Ângela Carrato – jornalista. Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG. Membro do Conselho Deliberativo da ABI

 

O Brasil enfrentou, nos últimos dias, a chamada “tempestade perfeita”, designação para  um conjunto de ocorrências, que podem dar origem a mudanças drásticas no governo.

Tudo começou com a informação, divulgada nas primeiras horas da manhã da quarta-feira (11), dando conta de que o presidente Lula tinha tido um sangramento na cabeça e havia sido levado às pressas para o hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.

O sangramento era consequência da queda sofrida por ele, em meados de outubro.

A notícia preocupou a maioria da população e dirigiu as atenções, ao longo de todo o dia, para boletins médicos e informações sobre o estado de saúde do presidente. Na mídia corporativa e também na mídia independente não se falou de outra coisa. Mesmo os médicos explicando que Lula havia sido submetido a um procedimento “bem sucedido” e “sem intercorrências”, para drenar um coágulo na cabeça, não no cérebro, as especulações correram soltas.

A oposição de extrema-direita se assanhou a tal ponto que chegou a sentenciar que o governo Lula havia acabado ou, na melhor das hipóteses, ele mal encerraria o atual mandato e não teria condições de disputar a reeleição em 2026. Os governistas, nitidamente apreensivos, rebatiam tais falas, mas sempre de olho nos boletins médicos.

Por determinação do próprio Lula, tudo foi mostrado com a maior transparência.  Falou quem tinha que falar: os médicos. Os jornalistas perguntavam o que queriam, com alguns mal conseguindo disfarçar suas canalhices. Foi em nome da transparência que os jornalistas foram informados, com antecedência, sobre o novo procedimento a que Lula seria submetido na quinta-feira.

Baseando-se mais na torcida contra Lula do que na realidade, a extrema-direita acreditou que o novo procedimento era sinônimo do “fim de Lula”. E assim passou a agir. Na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, os bolsonaristas aprovaram pautas absurdas como o projeto de lei que retorna com o voto impresso e autoriza a recontagem física de cédulas nas eleições, vedando o voto eletrônico. Também na CCJ os bolsonaristas aprovaram o projeto de lei que institui a castração química para acusados de pedofilia.

No plenário do Senado não foi muito diferente em relação ao projeto de regulamentação da reforma tributária sobre consumo. A bancada da bala, por exemplo, conseguiu retirar do texto a taxação de armas e munições. Além disso, 650 emendas ainda deverão ser apreciadas, antes de o projeto retornar à Câmara dos Deputados, onde certamente sofrerá mais mudanças.

O clima no Congresso Nacional era de verdadeira rebelião, com a maioria dos parlamentares indignados com a decisão, mantida pelo ministro Flávio Dino, do STF, de exigir que não haja mais emendas parlamentares anônimas e que os recursos repassados devam indicar origem, valor e para o que se destinam. A extrema-direita tentou enfrentar Dino, mas levou uma invertida: “emenda anônima é corrupção”.

Se a mídia corporativa brasileira não fosse o que é, era para o assunto ter ganhado as manchetes. Mas não. Foi abafado, como é abafado tudo o que contraria o interesse da extrema-direita e dos bilionários.

Já o Banco Central, na última reunião presidida pelo bolsonarista Roberto Campos Neto, no mesmo dia, também fez das suas. Sem qualquer justificativa técnica, aumentou a taxa de juros em 1%, com ela se situando agora em estratosféricos 12,75% ao ano, a segunda maior do mundo, só perdendo para a Rússia, que está em guerra.

Não há justificativa para este aumento, a não ser a sabotagem explícita de Campos Neto ao governo Lula. Aumento na taxa de juros só se justifica quando a economia apresenta graves sinais de inflação ou crise. Definitivamente não é o caso.

No terceiro governo Lula, a economia está bombando. O desemprego atingiu a menor taxa de todos os tempos, o PIB do penúltimo trimestre de 2024 cresceu 0,9%, apontando para um crescimento anual em torno dos 3,5%, a inflação é de 4,8% ao ano e o investimento externo não para de chegar ao país.

A elevação deste 1% na taxa de juros, que passa a vigorar imediatamente, significa  aumento de R$ 70 bilhões mensais no valor da dívida interna,  quantia que o governo  precisará desembolsar para pagar aos banqueiros e ao mercado financeiro. Todo o trabalho do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, com o pacote de ajustes fiscais, traria para o governo uma economia de R$ 50 bilhões. Dito de outra forma, a engenharia colocada em prática por Haddad e sua equipe, para evitar que apenas os mais pobres continuem pagando a conta, foi jogada por terra com esta decisão.

Manchetes, editorias e artigos na mídia corporativa aplaudiram a decisão de Campos Neto, da mesma forma que assinalavam que ela, associada ao aumento na cotação do dólar em relação à nossa moeda, indicava reação nitidamente hostil ao governo Lula. Reação que foi interpretada como verdadeira comemoração diante do problema de saúde de Lula.

