A UFMG está avaliando a possibilidade de adotar um processo seletivo seriado para a entrada na graduação. Ele consiste na aplicação de exames durante três anos seguidos ‒ daí o termo “seriado” ‒, de modo que o ingresso do candidato se dê pela soma da nota obtida nessas três provas, que, inclusive, poderão ter pesos percentuais diferentes. Na maioria dos casos, a aplicação dos exames coincide com os três anos do ensino médio, mas a intenção da UFMG, caso a proposta seja aprovada, é também aceitar candidatos fora desse universo, como os alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) e as pessoas que concluíram o ensino médio há mais tempo.

A ideia é que esse novo processo coexista com a seleção atual, que ocorre via Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e Sistema de Seleção Unificada (Sisu); assim, um determinado percentual das vagas disponíveis, ainda a ser definido, seria destinado ao processo seletivo seriado, e o restante seguiria preenchido pelo modelo Enem/Sisu. Ambos os processos seguirão respeitando integralmente a Lei de Cotas, que acabou de passar por uma revisão no Congresso Nacional.

Integrantes de Grupo de Trabalho (GT) vêm conduzindo audiências públicas para debater a viabilidade de adoção do processo seriado e aprimorar a proposta, que vem sendo debatida desde maio deste ano. Sob a supervisão da professora Maria José Flores, pró-reitora adjunta de graduação, o GT deve submeter, ainda neste mês, o relatório do seu trabalho – contendo um estudo comparativo e uma proposta inicial de diretrizes para a possível implantação do processo – às instâncias colegiadas da Universidade após o término do ciclo de quatro audiências públicas. As atribuições do GT estão centradas no delineamento dos objetivos do processo, nas estruturas das avaliações e em sua operacionalização. O trâmite começará pela Câmara de Graduação, passará pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe) e poderá chegar ao Conselho Universitário para a deliberação final.

Já houve audiências no Instituto de Ciências Agrárias, em Montes Claros, na Faculdade de Medicina, no campus Saúde, e no auditório da Reitoria, no campus Pampulha – esta, realizada na última quarta-feira, 29 de outubro. Nesta terça-feira, dia 5, às 14h, ocorrerá um novo encontro, também no auditório da Reitoria, que reunirá professores e gestores das escolas de educação básica públicas e privadas, dada a relação mais estreita que elas devem ter com esse novo processo.

Algumas das discussões feitas nas audiências pela comunidade acadêmica e pelos representantes do Grupo de Trabalho.

Os benefícios da dobradinha Enem-Sisu

A história da educação pública superior brasileira na última década está no centro da proposta da UFMG de discutir a criação de um processo seletivo seriado.

O Sisu foi criado em 2010. Um ano antes, o Enem – lançado em 1998 para ser um exame avaliador da qualidade do ensino médio brasileiro – ganhava a função de também ser uma espécie de “vestibular nacional”. Nessa mesma época, houve a emergência e/ou consolidação de outras importantes novidades no âmbito da educação superior pública brasileira, como a política de bônus da UFMG, o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) e a Lei de Cotas. Foi um período de forte expansão da graduação da UFMG. “Entre 2009 e 2012, o número de vagas na graduação aumentou em 46%. Das novas vagas, quase 70% foram alocadas no turno noturno”, exemplifica o pró-reitor de Graduação, Bruno Otávio Soares Teixeira.

De lá para cá, foi-se consolidando o entendimento de que a dobradinha Enem/Sisu trouxe uma série de benefícios, como a redução dos custos dos processos seletivos, a democratização do acesso ao ensino superior e a indução de uma formação interdisciplinar e contextualizada no ensino médio. “Todos esses são pontos muito positivos do Enem, que teve grande impacto no sistema educacional do nosso país”, destaca Bruno.

O caráter contextualizado da formação é importante na medida em que induz o estudante a se perguntar como cada componente estudado se relaciona com a sua vida prática; o caráter interdisciplinar, por sua vez, torna as disciplinas convencionais do ensino médio cada vez mais entrelaçadas, o que gera uma proximidade e compreensão maior do mundo em que vivemos”, ele explicou.

