Ângela Carrato – Jornalista. Professora da UFMG. Membro do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).

 

O presidente Lula confirmou presença na 16ª Cúpula do BRICS, que acontece em Kazan, na Rússia, nesta semana que se inicia. Lá estarão também outros 21 chefes de estado do Sul Global, para um encontro que promete ser o mais importante deste que o grupo foi criado em 2009.

Além do desenvolvimento econômico e social, o BRICS, que tinha por objetivo ampliar a influência de seus membros em temas de crucial importância para o mundo, tornou-se o principal fórum para redesenhar a injusta e superada ordem internacional instituída após o fim da Segunda Guerra Mundial.

Desde o conflito em processo na Ucrânia, uma guerra por procuração entre os Estados Unidos e a Rússia, agravado com o genocídio que está sendo cometido por Israel contra palestinos e libaneses, o mundo enfrenta um dos períodos mais tensos da história recente. Não está descartado nem mesmo tais conflitos desembocarem na Terceira Guerra Mundial e no uso de artefatos nucleares.

A tensão chegou a limites impensáveis exatamente quando se espera, para qualquer momento, um pesado ataque de Israel ao Irã, chancelado pelos Estados Unidos, com o Irã já tendo anunciado que revidará à altura. Ataque às vésperas da eleição presidencial nos Estados Unidos, onde o extremista de direita, Donald Trump, está tecnicamente empatado com a candidata situacionista Kamala Harris, sendo que ambos se posicionam praticamente da mesma forma sobre Israel e o Irã.

Como aliado de palestinos e libaneses, o Irã vem tentando colocar limites ao genocídio de Benjamin Netanyahu, que já matou, em pouco mais de um ano, 40 mil palestinos – a maioria mulheres, crianças e idosos – e 2 mil libaneses sob o  mentiroso argumento de que está combatendo “terroristas do Hamas e do Herzbollah”.

Para a ONU, Hamas e Herzbollah não têm nada de terrorista, como os Estados Unidos e aliados insistem em afirmar. Eles são grupos combatentes, análogos aos que, nas décadas de 1950, 60 e 70 enfrentaram o colonialismo europeu na África.

Já o governo Biden deu e continua dando total cobertura aos atos criminosos de Israel, sem levar em conta protestos em todo o mundo, inclusive em seu próprio país. Se quisesse, a Casa Branca poderia parar imediatamente este genocídio. Bastaria não mais vetar as várias propostas de paz imediata no Oriente Médio apresentadas ao Conselho de Segurança da ONU, uma delas pelo próprio Brasil.

Mas não. Valendo-se do poder de veto, Biden mantem o apoio ao aliado e ponta de lança de seus interesses no Oriente Médio.

A ONU se mostra impotente e confirma o que Lula tem dito e reafirmou, há poucas semanas, em seu discurso na abertura da assembleia geral da ONU. Lula disse, com todas as letras, que sem uma profunda reforma na governança mundial não teremos futuro como humanidade.

Ao se apegar a esta ordem carcomida, mas que obviamente lhe interessa, os Estados Unidos procura, de forma desesperada segundo vários especialistas, se manter como única super potência e deixa claro que continuará levando em conta apenas os seus interesses, mesmo em situações limites que podem levar à hecatombe nuclear.

Até alguns anos, não haveria o que fazer.

Agora há.

A ascensão da China como superpotência global, a parceria entre Rússia e China e a própria ampliação do BRICS, após o ingresso, na cúpula do ano passado em Johanesburgo, na África do Sul, de cinco novos membros – Egito, Etiópia, Arábia Saudita, Emirados Árabes e Irã – indicam que o caminho traçado está correto e, mais ainda, a fórmula para superar guerras imperialistas, desigualdades extremas, crise climática aguda e conflitos diversos passa pelo redesenho da ordem econômica mundial ainda em vigor.

O BRICS não é um grupo político e dificilmente se pronunciará diretamente sobre questões desta natureza, por mais graves e urgentes que sejam.

A parceria entre seus membros está estruturada a partir da cooperação financeira, econômica e cultural. Ou seja: é por este caminho que o grupo está criando as bases e condições para que a hegemonia estadunidense dê lugar ao mundo multipolar que, em alguns aspectos, já é realidade.

