A crise que escalou a tensão entre autoridades brasileiras e o bilionário americano Elon Musk, dono do X (antigo Twitter), teve início quatro dias antes com uma série de publicações na rede social. Mas, antes de o bilionário começar o embate com a Suprema Corte, uma rede transnacional de extrema-direita ajudou a disseminar a versão bolsonarista da história — segundo a qual existiria uma “ditadura” no Brasil — para milhões de pessoas.

No domingo (7), o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes mandou investigar Musk após o empresário ameaçar descumprir ordens judiciais requerendo informações sobre usuários e suspendendo contas de investigados. Horas antes, o governo Lula subira o tom ao afirmar que o Brasil é soberano e não vai permitir afrontas à Pátria.

Musk ecoa a crítica de muitos opositores de Moraes, sobretudo aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro, acerca da conduta da Corte nas investigações contra suspeitos e acusados de tentar minar a democracia brasileira. As queixas recaem no que dizem ser falta de transparência e discricionariedade nas decisões da Corte. Mas os atores envolvidos tentam associar a figura do presidente Lula ao autoritarismo, como parte da disputa política travada entre os dois campos.

A centelha que causou o incêndio foi acesa na quarta-feira, quando o jornalista americano Michael Shellenberger expôs no X uma suposta troca de e-mails entre funcionários da plataforma relatando pressão de autoridades brasileiras por dados sigilosos dos usuários da rede – os chamados “Twitter files”, ou arquivos do Twitter. A divulgação do conteúdo teve a parceria de dois brasileiros alinhados ao bolsonarismo, David Ágape e Eli Vieira. A sequência de tuítes tinha alcançado 30 milhões de pessoas até esta terça-feira.

No mesmo dia, Shellenberger foi compartilhado por lideranças ultraconservadoras no Brasil como os deputados federais Nikolas Ferreira (PL-MG), Bia Kicis (PL-DF) e Gustavo Gayer (PL-GO), comunicadores como Ana Paula Henkel, o ex-procurador da Lava-Jato Deltan Dallagnol e até mesmo o diretório nacional de seu partido, o Novo. O assunto domina o ecossistema bolsonarista nas redes sociais desde então.

A interação de contas populares de outros países ajudou o assunto a furar a bolha brasileira. O Visegrád24, perfil de direita com quase 1 milhão de seguidores no X que estourou de popularidade a partir da cobertura da invasão russa na Ucrânia, foi um dos primeiros a dar holofote ao caso.

Em meio à divulgação da troca de e-mails no Twitter, o discurso de que o Brasil estaria se tornando uma ditadura — versão que bolsonaristas têm propagado fora do país para desqualificar as investigações contra seu grupo político —, assumia aos poucos um lugar central no episódio.

Na sexta-feira, por exemplo, o deputado do Parlamento Europeu Hermann Tertsch, ligado ao Vox (partido de extrema direita espanhol), anunciou um debate para esta terça-feira com Kicis, Eduardo, Gayer e Marcel van Hattem (Novo). O tema: “A repressão de Lula ao Estado de Direito”. Na imagem divulgada estavam fotos de Lula e Moraes, acima da frase “pare com a repressão”. A youtuber Jamile Davies, que esteve com Bolsonaro no funeral da rainha Elisabeth, em 2022, repercutiu o evento de Tertsch.

Os temas da insatisfação de funcionários do Twitter com a pressão de autoridades brasileiras com o de uma suposta escalada no autoritarismo no país foram se fundindo. O deputado holandês Rob Roos, também do grupo dos conservadores no Parlamento Europeu, escreveu: “o Brasil dá uma guinada em direção a uma ditadura sob Lula que, com a cumplicidade de Alexandre de Moraes, o verdadeiro executor contra a liberdade de expressão, tem lançado ataque sobre a democracia”.

Todas as publicações mencionadas foram depois apagadas.

Após publicar o “Twitter files”, Shellenberger esteve em Porto Alegre para o encontro do Fórum da Liberdade, evento ligado ao pensamento liberal que exibe palestras sobre economia e política, recepcionado por van Hattem. O deputado gaúcho diz que o americano “decidiu prolongar sua estada no Brasil para estar ainda mais ao nosso lado nessa batalha pela liberdade de expressão”.

O Brasil está à beira da ditadura nas mãos de um ministro totalitário do STF chamado Alexandre de Moraes. O presidente Lula da Silva está participando desse impulso em direção ao totalitarismo” declarou o americano em um vídeo gravado em português, ecoando o discurso bolsonarista.

O vídeo, somado aos primeiros tuítes de Musk sobre o assunto, atiçou ainda mais o ecossistema de extrema direita e foi compartilhado por muitos americanos. Algumas das figuras que endossaram o discurso são Robert Kennedy Jr, candidato americano a presidente dos Estados Unidos, Santiago Abascal, presidente do Vox e aliado de Eduardo Bolsonaro na Espanha, e Glenn Greenwald, jornalista americano co-fundador do site The Intercept.

O argentino Fernando Cerimedo, conhecido no Brasil depois de divulgar uma live com mentiras sobre a legitimidade das urnas eletrônicas nas eleições de 2022 no país, também tem participado do engajamento. À época, o conteúdo foi amplamente divulgado por bolsonaristas e terminou suspenso pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Cerimedo foi estrategista digital de campanha de Javier Milei à Presidência da Argentina.

André Ventura, fundador do partido português antissistema e aliado de Eduardo, agradeceu a Musk pelos ataques ao STF. Ian Miles Cheong, comunicador de direita da Malásia, sugeriu aos brasileiros usar uma conexão VPN para continuar acessando o X caso a Justiça brasileira bloqueie a rede social.

Os laços criados pelo bolsonarismo e outros grupos de extrema direita ao redor do mundo têm sido estreitados com articulação proeminente de Eduardo. Em fevereiro de 2019, o ex-estrategista da campanha do ex-presidente americano Donald Trump, Steve Bannon, nomeou o brasileiro como representante sul-americano do The Movement, grupo criado para fortalecer a rede internacional da extrema direita.

Bolsonaristas vêm multiplicando suas agendas no exterior com esse objetivo. Em março, Eduardo desembarcou nos Estados Unidos com cerca de 20 parlamentares brasileiros para “denunciar a escalada do autoritarismo no Brasil” a Comissão de Direitos Humanos do Congresso americano. Eventos de bolsonaristas com lideranças internacionais têm se tornado mais comuns.

Como plano de fundo desses ataques ao STF estão os processos a que Jair Bolsonaro (PL) responde na Justiça. O ex-presidente é investigado por suposta fraude em cartão de vacina, tentativa de golpe de Estado, venda de jóias recebidas como presente ao país, a insurreição que depredou os prédios dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023, incitação ao crime na pandemia ao estimular que pessoas aglomerassem e não usassem máscara, vazamento de inquérito da Polícia Federal e interferência no órgão.


Avatar

administrator