De tudo isso, pois, decorre a intenção de se manter, na UFMG, a seleção de graduandos por meio desse processo. Ao mesmo tempo, no entanto, ao longo desta última década, foram também identificados alguns gargalos e limitações do sistema Enem/Sisu, razão pela qual se começou a pensar em modalidades alternativas e complementares de seleção – a avaliação seriada já é adotada por outras 14 universidades públicas brasileiras, sendo oito federais e seis estaduais.

Limites e gargalos do Enem

Mas quais seriam esses gargalos? Um deles decorre do fato de o exame adotar a Teoria de Resposta ao Item (TRI) como sistema de avaliação – algo necessário (já que o objetivo da prova não é apenas selecionar alunos, mas, também, promover avaliações anuais do ensino médio que possam ser comparadas entre si), mas, ao mesmo tempo, controverso, quando se põe foco no indivíduo que busca conseguir a tão sonhada vaga na universidade pública brasileira.

O TRI é um sistema baseado em modelos matemáticos complexos, que possibilitam a elaboração de provas distintas, mas com mesmo grau de dificuldade; assim, ele garante a isonomia entre provas aplicadas em ocasiões diferentes, possibilitando a comparação. Para isso, contudo, essas provas precisam ter uma quantidade elevada de questões (no Enem, são 180, organizadas em quatro áreas de conhecimento, mais uma redação, aplicadas em apenas dois dias de prova). Essa “maratona” dificulta que os candidatos reflitam a contento sobre cada questão. “Na prática, o exame acaba medindo mais a nossa capacidade de suportar física e psicologicamente as provas, em vez de avaliar o conteúdo”, resumiu um estudante de graduação que participou da última audiência.

Outros gargalos da seleção via Enem/Sisu seriam o uso exclusivo de questões objetivas, o que não contribui para a verificação de processos cognitivos de maior complexidade; o peso e o modo como as questões são concebidas, o que acaba induzindo os candidatos, na intenção de alcançarem uma melhor nota final, a adotar a estratégia de focar nas questões de matemática e na prova de redação, em detrimento das questões dos campos das ciências da natureza, das ciências humanas e das linguagens; e o já conhecido problema da prova de redação, que, limitada a um texto argumentativo-dissertativo esquemático, implica um tipo de treinamento de repetição de estruturas que não concorre para a adequada aferição das habilidades esperadas e eventualmente alcançadas pelos estudantes.

Nesse processo seriado, a ideia é ter provas semelhantes às do Enem no que diz respeito à sua intenção interdisciplinar e contextualizada, mas que sejam menores na duração e na quantidade de questões, de modo que se volte a oferecer aos candidatos tempo suficiente para que possam pensar e produzir as suas respostas sob uma perspectiva reflexiva e crítica. Há também a intenção de resgatar, em número reduzido, as questões discursivas (em paralelo às questões de múltipla escolha) e o hábito de leitura dos estudantes, algo fundamental para a sua formação. Nessa linha, a intenção é retomar o estudo de obras literárias brasileiras, com preferência para as de domínio público, com vistas à maior inclusão.

Calendário

Caso a proposta seja aprovada pelas instâncias colegiadas da Universidade, considerando o cronograma apreciado pelo Cepe em junho de 2023, o processo seriado será posto em curso apenas a partir de dezembro de 2024. A ideia é que, nesse primeiro ano, sejam aplicadas provas apenas para os alunos do primeiro ano do ensino médio, de modo que o sistema seja implantado de forma gradativa – “mineiramente”, como comentou Maria José Flores.

