Angela Carrato – jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG
O neoliberalismo, que passou a dominar o chamado Ocidente, em especial alguns países europeus e Estados Unidos, a partir dos anos 1980, prometia o paraíso na terra.
O mundo seria um só com a tal globalização.
A mínima intervenção do Estado na economia, com o mercado dando as cartas, traria liberdade e riquezas para todos e o cidadão, livre das amarras anteriores, poderia desenvolver plenamente suas potencialidades.
Muita gente acreditou nessas balelas.
Foi com elas que Margareth Thatcher, uma conservadora feroz, ficou nove anos no poder na Inglaterra e quase destruiu o estado do bem-estar social lá existente.
Foi com essas mesmas balelas que o galã de filmes de terceira em Hollywood, Ronald Reagan, elegeu-se e reelegeu-se para a presidência dos Estados Unidos.
Em nome de absurdos ainda maiores, o palhaço da extrema-direita argentina, Javier Milei, tomará posse no próximo dia 10, para um mandato de quatro anos à frente da Casa Rosada.
Não era para esses 40 terríveis anos de neoliberalismo terem ensinado alguma coisa para os povos, sobretudo aqueles que vivem na periferia do capitalismo e são sistematicamente vítimas da exploração das potências imperialistas?
Se essas questões fossem de fácil entendimento, a resposta seria sim. O diabo é que não são. E a mídia corporativa joga papel decisivo para confundir ou mesmo para que o cidadão comum não saiba o que está acontecendo.
Exemplos não faltam. Vou ficar com alguns bem recentes.
O Brasil acaba de assumir a presidência do G-20, o grupo que reúne as 20 economias mais desenvolvidas do mundo.
A mídia corporativa desconheceu o assunto ou o tratou como a coisa mais trivial.
Na edição do Jornal Nacional de quinta-feira (30/11), foi citado em passant que o Brasil assumiu tal cargo, sem, no entanto, fazer qualquer referência a Lula, que será o condutor deste processo.
Nos jornais deste fim de semana, nem uma linha sobre o assunto, com os destaques ficando por conta de Israel iniciar os ataques contra Gaza, depois de uma trégua de cinco dias, e do noticiário condenar, se valendo de decisão da Corte Internacional de Justiça, qualquer tentativa da Venezuela retomar a região de Essequibo, riquíssima em petróleo, ouro e diamantes em disputa há mais de dois séculos com a Inglaterra. Região que a petroleira estadunidense ExxonMobil considera dela e já explora com desenvoltura as riquezas locais.
O mandato do Brasil à frente do G-20 dura um ano e Lula tem o desafio de implementar não só a ideia de um mundo menos desigual e comprometido com a paz, como a redução da devastação ambiental, que pode nos conduzir mais rápido do que se imagina à hecatombe final.
Por que as propostas de Lula à frente do G-20 não ganharam as manchetes da mídia corporativa brasileira e ocidental?
Elas não deveriam interessar a todos?
Engana-se quem acredita que o papel da mídia corporativa seja informar ou esclarecer a opinião pública.
O que ela faz aqui, na Argentina, nos Estados Unidos e na Europa é defender os interesses dos bilionários, dos exploradores de todo tipo e dos senhores da guerra, aqueles que ficam cada vez mais ricos com as mortes e a devastação do planeta.
Talvez, como Elon Musk, os proprietários dessa mídia acreditem que possam ir para outro planeta, à bordo de espacionaves, deixando para trás os miseráveis e a destruição que produziram.
A guerra por procuração dos Estados Unidos contra a Rússia, que é travada há quase dois anos na Ucrânia, não mereceu um único editorial indignado, clamando por paz imediata, dos principais veículos de comunicação.
O que se vê, ouve e se lê são criticas Lula e aos raríssimos dirigentes políticos que defendem a paz, como se fossem os equivocados.
A mídia corporativa brasileira chegou ao absurdo de cobrar de Lula o engajamento do Brasil ao lado da OTAN e do belicoso governo Biden, para derrotar Putin.
O que o Brasil e o povo brasileiro teriam a ganhar deixando a neutralidade de lado? isso?
