Ângela Carrato – Jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

A retirada de pauta do projeto de lei 2630, conhecido como Projeto das Fake News, pelo próprio relator deputado federal Orlando Silva (PC do B-SP), na última terça-feira, foi uma vitória dos que lutam por uma comunicação comprometida com a verdade, com a democracia e com a pluralidade da mídia no Brasil.

Foi uma vitória importante, mas que pode ser apenas temporária, se um amplo debate não for rapidamente realizado e envolver a maioria da população.

Na quinta-feira (4/5), o jornal O Globo, uma espécie de “voz do trono” da família Marinho, voltava à carga em editorial, ao enfatizar que o adiamento da votação deste PL “não deve significar seu esquecimento”, lembrando que “enquanto as plataformas digitais não estiverem sujeitas a regras mais duras, serão meio e palco para crimes”.

Aparentemente, o Globo estaria certo. Tanto que muita gente bem intencionada cerrou fileiras na luta pela aprovação do PL2630 e bateu palmas para a família Marinho.

É nesse ponto que reside a grande mentira contida nesse projeto de lei, que mesmo possuindo artigos importantes e sérios, teve sua finalidade desvirtuada.

Como tenho dito em artigos e entrevistas, o PL que Orlando Silva apresentou alterou em três pontos essenciais a matéria aprovada pelo Senado em 2020 e que dormia em algum escaninho daquela Casa, quando foi ressuscitada e teve tramitação relâmpago na Câmara dos Deputados.

Do projeto original do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) foi suprimido o artigo que determinava a criação de um órgão regulador, para fiscalizar o cumprimento pelas plataformas do que a legislação dispunha. E foram acrescentados dois outros artigos, um livrando a cara dos parlamentares que divulgam fake news e outro determinado que os recursos que as plataformas passariam a ser obrigadas a pagar se destinariam ao “jornalismo profissional”.

O entendimento do que essas mudanças significam facilita a compreensão de quais razões levaram O Globo e toda a mídia corporativa brasileira, aquela que desde sempre mente, engana e manipula, a se empenhar com toda a força pela aprovação deste projeto.

Vou procurar ser o mais didática possível.

Se este PL fosse aprovado como estava, a maioria dos seus 60 artigos se tornaria letra morta, pois não haveria órgão regulador capaz de fazer cumprir suas disposições. A pergunta que você, leitor/a deve estar se fazendo é: porque a criação desse órgão foi retirada desse PL? Pergunta essencial à qual acrescento outra: quem tinha interesse nessa retirada?

O relator Orlando Silva mais desconversou do que falou sobre o assunto. Mas deixou entender que o órgão regulador poderia complicar a tramitação do PL e que, tendo em vista as dúvidas que suscitava, poderia ser deixado para legislação complementar.

A Constituição de 1988, a primeira na história do Brasil a incluir um capítulo sobre Comunicação Social (artigos 220 a 224) não saiu do papel até agora, exatamente porque esses artigos demandavam legislação complementar, que os velhos monopólios de mídia jamais permitiram que fosse discutida.

Toda vez que o assunto democratização da mídia foi mencionado no passado recente, TV Globo, TV Record, SBT, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo ligavam suas baterias e anunciavam que Lula e o PT queriam “censurar a mídia” e “transformar o Brasil em uma nova Venezuela ou Cuba”.

Agora essa mídia faria diferente?

Deveria soar no mínimo estranho que os que sempre se opuseram a qualquer discussão sobre regulação democrática da mídia, tenham abraçado com tanto entusiasmo um PL para regular fake news apenas nas plataformas, com eles obviamente ficando de fora.

No fundo esses monopólios decadentes não estão preocupados em combater fake news. O que eles pretendiam era conter a crescente influência da mídia independente, que se vale dessas plataformas para existir e serem remuneradas.

Os diversos canais da mídia independente vêm crescendo e já começam a desbancar a mídia tradicional.

Vários desses canais têm mais de um milhão de seguidores e isso faz toda a diferença. A remuneração nas plataformas leva em conta o número de visualizações, o interesse que cada veículo desperta para neles veicular publicidade.

O novojornal.com.br, onde este artigo que você está lendo foi publicado, é parte da mídia independente. O novojornal só existe, porque existem as plataformas. Ou você acha que o que é publicado aqui você encontraria na TV Globo, no Estado de Minas ou na Folha de S. Paulo?

Sem as plataformas, nossos únicos meios de informação continuariam a ser a TV Globo, a TV Record, a Jovem Pan e os jornais Estado de Minas e Folha de S. Paulo, para citar apenas alguns.

Possivelmente você até hoje acreditaria que a ex-presidenta Dilma Rousseff foi alvo de impeachment, não saberia da farsa que foi a Operação Lava Jato, acharia o ex-juiz Sérgio Moro herói e Lula corrupto.
Aliás, até agora não vi nenhum desses veículos da velha mídia pedir desculpas pelas mentiras e desinformação que divulgou.

Pior ainda: o que vejo é essa velha mídia insistir na mentira e na desinformação.