Assim, no ano seguinte, 2025, mais um passo seria dado com a aplicação de provas para as novas turmas do primeiro ano e, pela primeira vez, também para as turmas do segundo ano, formadas pelos alunos que já fizeram a prova do primeiro ano no ciclo anterior. Por fim, em 2026, seria aplicada a prova para as três séries do ensino médio, de modo que, em 2027, os primeiros estudantes selecionados pelo novo sistema ingressariam na Universidade, paralelamente aos calouros selecionados pelo sistema Enem/Sisu.

Foco na permanência

O grupo de trabalho responsável por conceber a proposta fez um amplo levantamento das experiências de outras universidades com processos seletivos seriados e da produção científica relacionada com o tema. Ao todo, foram analisados processos implementados ou em implementação em oito universidades federais e seis estaduais. Na última audiência, Maria José Flores apresentou alguns desses estudos. Eles demonstram, entre outras coisas, que alunos que ingressam na graduação por meio de processos seletivos seriados têm mais chances de permanência na universidade, na comparação com os que ingressam por meio de outro processo seletivo.

“Um estudante que se dedica, durante três anos, a organizar o seu ingresso na educação superior tende a fazer isso de maneira mais racional e planejada”, ela afirmou. Com efeito, uma das grandes preocupações que levaram à novidade é o alto grau de evasões principalmente no início dos cursos e de ociosidade de vagas em algumas instituições – ou seja, a preocupação é com o fato de o Sisu induzir “escolhas pouco sólidas”.O estudante decide o curso a fazer apenas depois de saber a sua nota no Enem. Há uma tendência de selecionar a carreira de maior prestígio, segundo os pontos obtidos. Isso pode contribuir para escolhas pouco sólidas e evasões ao longo do curso”, argumentou Bruno Teixeira.

Os dados empíricos corroboram a sua análise. Atualmente, para preencher uma única vaga, a UFMG precisa convocar, em média, dois candidatos, em razão do alto índice de reopções, desligamentos e desistências. Bruno Teixeira exemplifica o contexto desse problema com alguns números do ano passado: das 3.595 vagas ofertadas no primeiro período letivo de 2022, 648 (18%) não foram preenchidas – um dos motivos é a limitação de tempo para a realização de chamadas após o início das aulas – ou seus ocupantes desistiram ainda antes do fim do primeiro semestre. Outro dado: em 2022, 29% dos ingressantes da UFMG se matricularam em cursos que eram a sua segunda opção no Sisu, fato que reforça a noção de “escolhas pouco sólidas”.

Na audiência do dia 29, Dario Windmoller, professor do Departamento de Química – que, por muitos anos, esteve envolvido com os processos seletivos do antigo vestibular da UFMG –, avaliou ser “salutar” a ideia de implantar o processo seletivo seriado na Universidade. “Essa proposta está no caminho certo”, afirmou. Windmoller reiterou a importância de o processo seletivo adotar um modelo de redação que não reproduza o esquematismo da redação do Enem. “A redação tem um papel muito importante no Enem, mas há um treinamento para que os alunos tenham um bom desempenho. Isso não é interessante”, alertou o docente.

A professora do Centro Pedagógico Denise Alves de Araújo, integrante da Câmara de Graduação e do GT, concorda que esse é um ponto central. “De fato, precisamos avançar na reflexão sobre a questão da redação. Como a escrita pode contribuir nesse processo avaliativo? O que a gente quer induzir como prática nas escolas? É uma reflexão que precisa ser realmente cuidadosa.

Segundo ela, ainda que os detalhes finos ainda estejam sendo acertados, a ideia central é ter um exame que não repita o modelo de redação do Enem, em que o sucesso na prova se relaciona mais com a capacidade desenvolvida pelo aluno de decorar fórmulas de concepção de textos, em vez de se relacionar com sua efetiva capacidade de articular ideias. A proposta de processo seriado em formulação na UFMG pressupõe uma relação dessa redação com o estímulo ao hábito de leitura e com o estudo de obras literárias brasileiras, de modo que o exame possa efetivamente auferir a articulação intelectual dos candidatos.