Mais ainda. A mídia corporativa, Grupo Globo à frente, tem transformado o genocida primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, em alguém que apenas defende o seu país dos ataques dos “terroristas do Hamas”, quando o agressor histórico de homens, jovens, mulheres e crianças palestinas é Israel.
Também neste caso, o público brasileiro é levado a acreditar que Israel é o certo é que Lula deveria cerrar fileiras com os sionistas. Além da própria mídia é isso também o que defende a maioria das igrejas neopentecostais, verdadeiros empórios comerciais travestidos de templos.
No caso envolvendo a disputa entre Venezuela e a República da Guiana, uma ex-colônia britânica fantasiada de país independente, pela região de Essequibo, a situação é mais grave ainda.
O mínimo aceitável da parte da mídia corporativa nacional e latinoamericana, por mais subserviente que seja e é, seria espaço para a visão dos dois lados em disputa. Mas não.
Ela se posiciona abertamente contraria aos interesses locais e favorável à rapinagem das riquezas venezuelanas.
Na maior cara de pau, criminaliza Nicolás Maduro e a Venezuela e dá razão ao imperialismo em pleno século XXI, da mesma forma que fez com a Argentina e as ilhas Malvinas em 1983.
Os principais veículos abriram manchetes ressaltando que a decisão da Corte de Haia foi contrária a que a Venezuela tente recuperar o território de Essequibo, na véspera do referendo convocado pelo governo Maduro para ouvir a população sobre o assunto.
Se alguém tinha dúvida sobre a subserviência desta mídia aos interesses imperialistas, não precisa ter mais.
Pior ainda, no quesito subserviência foi a edição de quinta-feira do JN, ao criticar a decisão da Petrobras de não privatizar mais nenhuma refinaria. Decisão que deveria ser saudada, pelo que representa de compromisso com o país e com preços abrasileirados dos combustíveis.
Muita gente parece já ter se esquecido de que no governo Bolsonaro, o litro da gasolina bateu em oito reais, o do álcool em cinco reais e o do diesel acima dos nove reais, com a mídia caladinha.
Importante lembrar que esta mídia que apoia a exploração do petróleo na Guiana por empresa estadunidense é a mesma que acena com “graves prejuízos” ao meio ambiente caso o governo Lula decida-se pela exploração do petróleo na chamada Margem Equatorial.
No passado, o nome disso era entreguismo.
Para combatê-lo aconteceu a campanha O Petróleo é Nosso, foi criada a Petrobras e o Brasil se tornou um dos grandes produtores mundiais de petróleo.
O golpe contra a presidente Dilma Rousseff, em 2016, tinha como objetivo roubar, como aconteceu, o pré-sal brasileiro.
A continuação deste saque é o que defende esta mídia capacho do imperialismo, ao estimular ações contra os governos da Venezuela e do Brasil.
Será que alguém tinha dúvidas de que a decisão da Corte de Haia seria contrária à Venezuela? Basta lembrar que a maioria dos órgãos de governança globais criados após a Segunda Guerra Mundial está comprometida com um um sistema já falido, no qual uns poucos países dão as cartas e querem que Lula, à frente do G-20, precisará lançar, mais do que nunca, toda a sua habilidade não só para enfrentar o desafio das guerras já em curso, mas evitar que novas surjam, especialmente numa região de paz, como a América do Sul, em que fica visível que os imperialistas querem, a todo custo, estimular um conflito próximo à fronteira do Brasil.
Dezembro, que costuma ser um mês de tranquilidade e confraternizações, começa desta vez, sob o signo das mentiras, manipulações e tentativas de confusão.
É o alto preço que pagamos por nunca ter tido e continuarmos não tendo uma mídia pública que mereça este nome e uma mídia devidamente regulada, sem falar que todos (incluído o próprio governo) continuamos usando as plataformas das big techs para nos comunicar e nos informar, enquanto elas nos espionam, “mineram” e usam nossos dados de acordo com suas conveniências.
Como o inimigo está entre nós, a tarefa que Lula tem pela frente é gigantesca.