Alex M. S. Aguiar

Na semana que passou celebramos o “Dia Mundial da Água”, instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 22 de março de 1992, portanto há trinta anos passados, como uma forma de alertar a população sobre a necessidade de preservação do recurso para garantir a sobrevivência de todos os ecossistemas do mundo.

É por demais conhecida o papel da água como bem essencial a todos os seres vivos. Não é por outra razão que a Lei Federal nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997, estabelece em seu Artigo 1º, inciso III, que “em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais.” A mesma linha é seguida pela legislação estadual: a Lei Estadual nº 13.199, de 29 de janeiro de 1999, dispõe em seu Artigo 3º, inciso I, que na execução da Política Estadual de Recursos Hídricos deve ser observado “o direito de acesso de todos aos recursos hídricos, com prioridade para o abastecimento público e a manutenção dos ecossistemas.”

Se esses instrumentos legais convergem para os princípios que deram origem à instituição da data que celebramos, o cenário que vivemos no Brasil vai no sentido oposto. Encontra-se no Congresso Federal o Projeto de Lei nº 4546, que altera a Lei 9.433 citada, criando uma estrutura de mercantilização dos recursos hídricos que se opõe à garantia de acesso a todos a esses recursos, uma vez vinculá-los a uma valoração monetária. Em linha mais pragmática, a já aprovada Lei 14.026 de 15 de julho de 2020 pôs a corda no pescoço das empresas públicas de saneamento, tanto as estaduais como as municipais. Para incentivar a privatização dos serviços de saneamento básico no país, essa Lei 14.026/2020 lançou mão de critérios absurdos, claramente com o objetivo de dar fim à participação pública no setor e entregá-lo, de bandeja, a grupos privados. No caminho de sua aprovação pelo Congresso, os interessados na privatização empregaram inverdades a rodo, replicadas de pronto por grande parte da mídia: “o dinheiro dos privados” é essencial para garantir os investimentos necessários e acabar com esse déficit vergonhoso; “a maior eficiência dos privados” vai garantir o acesso aos serviços pelas populações mais pobres, e por aí vai. Apenas falácias.

A matemática da sustentabilidade dos sistemas de saneamento, em que pese passar por diversas complexidades do economês indiferente ao cidadão comum – valor líquido presente, amortização e remuneração de ativos, taxas de retorno etc. – se fundamenta em um princípio muito simples: é o bolso do cidadão que vai pagar tudo isso, e não o dinheiro dos privados. Aliás, é certo que a maior parte dos recursos que serão captados para serem investidos pelas empresas privadas serão recursos públicos, oriundos dos impostos pagos por todos os brasileiros. E a remuneração dessa captação, compreendendo principal e juros, será inteiramente paga pelos cidadãos através de suas contas de água. E é exatamente aí que residem os problemas que, se não nos impedem, nos intimidam de comemorar o Dia Mundial da Água, ao menos sob a perspectiva do acesso à água, reconhecido pela ONU em 2010 – com anuência do Brasil e de outros 121 países – como um direito humano essencial para o usufruto de todos os demais direitos humanos.

Em Minas Gerais, e já discorremos aqui nessa coluna sobre o tema, Zema encaminhou à ALMG um projeto de regionalização dos serviços de água e esgotos que tem como pano de fundo privatizar esses serviços em todo o estado, a despeito da presença da Copasa em mais de 600 de nossos 853 municípios. Essa proposta de Zema considera Unidades Regionais, cuja adesão pelos municípios é voluntária, embora aqueles que optem por não aderir recebem como penalidade o impedimento de acesso a recursos federais para saneamento – mais uma pérola do obscurantismo no qual se encerra a Lei 14.026/2020. Algumas dessas unidades possuem mais de 40% de sua população (em uma delas chega a 48,5%!) em situação de vulnerabilidade financeira, abrangendo famílias classificadas em Extrema Pobreza (renda familiar per capita de até R$89), Pobreza (renda familiar per capita entre R$89 e R$178) e Baixa Renda (renda familiar per capita entre R$178 e meio salário-mínimo). Essas pessoas não serão capazes de arcar com os aumentos tarifários esperados a partir da privatização, aumentos que já estão ocorrendo nos estados em que os leilões já aconteceram e nas cidades que recentemente optaram por privatizar seus serviços. Assim, não é difícil imaginar a predominância de um arranjo que resulte em maior exclusão das pessoas do acesso à água, particularmente das pessoas mais necessitadas – que, convenhamos, não se constituem em nenhum atrativo aos interesses de empresas privadas.

Que dentre as celebrações de seu “Dia Mundial” a água possa ser, além de essencial a nossa própria sobrevivência, um tema que leve todos a exercitar o princípio da solidariedade com o próximo. E que muito em breve possamos ter governos que não sobreponham o interesse financeiro de alguns poucos às necessidade de muitos – em especial as necessidades daqueles que menos têm como garantir sequer sua sobrevivência.