Operacionalização

Boa parte das questões apresentadas pelo público na audiência realizada na última quarta-feira, dia 29, tratam da operacionalização do processo e de seus detalhes, haja vista que reúne variáveis complexas, como a logística a ser adotada.

Conforme indicação do GT, a logística de realização ficaria a cargo da Comissão Permanente do Vestibular (Copeve), órgão da UFMG com know-how na condução desse tipo de processo, com apoio de outros setores da Universidade. Todo o processo – da formulação das provas à sua aplicação – seria realizado pela UFMG, em interlocução contínua com as escolas de educação básica do estado.

Na mesma audiência, foi informado que a Universidade planeja contemplar candidatos de baixa renda com isenção da inscrição, nos moldes do que preconiza a legislação pertinente ao tema e do que já é feito em outros processos seletivos conduzidos pela UFMG.

Produção de questões

Um dos pontos recorrentemente destacados nas audiências públicas já realizadas é a importância de a Universidade voltar a produzir questões, algo que será propiciado pelo advento da seleção seriada. “Quando deixamos de ter um processo seletivo próprio, também deixamos de dominar essa tecnologia tão importante, em que a UFMG tinha grande reconhecimento nacional, que é a produção de itens de avaliação. É importante que a Universidade retome e domine essa prática, inclusive para também contribuir com o banco de questões de Enem”, destaca Bruno Teixeira.

Ainda no âmbito da operacionalização do novo processo, outra ideia posta na mesa é a de que as provas sejam aplicadas não apenas nas escolas de Belo Horizonte e de Montes Claros, onde a UFMG sedia seus cursos de graduação, mas também nas cidades do entorno metropolitano desses polos e em outros municípios de Minas Gerais. De acordo com o pró-reitor Bruno Teixeira, de dois a cada três ingressantes da graduação são oriundos da Região Metropolitana de Belo Horizonte. “Embora o Sisu tenha aumentado um pouco o ingresso de estudantes de outros estados na UFMG, a maior parte de nosso alunado continua sendo de Minas Gerais, principalmente do entorno da capital”, observa.

Ao mesmo tempo, o processo deverá ser aberto não apenas aos estudantes regulares do ensino médio, mas a todo interessado em se candidatar e concorrer. Nesse sentido, as atenções têm recaído sobre os detalhes finos dessa operacionalização, para que o processo possa, de algum modo, contemplar alunos que porventura se tenham visto impedidos de realizar alguma das provas da tríade de exames, assim como os repetentes, os alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) e as pessoas que já concluíram o ensino médio há mais tempo.

Um ponto destacado na audiência de quarta-feira passada foi a intenção de que a avaliação siga a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), com o acréscimo de orientações específicas para cada etapa da avaliação seriada. Já o percentual de vagas que será destinado a cada processo seletivo – ao seriado e ao Enem/Sisu – ainda está em aberto. Segundo a professora Maria José Flores, uma possibilidade em discussão, que leva em conta as experiências de outras instituições, é a adoção de um modelo em que se destina inicialmente 30% das vagas ao seriado e 70% ao Enem/Sisu, na intenção de se chegar, gradativamente, à 50% das vagas para cada modalidade. Bruno Teixeira acrescentou que, na perspectiva de equidade, a ideia é que também não haja distinção entre os cursos, no que diz respeito a essa distribuição percentual das vagas disponíveis entre os dois processos.

Nos últimos anos, a UFMG tem oferecido 6.740 vagas para entrada em 91 cursos da graduação: 5.425 para bacharelados, 1.235 para licenciaturas e 80 para superior de tecnologia (vagas iniciais, sem contar as remanescentes e eventuais vagas adicionais).

Conforme foi informado na audiência do dia 29, a ideia é que haja plena liberdade para que um mesmo candidato faça simultaneamente os dois processos seletivos – o seriado, ao longo de seus três anos de ensino médio, e o Sisu/Enem no seu último ano – e concorra por ambos, de modo a aumentar as suas chances de ser avaliado por um sistema mais capacitado para auferir a sua preparação.


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