Não resta dúvida de que o BRICS é a articulação mais importante e audaciosa desde 1955, quando na histórica Conferência de Bandung, na Indonésia, a força dos países do Terceiro Mundo ficou evidenciada com a formação do Movimento dos Não-Alinhados, o bloco alternativo de países às duas superpotências de então.

É importante destacar que, se a partir daquela conferência temas como o reconhecimento da igualdade de todas as raças e nações, independente de serem pequenas ou grandes, a não ingerência e não-intervenção nos assuntos internos de outro país (autodeterminação dos povos) e o respeito pelo direito de cada nação defender-se, individual e coletivamente, de acordo com a Carta da ONU, passaram a dominar o cenário internacional.

O fim da União Soviética acabou levando a um enorme retrocesso nesses aspectos, com os Estados Unidos se sentindo livre para agir como xerife e dono do mundo, desconhecendo esses avanços e passando sistematicamente por cima da ONU e de tudo que foi construído em termos de governança global.

Os resultados são conhecidos. Independente de a Casa Branca ter como ocupante um democrata ou republicano, os Estados Unidos atiçaram e promoveram intervenções armadas, guerras e golpes de estado em toda parte, incluindo as guerras híbridas, que marcaram o norte da África no início da década de 2000 e se estenderam nos anos seguintes pela América Latina.

Mesmo que os resultados da luta daqueles 29 países africanos e asiáticos que se reuniram em Bandung sejam inegáveis, a começar pelo processo de descolonização da África que a ele se seguiu, eles estavam longe de possuir a representatividade e força econômica dos BRICS.

A mídia corporativa brasileira e internacional, alinhada aos interesses dos Estados Unidos e seus parceiros da OTAN, o chamado Ocidente Coletivo, esconde que o PIB dos BRICS já é maior do que o do G-7, o grupo que reúne os países considerados os mais ricos do mundo (Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido) e está em crescimento.

No início deste ano, enquanto o PIB dos BRICS representava 31,5% do PIB global, o do G-7 era de 30,8%. Isso já faz e fará toda a diferença.

Daí o principal assunto desta 16ª Cúpula do BRICS ser os avanços na construção de uma moeda alternativa ao dólar nas transações internacionais, uma vez que é esse predomínio que vem subjugando países, fomentando guerras e impondo e sanções que inviabilizam não só o desenvolvimento de todos como o próprio futuro.

Ao contrário do que alguns possam acreditar, esta cúpula não anunciará a criação de uma nova moeda para transações comerciais. Algo assim esbarra em questões especificas de cada um dos países membros, mas avançará ao estimular as trocas em  moedas próprias entre membros do BRICS. Não faz sentido, por exemplo, Etiópia e China terem que se valer do dólar em suas negociações. O mesmo pode ser dito para o comércio entre Rússia e China ou mesmo entre Irã e Rússia.

Para alguns desses países não se trata nem de buscar moeda alternativa, uma vez que os Estados Unidos os sanciona pesadamente e os tirou do sistema internacional de compensações por ele controlado, o SWIFT. Trata-se da própria sobrevivência.

Ao contrário do que autoridades estadunidenses imaginavam, as mais de quatro mil sanções aplicadas contra a Rússia desde o início do conflito na Ucrânia,  não impediram o país de crescer. Várias dessas sanções atingiram também instituições na China, Turquia e Emirados Árabes Unidos, contribuindo para o oposto do que pretendia a Casa Branca.

Foi o acordo alcançado pelos Estados Unidos e seus aliados em Bretton Woods, em 1944, para criar um regime cambial internacional no qual o dólar estava atrelado ao ouro, que possibilitou o poderio que este país passou a deter. Na época, os Estados Unidos era o único país a possuir consideráveis reservas em ouro, num mundo devastado pela guerra.

Os Estados Unidos cortaram unilateralmente os vínculos entre o dólar e o ouro em 1971, quando o então presidente Richard Nixon encerrou o sistema de Bretton Woods. Mesmo assim, o dólar continuou sendo a moeda de uso e referência internacional, garantindo para as finanças dos Estados Unidos e aliados uma porcentagem de todas as transações comerciais que se valham do Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication (SWIFT), a rede global que conecta bancos e outras instituições financeiras.

Fundado em 1973, o SWIFT desempenha para o sistema financeiro internacional papel semelhante ao exercido pela internet no que se refere às trocas de informações, igualmente concentradas nas mãos de meia dúzia de big techs estadunidenses. Se informação é poder, não é difícil imaginar como esse poder assume proporções assombrosas quando se trata de porcentagem recebida em todas as trocas financeiras que se utilizam deste sistema.

