Pela primeira vez na História do Brasil, um ex-presidente da República e militares de alta patente serão julgados por tentativa de golpe de Estado. Jair Bolsonaro (PL) e sete de seus aliados mais próximos foram transformados em réus pelo Supremo Tribunal Federal (STF), acusados de articular uma conspiração para impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) após a derrota eleitoral de 2022. A decisão, unânime, foi tomada nesta quarta-feira (27) pela Primeira Turma da Corte e marca o início de uma ação penal com potencial de alterar o cenário político e eleitoral do país.

Com o avanço do processo, Bolsonaro passa a enfrentar o risco de uma condenação que pode chegar a até 43 anos de prisão. A Procuradoria-Geral da República (PGR) sustenta que ele liderou um “núcleo crucial” na tentativa de ruptura institucional, que teve seu auge nos ataques às sedes dos Três Poderes no dia 8 de janeiro de 2023. A expectativa é que o julgamento seja concluído ainda este ano.

Relator do caso, o ministro Alexandre de Moraes afirmou que a denúncia apresentou provas robustas da participação ativa de Bolsonaro na elaboração de uma minuta de decreto para instaurar estado de sítio e acionar a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), numa tentativa de manter-se no poder mesmo após a derrota nas urnas. “Não há dúvida de que Bolsonaro conhecia, manuseava e discutia sobre a minuta do golpe”, destacou Moraes. Ele observou que a apuração do grau de envolvimento ocorrerá na fase de instrução processual, mas que os elementos já reunidos são suficientes para justificar a abertura da ação penal.

O ministro também mencionou que Bolsonaro coordenou ações ilegais de integrantes do governo federal e utilizou canais oficiais para espalhar desinformação sobre o sistema eleitoral. Como exemplo, citou uma live de junho de 2021 em que o então presidente fez acusações infundadas contra as urnas eletrônicas, colocando em dúvida a lisura do processo de votação.

Além de Bolsonaro, também se tornaram réus o tenente-coronel Mauro Cid, que colaborou com a investigação, e os ex-ministros Braga Netto, Augusto Heleno, Anderson Torres e Paulo Sérgio Nogueira. A lista inclui ainda o ex-comandante da Marinha, Almir Garnier, e o ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ). Todos responderão por cinco crimes, entre eles tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito.

Logo após a decisão, Bolsonaro fez um pronunciamento em que classificou a acusação como “grave e infundada”, atribuindo a denúncia à “criatividade de alguns”. Apesar da gravidade das acusações, voltou a criticar o sistema eleitoral, defendeu o voto impresso e insinuou que o ministro Alexandre de Moraes teria interesse pessoal em torná-lo réu. Ele assistiu ao julgamento no gabinete de seu filho, senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), onde recebeu solidariedade de aliados próximos.

A oposição está dividida sobre a melhor estratégia a ser adotada. Enquanto parte do grupo insiste em manter Bolsonaro como símbolo da resistência política mesmo inelegível, outra corrente defende a construção de um novo nome competitivo para 2026. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), é citado como alternativa. Uma possível eleição de Tarcísio poderia abrir caminho para anistias e até mesmo um eventual perdão ao próprio Bolsonaro.

Mesmo sob pressão, Bolsonaro não abre mão de sua candidatura. Em entrevista, ironizou sua condição de inelegível e comparou seu caso ao da cabeleireira Débora Rodrigues, condenada a 14 anos por pichar a estátua da Justiça no dia 8 de janeiro. “O candidato vai ser o Jair, o Messias ou o Bolsonaro. Não sei por que estou inelegível. É injustiça, igual fazem com a Débora, por um batom”, disse.

Durante a sessão de julgamento, Moraes elogiou o trabalho da PGR e ressaltou que a denúncia foi detalhada e embasada em diversos elementos de prova. “A denúncia descreve de forma detalhada, com todos os requisitos exigidos, tendo sido coerente a exposição dos fatos, com a descrição amplamente satisfatória da tentativa de golpe de Estado”, afirmou. Ele foi acompanhado pelos ministros Luiz Fux, Flávio Dino, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin.

Fux declarou: “Acompanho integralmente o relator, parabenizando-o pelo trabalho. Não deixou pedra sobre pedra”. Flávio Dino refutou a alegação de que os atos de 8 de Janeiro teriam sido protagonizados apenas por “velhinhas rezando com Bíblias”, argumento que considerou desrespeitoso diante da violência comprovada nas investigações.

Cármen Lúcia, por sua vez, qualificou os acontecimentos como “gravíssimos” e alertou para a necessidade de interromper a “máquina de desmontar a democracia”. Ela ressaltou que ditaduras não apenas matam a democracia, mas também atingem seres humanos concretos. “Ditadura vive da morte, da tortura, da destruição”, disse.

Encerrando a votação, o presidente da Turma, Cristiano Zanin, reforçou que havia “diversos documentos, vídeos e materiais” sustentando a acusação, afastando a ideia de que a denúncia se baseasse apenas na delação de Mauro Cid. “Considero que há materialidade e indícios suficientes de autoria, o que justifica o recebimento integral da denúncia”, afirmou.

Com essa decisão, o Supremo dá início ao primeiro julgamento penal da História envolvendo um ex-presidente por tentativa de golpe contra a democracia. Mas o caso está longe do fim. A Corte ainda analisará denúncias contra outros núcleos da suposta conspiração, que ao todo envolve 34 acusados.

O próximo julgamento, marcado para os dias 8 e 9 de abril, analisará as acusações contra o chamado “núcleo de ações táticas”, formado por militares de baixa patente e participantes diretos dos atos de 8 de Janeiro. O desfecho dessa série de julgamentos poderá definir o futuro não apenas dos réus, mas da própria estabilidade democrática brasileira.

Foto: José Cruz/Agência Brasil


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