Ângela Carrato – Jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG.

Bolsonaro e os bolsonaristas estão transformando a campanha eleitoral numa espécie de “guerra religiosa”, onde se apresentam como “tementes ao Senhor, propagadores da fé, da religião e da família”, e denunciam os demais como representantes do que há de ruim, “do demônio, de lúcifer”.

Um cenário deste tipo nos remete à Idade Média e ao seu obscurantismo, com a intransigência religiosa e sua visão anticientífica (terra plana) levando pessoas à fogueira.

No Brasil, como se sabe, o estado é laico e a Constituição estabelece a total liberdade religiosa.

Em pleno século XXI e, sobretudo, numa campanha eleitoral crucial, que vai definir o futuro do país pelas próximas décadas, a quem interessa reeditar uma “guerra religiosa”?

Uma pergunta como essa pode até parecer descabida, especialmente se a pessoa não tiver elementos para uma reflexão mais cuidadosa. Por isso mesmo, tal reflexão se faz necessária.

Desde a chegada de Bolsonaro ao poder, em 2018, seus apoiadores passaram a dar curso à perseguição às religiões de matriz africana. Quem se lembra do assassinado com 12 facadas nas costas, em um bar em Salvador, do mestre de capoeira Romualdo Rosário da Costa, conhecido como Moa do Katende? Ele foi atacado após uma discussão política, onde se posicionou contra Bolsonaro.

De lá para cá, tem se multiplicando os casos de violência contra terreiros de umbanda e seus praticantes. O que guarda relação com o crescimento exponencial de denominações neopentecostais, algumas marcadamente intransigentes e pouco dispostas a respeitar o que está expresso na Constituição. Existe hoje algo em torno de 138 mil igrejas evangélicas para um total de 5886 municípios brasileiros.

Parte destas igrejas surgiram estimuladas por setores conservadores dos Estados Unidos e estabelecidas aqui por pessoas de poucos escrúpulos. Se em 1984, o então governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, frisava que muitos pastores estavam interessados apenas em dinheiro e em emissoras de rádio, antes dele, no final dos anos 1970, o jornalista Délcio Monteiro de Lima, denunciava num livro seminal “Os diabos descem do norte”, a invasão do Brasil por seitas evangélicas, estimuladas pelo Tio Sam.

Se estivessem vivos, Brizola e Délcio, com tristeza, certamente veriam confirmadas suas previsões.
Mas onde entra Bolsonaro nisso?

Como expressão da extrema-direita, o ex-capitão sabe que estimular a “guerra religiosa” é uma das maneiras mais fácies para implantar a discórdia e dividir a população. E ele está usando isso ao sabor dos seus interesses.

Mesmo se dizendo católico, Bolsonaro foi batizado pelo pastor Everaldo Pereira no leito do rio Jordão, em Israel, em 2018. As imagens do batismo foram amplamente compartilhadas pelo pastor em suas redes sociais. No ano seguinte, Bolsonaro foi novamente batizado, pela terceira vez, pelo empresário-líder espiritual da Igreja Universal do Reino de Deus, Edir Macedo, que aproveitou um culto no faraônico Templo de Salomão, em São Paulo, para o serviço. Macedo fez questão de abraçar Bolsonaro e dizer que Deus estava com ele.

Com o início da campanha eleitoral, Bolsonaro tem aproveitado todas as oportunidades para visitar templos evangélicos em busca de apoio e sua esposa, Michele, que é evangélica, tem pedido jejum aos fieis para auxiliar na reeleição do marido. Até ai, tudo bem, se muitos destes tempos, como a Assembleia de Deus e a própria Igreja Universal, não estivessem transformando seus cultos em doutrinação contra o ex-presidente Lula, candidato de oposição que lidera a corrida presidencial, e a favor de Bolsonaro. “Deus é de direita e Lúcifer é de esquerda. Com quem você quer ficar? Em quem vocês vão votar?” Isso tem sido dito e repetido por pastores e bispos nestas igrejas!

Nos últimos dias, Bolsonaro resolveu investir também junto aos católicos. Compareceu, para fazer campanha eleitoral, nas duas mais importantes e tradicionais cerimônias católicas no país: o Círio de Nazaré e a festa da padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida.

Sem ser convidado, ele estava no sábado (9/10), na lancha da Marinha que leva a imagem da Virgem de Nazaré pelas águas da Bahia de Guajará, em Belém. Sua atitude indignou os milhares de fieis e também à Arquidiocese da capital paraense, que divulgou nota enfatizando que não aceita a tentativa de utilização da fé com fins eleitorais. Dois dias depois, a própria CNBB, entidade máxima da Igreja Católica no Brasil, divulgou nota, às vésperas do 12 de outubro, Dia de Nossa Senhora Aparecida, confirmando e aprofundando o que havia sido dito pela Arquidiocese de Belém. O nome de Bolsonaro não foi citado e nem era preciso.

Qualquer político que minimamente tivesse respeito para com as religiões, jamais teria ido a Aparecido. Mas ele fez exatamente o contrário. Depois de estar, pela manhã em Belo Horizonte, onde participou da inauguração de um tempo neopentecostal, ao lado do empresário-titular do estabelecimento, do qual ouviu pedidos de apoio aos jejuns defendidos pela primeira-dama, Bolsonaro foi direto para Aparecida. Lá desembarcou acompanhado de numerosa comitiva, da qual fazia parte inclusive o seu candidato ao governo de São Paulo.

Sua presença na solenidade religiosa deu origem a cenas até então inimagináveis. Apoiadores seus passaram a insultar o ex-presidente Lula, que nem lá estava, a gritarem palavras de ordem contra o PT e a perseguirem equipes de televisão e até um jovem que trajava camisa vermelha.

Uma das imagens mais dantescas registradas foi a de um apoiador de Bolsonaro, de camisa verde e amarela, bebendo uma latinha de cerveja dentro da Basílica de Aparecida. Algo igualmente impensável aconteceu: um padre ser vaiado dentro de uma igreja por defender o combate à fome e à miséria e o apoio aos desvalidos.

A indignação com o que aconteceu só não foi maior, porque a mídia corporativa brasileira, a começar pelo Jornal Nacional, da TV Globo, não levou ao ar o que aconteceu, passando para os telespectadores a impressão de que a solenidade religiosa havia transcorrido dentro da mais absoluta normalidade.

A atitude de Bolsonaro comporta muitas leituras. A primeira delas tem a ver com a sua falta de escrúpulos em tentar se valer da fé alheia com vistas aos seus interesses eleitorais. Outra dá conta do desespero em que se encontra, com uma campanha estagnada, que não consegue produzir um mínimo de imagens dele cercado por multidões. Daí as tentativas para sequestrar as imagens do 7 de setembro, do Círio de Nazaré e da solenidade em Aparecida para chamar de suas.

Atrás de votos, Bolsonaro é católico, protestante, espírita, maçom, qualquer tipo de fé que possa lhe render votos. Daí, com razão, alguns padres assinalarem que ele precisa se definir. Não é possível ser católico e evangélico ao mesmo tempo.

O Jair, claro, tem feito ouvidos moucos. Até porque a religião dele tem nome e sobrenome: esperteza demais.