Não faltou quem, mesmo não tendo votado em Lula, considere a atitude do BC e do chamado “mercado”, inaceitáveis.  Na ótica dessas pessoas, pode-se ou não gostar de Lula, mas é inadmissível que isso seja colocado de forma tão explícita e se transforme em munição contra o governo.

Vejo de forma diferente.

O que o mercado, representado por Campos Neto e pela “Faria Lima”, deixou claro não é que se opõe a Lula. O inimigo para o mercado é qualquer governo que, mesmo sem grandes mudanças, tente alterar os privilégios que bilionários sempre tiveram e querem continuar tendo.

É interessante observar que a mídia corporativa, porta-voz do mercado, apressou-se em dizer que o mercado dava sinais de satisfação com os problemas de saúde de Lula. Satisfação que, sem medo de errar, posso estender também a esta mídia, incluindo patrões e alguns jornalistas.

Estranho se fosse diferente. Os adversários do governo Lula são os mesmos que, no passado, se bateram contra os governos progressistas de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, João Goulart, do próprio Lula e de Dilma Rousseff. São os mesmos que aplaudiram entusiasticamente os generais-ditadores que ocuparam a presidência da República entre 1964 e 1985. São os mesmos que deram apoio às medidas anti-maioria da população brasileira dos governos Temer e Bolsonaro.

O inimigo da classe dominante brasileira no momento é Lula, mas será qualquer um que busque tornar a nossa sociedade menos desigual.

O inimigo para o mercado é a maioria da população brasileira.

Não se deve perder de vista que os três séculos de escravidão deixaram marcas profundas na classe dominante que, se sabe comer de garfo e faca e não dá vexame nos salões, permanece profundamente violenta e excludente quando se trata de direitos sociais, de justiça e da soberania do Brasil.

Haja vista o que foi feito por Temer e Bolsonaro no que diz respeito a retirar direitos trabalhistas e previdenciários da população.   Haja vista a entrega do pré-sal para empresas multinacionais, de modo que nos dias atuais, apenas 5% da renda petroleira fica com o estado brasileiro.

A mídia da classe dominante, que se apressa em mostrar que o mercado não gosta de Lula, foi a mesma que desapareceu rapidamente com o Relatório Final da Polícia Federal no qual 37 nomes de generais e de civis são apontados como participando da articulação golpista de 8 de janeiro de 2023, a começar pelo próprio Bolsonaro.  Curiosamente, mesmo o relatório apontando para a necessidade de as investigações  identificarem os empresários que financiaram os golpistas, a mídia está caladinha sobre o assunto.

Se os ratos e corvos fizeram a festa nos últimos dias, o vídeo divulgado por Lula, na tarde da sexta-feira (13), no qual aparece bem disposto, conversando e andando pelo corredor do hospital Sírio Libanês, funcionou como ducha de água fria nesta turma. Possivelmente Lula retorne a Brasília no início da semana e vá assumindo aos poucos a rotina de trabalho.

Não só ele, mas o mundo político e econômico deve entrar no modo festas de natal e final de ano.

Depois disso será 2025, com muitas mudanças. A primeira delas é que o Brasil estará livre de Campos Neto. Muito mais rico do que antes, ele voltará ao sistema financeiro privado a que sempre serviu.

Já o todo poderoso Arthur Lira, mesmo que consiga eleger o candidato para sucedê-lo na presidência da Câmara dos Deputados, sabe que voltará a ser um parlamentar da “planície”. A menos que aceite um cargo no governo Lula.

O mesmo vale para o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que não sendo tão truculento quanto Lira, volta e meia ensaia ataques ao governo. Pacheco sonha com o governo de Minas Gerais e sabe que sem o apoio do Planalto, suas pretensões não têm como avançar.

A economia, pelo visto continuará bombando, mas falta ao governo comunicar as conquistas e avanços à população, furando o bloqueio da mídia corporativa e das emissoras e redes sociais nas mãos dos bolsonaristas e da extrema-direita. O desafio é enorme e o próprio Lula reconheceu, duas semanas atrás, em evento do PT, que tem errado no que diz respeito à comunicação oficial.

Tão importante quanto fazer é mostrar o que foi feito, admitiu.

2025 precisa, neste aspecto, ser um ano de enormes mudanças.

Para diminuir o assanhamento dos extremistas de direita, a mais recente pesquisa Quaest aponta que Lula vence todos os adversários e em todos os cenários para a próxima eleição presidencial. Resultado que, antes de tranquilizar o PT e o próprio Lula, é motivo para arregaçar as mangas e trabalhar muito.

2025 será também o ano em que os golpistas serão julgados e sentenciados pelo que fizeram. Um fato que promete ser inédito, verdadeiro divisor de águas na vida nacional. Afinal, se a nossa democracia ainda continua penando diante de ameaças de golpes e retrocessos, operadas por militares e bancadas pelo “mercado”, isso se deve a não ter, no passado, julgado e condenado quem a ameaçou.