Ângela Carrato – jornalista. Professora da UFMG. Membro do Conselho Deliberativo da ABI.

 

O fato de 82 países terem aderido à aliança global contra a fome e a miséria proposta pelo presidente Lula já valeu todo o trabalho e esforço desenvolvido pelo Brasil durante o ano em que presidiu o G-20. Esta decisão e mais os R$ 145 bilhões que estarão à disposição devem constar do documento final a ser anunciado nesta terça-feira (19/11), quando o evento, no Rio de Janeiro, se encerra.

Esta cúpula, que a mídia corporativa brasileira apostava e torcia para que desse errado, surpreendeu pelos bons resultados e pelas inovações. Além das dezenas de chefes de estado presentes, ela foi antecedida, a partir da última sexta-feira, por uma série de atividades que incorporaram movimentos sociais e representantes de prefeitos de cidades de todos os continentes.

De sexta-feira a domingo foram 271 atividades entre seminários, mesas redondas e debates que tiveram lugar no Armazém da Utopia e no Museu do Amanhã, ambos na Praça Mauá. O G-20 Social culminou com o mega show de música brasileira, reunindo diversos ritmos, cantores e bandas. Sem ter o que criticar, a mídia corporativa chamou o show de “Janjapalooza”, numa ironia descabida à atuação da primeira-dama que foi uma dentre as várias pessoas que estiveram à frente de sua organização.

O apelido serviu para deixar nítida a má vontade da mídia para tudo e todos que tenham a ver com Lula e seu terceiro mandato.

Má vontade que desaparece quando se trata da extrema-direita brasileira e internacional.

O ato terrorista em Brasília, praticado por um bolsonarista fanático, Francisco Wanderley Luiz, que acabou por matá-lo, em momento algum foi apresentado como tal por esta mídia.  Não faltam imagens mostrando a relação estreita entre ele e Bolsonaro e as autoridades brasileiras, do diretor da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, ao ministro do STF, Alexandre Morais, descartam a possibilidade da ação ser praticada por um “lobo solitário”. Mesmo assim, a mídia tentou vender a ideia de que o Tiú Francisco agiu sozinho.

Antes de qualquer apuração, os bolsonaristas já procuravam descartar que tenha sido ato terrorista e buscavam caracterizá-lo como de responsabilidade exclusiva daquele que o praticou. Tamanho empenho é no mínimo esquisito, pois uma série de questões continua dependendo de investigação, a saber: quem financiou a ida deste modesto cidadão, um chaveiro, a Brasília? Quem lhe deu apoio para agir? O que está por trás do incêndio da casa em que morava em Rio do Sul, estado de Santa Catarina, dois dias depois, provocado por sua ex-esposa?

Importante papel poderia estar sendo desempenhado pela mídia corporativa neste episódio, pois não faltam indícios de que se tratou de ato terrorista, a começar pelas mensagens em rede social e bilhetes ameaçadores que Francisco Wanderley deixou contra o STF e o ministro Alexandre de Morais. Mas essa mídia, que até hoje não se dignou a investigar a esquisita facada que foi fundamental para a vitória de Bolsonaro nas eleições de 2018, preferiu comprar a versão dos bolsonaristas e do próprio Bolsonaro tanto naquela ocasião quanto agora.

O ato terrorista praticado por Francisco Wanderley enterrou a possibilidade de anistia acalentada por Bolsonaro. Anistia cuja campanha já vinha sendo feita pela mídia, antes mesmo de Bolsonaro ser julgado.  A expectativa é de que em mais alguns dias a Polícia Federal encerre as investigações sobre a atuação do ex-presidente na tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 e o processo seja remetido ao procurador-geral da República, Paulo Gonet,  que deverá denunciá-lo.

Não falta quem diga que Gonet está demorando muito para fazer a denúncia, da mesma forma que não falta quem veja nesta demora uma prova do cuidado com que as autoridades estão se comportando, a fim de evitar brechas por parte da defesa de Bolsonaro.

Por isso, duraram pouco as comemorações de Bolsonaro e família no que se refere à vitória de Donald Trump. Mesmo que o presidente eleito dos Estados Unidos e seu braço direito, Elon Musk, indicado para um cargo de primeiro escalão, como esperam, se disponham a interferir por Bolsonaro, não há como a Justiça brasileira aceitar tal interferência, sob pena de completa desmoralização.

É importante que se diga que o presidente do STF, Luis Roberto Barroso, que chegou a admitir que a questão da anistia deveria ficar a cargo do Congresso Nacional, mudou de posição após o atentado de quinta-feira. Pelo que se pode depreender, criminalizar Bolsonaro e julgá-lo pelos atos que cometeu é questão de sobrevivência para o STF e as  instituições democráticas brasileiras.

Com razão, o ato de Tiú Francisco ligou o alerta máximo para os Três Poderes. A presença de dezenas de chefes de estado no Brasil, por si só já preocuparia as autoridades envolvidas com segurança. Some-se a isso que o terrorista que se auto explodiu em Brasília deixou mensagens com ameaças de outras bombas que seriam detonadas nos próximos dias.

