Era fim de tarde e nos encontrávamos, em pequeno grupo, no restaurante do Othon Palace Hotel, no topo do prédio, com vista para o Parque Municipal. Presente, dentre outros, o Marcelo Costa, que dava os primeiros passos na condução de construtora herdada do pai, engenheiro, que durante anos também trabalhou em empresas de grande porte, e que havia falecido prematuramente, em meio a procedimento cirúrgico. O encontro era despretensioso, coisa de mineiro jogando conversa fora, com relatos de casos curiosos, que também chamamos de “causos”. Próximo do hotel, na rua dos Tamoios, 43, ficava a sede do Escritório do advogado Celso Bonfim, comercialista famoso e que atendia a inúmeras empresas multinacionais. Trabalhei com ele no início da década de 70, como estagiário. Numa quarta-feira, um dos estagiários do Escritório estava de saída, por volta das 16 horas, aguardando no sétimo andar a chegada do elevador. Elevador antigo, lento e que fazia barulhos estranhos nas subidas e descidas. Aliás, de tão lento ele não subia, escalava. A porta se abriu, e do ascensor saiu com o queixo sustentando o olhar na direção do estagiário um individuo de aparência depressiva, que lhe perguntou: o senhor é o doutor Celso? Ele respondeu que não, e indicou a porta principal do Escritório. A pessoa agradeceu, o estagiário deixou o elevador seguir o seu curso e permaneceu de pé no corredor, curioso. Aquele senhor sinistro simplesmente abriu a porta, que estava sempre destravada, entrou direto, porque o doutor Celso não tinha secretária e, frente à frente com o mesmo, lhe indagou: o senhor é o doutor Celso?. Ele respondeu que sim, enquanto o homem puxava da cintura um revólver oxidado, com o qual disparou a sangue frio um tiro em direção do advogado. A estória não é longa: o atirador se equivocou, achando que o doutor Celso se encontrava às escondidas com a sua ex-esposa, de quem o atirador estava se desquitando, e o projétil acertou de raspão um dos testículos do advogado que, em face da sua idade avançada, não estava muito preocupado com a eventual perda do órgão, que, aliás, sobreviveu para enfrentamentos futuros.

A conversa seguiu o seu curso, quando alguém se lembrou de que o colunista PCO mantinha no hotel um bunker para a formatação de encartes de publicidade, mas ele lá não se encontrava para multiplicar as narrativas, com o seu talento de sempre. O Othon, na ocasião, era arroz de festa no tocante a pessoas conhecidas, que no local faziam presença. Uns iam a negócios, outros para buscar ou levar parentes e amigos que no mesmo se hospedavam, enquanto que outros tantos se amontoavam nos apartamentos de qualidade para trair esposas ou simplesmente se esconder deles mesmos, alternando o tempo disponível entre a televisão e a mesa do bar.

Era uma tarde comum, sem boas ou más novas na linha do horizonte, que permanecia enfarruscado. Contudo, naquela mesa, enrustido e sem ostentação, se encontrava um campeão, o Marcelo Costa. Ele estava se dedicando à expansão de negócios em Brasília, mediante consórcio da sua empresa com outra de maior porte, e nadava em todas as direções para achar o caminho do pote na base do arco-íris. Naquele tempo a base do arco-íris poderia ser generosa, mediante a descoberta de pote de ouro, conforme a lenda. Hoje, o arco-íris tem as cores dos movimentos de gênero e na sua base poderá ser encontrado, eventualmente, um vergalho ou, quem sabe, uma intimação decorrente de inquérito policial instaurado pela Lava jato. Mas, Marcelo estava disposto a correr riscos.

Brasília, naquele tempo, ainda era a mãe generosa e descuidada, vovó extremosa, coração aberto com asas dispostas a acomodar a todos os ímpetos e capaz de aquecer os mais ambiciosos e promíscuos segredos. E foi nessa ilusão que o Marcelo, depois de muita luta para marcar a audiência, conseguiu, mediante o apoio de vários pistolões, agendar visita ao então ministro da Integração Nacional, Senador Fernando Bezerra, que se formou na Fundação Getúlio Vargas e tinha vasta experiência em administração pública. Marcelo embarcou de BH para Brasília no primeiro avião. Na noite anterior havia se deleitado com o consumo de pequenos leitões assados na brasa e sorvido vinhos tintos de qualidade, como era seu costume. No aeroporto comeu mais duas empadas e um quibe de carneiro, e foi à luta. Lhe preocupava o excesso de flatulência, mas relevou. O Ministro havia marcado a reunião para as dez horas. Ele chegou na Esplanada por volta das oito e meia, e ficou zanzando na calçada, indo e voltando, nas imediações do prédio, deixando o tempo passar e vazando os gases que lhe estufavam agressivamente o abdômen. Meia hora antes do horário da audiência subiu para o gabinete e se apresentou à secretária, que o encaminhou a uma saleta que ostentava, dependurado, quadro com o retrato da presidente Dilma. Marcelo piscou para a Dilma com o olho esquerdo e ela não correspondeu. Decepcionado, mostrou para a “presidenta”, como ela gostava de ser tratada, o dedo médio, em riste, e se preparou para o combate. Foi chamado logo em seguida e entrou, mediante suspiro prévio, na sala do Ministro. Sua Excelência o recebeu de pé, com formalidade inerente ao cargo e deixou que Marcelo fizesse o relato de seu interesse e apresentasse o pleito que julgasse pertinente. Marcelo estava nervoso; o Ministro não sorria, não refrescava a conduta, o que dificultava a narrativa ensaiada, e sequer permitia que ele conseguisse criar alguma empatia, para facilitar a compreensão das dificuldades na condução de obras contratadas por sua empresa, no âmbito do Ministério. Ainda acossado pelos gases, Marcelo aproveitou o toque do telefone do Ministro, que desviou o olhar em outra direção, e corajosamente soltou um punzinho, um flato minúsculo, uma bolha gentil e delicada, que lhe escapou do ânus, agradecida. O Ministro conversou rapidamente ao telefone e retomou a sua atenção para o Marcelo. E, então, doutor Marcelo, onde paramos? Ministro, disse o Marcelo, o Senhor vai me desculpar, mas eu caguei na calça. O Ministro Bezerra, surpreso, perguntou: mas cagou, mesmo, agora, na minha cadeira? Marcelo, pálido e com a cor verde clara colorindo o seu rosto redondo, confirmou: caguei, Ministro, não deu para segurar. O Ministro, político da velha guarda, disse, levantando as sobrancelhas: doutor Marcelo, os empreiteiros, infelizmente, fazem muita merda aqui no Ministério, mas cagar no meu gabinete foi a primeira vez.


2 Comentários

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    Guilherme Hernandez Filho, março 26, 2022 07:52 @ 07:52

    Ótima narrativa.

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    João Marcos de Almeida da Fonseca, abril 5, 2022 20:09 @ 20:09

    Brilhante narração, que não é novidade vindo do Caio.
    Trabalhamos no sul do Brasil nos idos de 89 a 95/96 aproximadamente. Ele na Diretoria Comercial e eu na Gestão de Contratos também sob seu comando matricial.
    Tempos de ouro no meu aprendizado.

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