Não por acaso, uma das reuniões mais importantes, além das envolvendo a construção de um sistema de trocas alternativo ao dólar que precederam esta 16ª cúpula foi sobre redes de comunicação e cultura, que contou com representantes dos  nove integrantes do grupo.

Assuntos igualmente importantes como o ingresso definitivo ou não da Arábia Saudita no grupo e as regras para a definição de novos membros também estarão em pauta. Há uma fila de pelo menos 30 países solicitando adesão ao bloco, entre eles Tailândia, Vietnã, Venezuela, Bolívia, Turquia e Argélia, sem contar os que estão se candidatando à condição de observadores como Cuba.

Engana-se, portanto, quem acredita que na declaração final desta reunião do BRICS o mundo terá, finalmente, uma moeda alternativa ao dólar, da mesma forma que dificilmente novos membros serão anunciados. A declaração final conterá uma série de ações que estão e continuarão sendo implementadas, visando o fortalecimento das transações comerciais sem se valerem do dólar.

Essas ações dão seguimento a realidades como a de quase todos os países da América Latina e da África que já têm na China seu principal parceiro comercial ou ações como as da Venezuela e Cuba, que já negociam com a Rússia fora do dólar. Isso sem falar que a iniciativa chinesa Cinturão e Rota, conhecida como nova Rota da Seda, já é a maior e mais diversificada ação de cooperação e parceria que se tem notícia em todos os tempos.

O presidente Lula, pelo que tem dito em diversos fóruns, a exemplo do G-20, este ano sob a presidência do Brasil, deve mais uma vez condenar a paralisia da ONU diante da guerra na Ucrânia e do genocídio de Israel em Gaza. Deve igualmente se posicionar contra sanções e bloqueios como o que faz os Estados Unidos contra Cuba há mais de seis décadas. Mas deve, sobretudo, reafirmar a importância e o compromisso do Brasil com uma moeda internacional que ofereça alternativa ao dólar e possibilite desenvolvimento compartilhado.

Não se trata de meras palavras. Foi sob os dois primeiros governos de Lula que a ideia do que veio a ser o BRICS ganhou corpo. Já na presidência de Dilma Rousseff, o New Development Bank (NDB), o banco do BRICS, foi criado e passou a funcionar.  Nesses quase dois anos a própria Dilma, à frente do NDB, tem trabalhado para dar corpo aos papeis projetados para a nova instituição, uma vez que o Banco Mundial e o FMI nunca levaram adiante a missão de contribuir para o equilíbrio e o desenvolvimento dos mais diversos países.

O NDB tem linhas de crédito, a juros baixíssimos e sem exigir contrapartidas, voltadas para a construção e reconstrução de infraestrutura de seus países membros. O que explica, entre outros aspectos, a fila de interessados em ingressar no grupo.

Foi através de uma dessas linhas que o NDB destinou R$ 5,7 bilhões para a reconstrução do Rio Grande do Sul, após o desastre climático agravado pela negligência do governador e do prefeito de Porto Alegre. Detalhe: a mídia corporativa brasileira escondeu esse empréstimo por se tratar de uma ação da ex-presidenta da República que eles ajudaram a derrubar, mas, sobretudo, por ela evidenciar a ineficácia das velhas instituições internacionais.

Não houve qualquer menção do Banco Mundial ou do FMI sobre o que aconteceu no  Rio Grande do Sul e, menos ainda, proposta de ajuda. Não se trata de uma exceção. Essas instituições estão longe de terem qualquer preocupação ou compromisso com o futuro dos países do Sul Global.

Se o Brasil esteve ausente da Conferência de Bandug e, antes da presença de Celso Amorim no Itamaraty, nunca havia sido explicitada para valer as bases de nossa “política externa ativa e altiva”, caberá a Lula, neste terceiro mandato, impulsioná-la, num cenário muito mais complexo e conflituoso envolvendo a América Latina, o próprio Brasil e a nascente nova ordem mundial.

Se desde a doutrina Monroe, anunciada em 1823, os Estados Unidos deixaram nítida a  visão supremacista e a disposição de mandar na América Latina, no momento em que esta supremacia está colocada em xeque no resto do mundo, é obvio que as reações da Casa Branca não serão, como nunca foram, suaves.

