilizar o terceiro governo Lula.

Os mesmos que querem pilhar as riquezas naturais e minerais dos diversos países da América do Sul.

Os mesmos que mantem o arquipélago das Malvinas (Falklands para os ingleses) como colônia em pleno século XXI.

Os mesmos que não querem que o Mercosul continue existindo, funcione e seja um importante tratado internacional de comércio.

Os mesmos que querem uma América Latina desintegrada e subserviente aos interesses do Tio Sam.

Os mesmos que não aceitam que a velha ordem mundial chegou ao fim e que em seu lugar esteja surgindo o mundo multipolar.

Os mesmos que querem destruir a Celac, o G-77 e o BRICs.

Coincidentemente, a Argentina passou a integrar recentemente o chamado BRICS ampliado, por indicação do Brasil.

Os mesmos que sonham em manter a América Latina cativa, com suas veias abertas e sangrando.
Não por acaso, o presidente Lula se tornou personagem tão ou mais mencionada nesta campanha eleitoral que os próprios candidatos. Se o peronista Massa fez questão de exaltar sua proximidade com o Brasil e a importância dessa relação ser mantida e ampliada, Milei faz juras de amor para os Estados Unidos e Israel.

Se depender dele, a Argentina vira satélite do Tio Sam, governado pela máquina mortífera do Mossad, o serviço secreto de Israel, que há décadas tem aquele país sob mira. Quem se lembra do estranhíssimo Caso Nismam, cujos ecos ainda se escutam nas ruas de Buenos Aires? Se você não sabe do que se trata, tem série na Netflix sobre o assunto. Série manipulada pelo lobby sionista, mas para olhos experientes, dá para perceber do que se trata.

Nas últimas semanas, esse mesmo lobby tentou aportar aqui, com o factoide dos brasileiros que seriam “terroristas” integrantes do Hezbollah, o partido político que controla o sul do Líbano e que os Estados Unidos e Israel, só eles, consideram terrorista.

Se os argentinos tiverem juízo, a escolha será pelo nome de Massa.

Se preferirem a tragédia, devem votar em Milei. E aguantarem as consequências, que, infelizmente, não se limitarão a eles.

Afinal, uma América tendo ao norte Trump no poder, com a deterioração das chances de Biden à reeleição, e no, extremo sul, um palhaço do imperialismo como esse Milei, não é apenas uma lamentável letra de tango de terceira categoria.

É se jogar na sarjeta da história e nos arrastar, a todos na América Latina, para o olho do furacão.