No mesmo dia em que o Jornal Nacional promovia uma verdadeira cruzada contra as fake news nas plataformas e redes sociais e pela aprovação do PL 2630, seus âncoras, com caras mais limpas do mundo, anunciavam, sem qualquer contraditório, que o Conselho de Política Monetária do Banco Central (Copom) havia decidido pela manutenção da taxa de juros em 13,75% ao ano. Anúncio seguido do comentário de que essa taxa pode ainda vir a ser aumentada daqui a 45 dias, quando o Copom se reúne novamente.

Nem uma palavra sobre a luta do presidente Lula para tentar baixar os juros no Brasil, que são os mais altos do mundo. Nenhuma palavra sobre o fato de os juros altos impedirem a retomada do crescimento da economia. Até porque, os grandes especuladores não vão tirar dinheiro de aplicações para investir na criação de novas empresas e na abertura de novos postos de trabalho enquanto estiverem sendo contemplados por juros estratosféricos.

O Brasil virou o paraíso para a especulação financeira e a velha mídia bate palmas. Se esconder isso não for desinformação, não sei o que é.

Mas além de continuar mandando na comunicação no Brasil, a velha mídia, com esse projeto, queria drenar os recursos da nova mídia, asfixiando-a. E uma asfixia que não demoraria a acontecer. Segundo cálculos de vários canais independentes, se essa remuneração, como estava colocada no capítulo VII, em especial no artigo 32, fosse aprovada, a maioria dos canais independentes desapareceria em poucos meses.

Você viu a Globo falar alguma coisa sobre esse item? Ela tratou de escondê-lo.

Assim, um PL que supostamente se propunha a combater as fake news que circulam nas plataformas, além de sufocar a mídia independente, garantiria farta remuneração para a mídia tradicional e, nela, claro, a maior fatia para o Grupo Globo.

Todos estão acompanhando como a velha mídia está demitindo. Não se trata necessariamente de falta de dinheiro ou que esteja quebrada.

Vivemos um momento em que os negócios no setor estão mudando com muita rapidez. Os jornais impressos não fazem mais sentido. As TVs abertas estão com os dias contados. A família Marinho sabe disso e está mudando seu modelo de negócio. Mas para eles isso não basta. É preciso sufocar, como sempre fizeram, os concorrentes. E esses concorrentes estão exatamente nas plataformas.

Diante disso, pergunto: se o interesse do PL 2630, da forma com que ficou, fosse combater as fake news e criar mecanismos para punir as plataformas, qual o problema em se criar um órgão regulador, com previsão de participação da sociedade civil? Qual o problema em se retirar o aceno para parlamentares propagadores de fake news e deixar o tema da remuneração para outro projeto de lei?

Você concorda comigo que prever remuneração para o “jornalismo profissional”, como a velha mídia se auto intitula, não tem nada a ver com o combate às fake news nas plataformas?

O relator Orlando Silva poderia ter feito isso. Por que não fez?

No fundo, parece quer ele sabia que com o órgão regulador, sem privilegiar parlamentares e sem prever remuneração para a velha mídia, esse PL não seria aprovado.

Valeria a pena, então, aprovar um novo monstrengo completamente desviado de sua finalidade?

Claro que precisamos combater as fake news, mas não podemos ser ingênuos acreditando que elas circulam apenas nas plataformas das big techs. Elas estão presentes em todo o ecossistema de informação no Brasil e um PL que combate apenas mentiras nas plataformas, acaba funcionando como um atestado de idoneidade para a velha e manipuladora mídia corporativa.

Um PL que visa combater as fake news nas plataformas das big techs (meia dúzia de poderosíssimas empresas internacionais, a maioria estadunidense) não deveria mencionar que o Brasil precisa ter a sua própria plataforma para a mídia, sem prejuízo para a existência das demais?

Por que isso jamais é mencionado? A Austrália, único país a regular as big techs em favor da velha mídia, foi citada à exaustão, mas nenhuma reportagem, editorial ou colunista da velha mídia mencionou que vários países já dispõem de suas próprias plataformas, como a China, a Índia e a Rússia.

Diante disso, que tal a velha e a nova mídia, faculdades de jornalismo, sindicatos da categoria, sindicatos e entidades em geral comprometidas com o combate às mentiras e a democratização do setor iniciarem um amplo debate sobre o assunto?

Que tal a mídia tradicional dar a partida, retirando a democratização da mídia do seu index de assuntos proibidos?

Que tal discutirmos a fundo o que é mentira, desinformação, manipulação, monopólio e fake news no ecossistema de informação?

Mais ainda: o presidente Lula, ainda nesse primeiro ano do seu terceiro mandato, poderia convocar a segunda conferência nacional de comunicação – a primeira aconteceu em 2009 – para discutir esses assuntos.

Fica a sugestão para evitarmos novas mentiras, que são verdadeiros crimes contra a verdade a que tem direito toda a população brasileira.


1 Comentário

  • Avatar

    HUMBHHumberto Soeiro Pinto, maio 9, 2023 19:21 @ 19:21

    Tá o Ângela!Bravo! Ângela!

Os comentários estão fechados.