Basta lembrar que à onda de governos progressistas na região iniciada em 1998, com a eleição de Hugo Chávez, na Venezuela, e que se estendeu até 2016, guerras híbridas e seu instrumento, o lawfare, estiveram presentes na Argentina, Paraguai, Bolívia, Equador e Brasil. A própria derribada de Dilma Rousseff é fruto desse tipo de articulação.

Na cena atual pode-se incluir nessa modalidade de guerra a deposição e prisão do presidente democraticamente eleito e empossado no Peru, José Castillo, o integral apoio à campanha e ao governo do ultraliberal Javier Milei, na Argentina, cujo governo, em menos de um ano, já jogou metade de sua população na pobreza, as crescentes pressões dos Estados Unidos contra a eleição de Nicolás Maduro para mais um mandato na Venezuela, sem falar nas permanentes ameaças de golpes na Bolívia e aqui.

Por ser o maior e o mais influente país da América Latina, não há como o Brasil evitar  atritos com os Estados Unidos, a menos que renunciasse a ser uma nação livre e estivesse disposto, como fez Jair Bolsonaro e sua turma, a beijar a bandeira estadunidense e declarar submissão ao Tio Sam.

Por tudo isso não é, e nunca foi fácil, a tarefa de governantes progressistas em nosso país.

Com razão, aspectos da política externa no atual governo Lula tem sido alvo de duras críticas. Crítica corretas. Não faz sentido para um país que defende a autodeterminação dos povos, cobrar, como fez Lula, a apresentação de atas eleitorais por parte da Venezuela, fazendo coro com os golpistas de lá e com a Casa Branca.  Não faz sentido, igualmente, continuar mantendo relações diplomáticas e comerciais com Israel, um estado genocida cujo primeiro-ministro já declarou o próprio Lula persona non grata em seu país.

Seriam essas posturas exemplos de passividade ou capitulação do Planalto aos ditames dos Estados Unidos? As opiniões estão obviamente divididas. Da minha parte acredito numa espécie de cálculo que está sendo feito pelo atual governo. Um cálculo extremamente pragmático.

Objetivamente falando não há e nem está colocada qualquer possibilidade de ruptura do Brasil com o chamado Ocidente Coletivo (Estados Unidos, parte da Europa e Austrália). Por outro lado, a condição indispensável para o Brasil e a América Latina terem vez e voz no século XXI, superando os entraves ao seu desenvolvimento e garantindo condições adequadas de vida para suas populações, passa pelo apoio e participação na construção de uma nova realidade mundial.

Daí o pragmatismo, excessivo para alguns, com que Lula se move nesse tabuleiro cada dia mais minado e perigoso.

A mídia corporativa brasileira, que esconde e mente sobre tudo o que interessa ao Brasil e ao povo brasileiro, desconheceu todos os preparativos para a cúpula de Kazan. Provavelmente será esse também o seu comportamento nos próximos dias, quando, sem exagero, um novo mundo, marcado pelo futuro compartilhado e não pela hegemonia de uma superpotência, ganhará linhas e contornos um pouco mais definidos.

Não se cria uma nova ordem mundial de uma hora para outra. Elas levam décadas e até séculos para se estabelecerem.  Antes do  BRICS nunca houve uma proposta de  ordem que fosse efetivamente positiva para todos e que levasse a um futuro compartilhado, diferente da rapina, da  permanente destruição da natureza e da imposição de regras pelos mais fortes.

Esse novo momento está finalmente sendo  construído. E nele o Brasil joga um papel de enorme importância.  Além de estar presidindo o G-20 esse ano, cuja cúpula acontecerá no Rio de Janeiro nos dias 18 e 19 de novembro, com a presença confirmada de dezenas de chefes de Estados, a começar por Xi Jinping, em 2025 presidirá o BRICS.

A história e a mitologia consideram Kazan, a terceira cidade mais populosa da Rússia,   uma espécie de porta para os jardins do paraíso. Já o Rio de Janeiro, além de ser uma das mais belas cidades do mundo, conta com a crença de que Deus é brasileiro.

Crenças e convicções à parte, o certo é que muitos pesadelos e infernos ainda aguardam o Brasil e o mundo nesta lenta construção de um verdadeiro futuro compartilhado por toda a humanidade.

Haja fôlego e determinação para enfrentá-los.