Pode ser pura bravata, mas nada deve ser desconsiderado.

Não pode ficar por isso mesmo, por exemplo, um veículo da comitiva do presidente Lula ter sido roubado, no domingo, a caminho do Rio de Janeiro.  O veículo já foi recuperado, mas os criminosos ainda não foram encontrados.

Com toda essa tensão no ar, explica-se o “fuck you” que a primeira-dama, Janja Lula, deixou escapar em se tratando do dono do X e futuro integrante do primeiro escalão de Trump, Elon Musk, durante debate sobre desinformação em um dos eventos do G-20 Social.

A mídia, como sempre, deu muito destaque ao assunto para atacar Janja, mas não contextualizou a situação. Maior propiciador de fake news e discursos de ódio, Musk vinha sendo citado pelos participantes do debate, quando se ouviu um forte barulho. Foi então que algumas pessoas, como a própria Janja, se abaixaram como forma de proteção  e foi aí que ela deixou escapar o “fuck you, Elon Musk, não temos medo de você”.

À parte o fato de ela ter expressado o quê os brasileiros e brasileiras com um mínimo de informação gostariam de ter dito, é incrível a subserviência da mídia corporativa aos interesses da Casa Branca e dos bilionários.

Musk é inimigo não só do Brasil como de todo governo democrático. Quem se lembra que ele já disse que dará tantos golpes quantos necessários para obter recursos minerais? No caso, estava se referindo à Bolívia, mas vale para dezenas de países, inclusive o nosso.

A mídia coorporativa brasileira simplesmente desconheceu o assunto.

No episódio da guerra movida por Musk contra o ministro Alexandre de Morais e o STF, a “nossa” mídia ficou ao lado de Musk.  Morais e o STF foram acusados por ela de ditadores e autoritários. Parte da esquerda brasileira, a chamada “esquerda caviar”, também entrou nessa, possivelmente de olho nas gordas verbas que recebem através de ONGs estadunidenses.

Esse, aliás, seria outro excelente assunto para ser investigado pela mídia corporativa.

A “esquerda caviar” inclusive esteve na linha de frente das críticas a Janja, falando que ela foi deselegante, que faltou-lhe compostura e não deveria ter dito o que disse. Só faltou a essa esquerda dizer que Janja deveria ser uma “mulher recatada e do lar”.

Haja machismo!

Neste contexto, também não vi nenhuma crítica à resposta de Musk de que Lula não será reeleito em 2026.

Musk tem bola de cristal ou antecipou o que todos sabem que irá tentar fazer? Isso não mereceria um posicionamento da mídia corporativa, se ela tivesse um mínimo de compromisso com o Brasil?

Não foram apenas os extremistas de direita local que tentaram ofuscar o brilho da cúpula do G-20. Deliberadamente ou não, o certo é que Joe Biden, no final de um mandato cujo saldo para a humanidade é dos piores, decidiu anunciar aqui, após visitar a Amazônia, que autorizou a Ucrânia a usar misseis estadunidenses de longo alcance contra a Rússia. Como esses mísseis podem atingir Moscou, o presidente russo, Wladimir Putin respondeu dizendo que diante disso pode atacar não só os Estados Unidos como os seus aliados da OTAN.

Até os analistas mais otimistas da cena internacional acreditam que esse é o pior momento vivido pelo mundo desde a crise dos mísseis em Cuba, em 1962. Claro que tudo pode não passar de uma última bravata de Biden, que encerra um mandato majoritariamente derrotado pelas urnas e com o passivo de duas sangrentas guerras em sua biografia.

Se Biden já é carta fora do baralho, pois nada do que decidir agora será cumprido por Trump, o futuro chefe do império em decadência, mesmo não estando presente a esta cúpula do G-20, sabe que a vitória da aliança global contra a fome é um forte recado para seu governo.

Não só o Sul Global está farto do que tem feito os Estados Unidos. A indignação também toma conta da Europa, que Biden tentou colonizar e Trump gostaria de aprofundar tal processo. Mesmo que vários governos europeus continuem alinhados à Casa Branca, a posição da maioria da população desses países e dos movimentos sociais é outra. Tanto que o atual primeiro-ministro alemão Olaf Shotz deve perder o cargo para um político próximo a Angela Merkel, que nunca aceitou ser submissa ao Tio Sam.

Numa clara sinalização de que a mídia europeia não teme Musk, mesmo Trump tendo anunciado que retalhará quem tentar regular as big techs estadunidenses, influentes publicações como os jornais The Guardian (inglês) e La Vanguardia (espanhol), anunciaram que deixaram o X por considerar que as vantagens de usar a rede social são inferiores aos “aspectos negativos”, aos discursos de ódio, ao racismo e aos extremismos de direita permitidos na plataforma.

Fica aí um importante recado para as autoridades brasileiras, num momento em que o império desce a ladeira e o Sul global, com Lula, ganha força e visibilidade.

É fundamental regular as plataformas, da mesma forma que é fundamental que sejam criadas mídias independentes e apoiadas as já existentes.

Sem isso, a mídia corporativa brasileira continuará empoderando extremistas de direita e sendo corresponsável por golpes de estado.