Ângela Carrato – Jornalista. Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG. Membro do Conselho Deliberativo da ABI

 

A presidente de Honduras, Ciomara Castro, que está à frente da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), convocou reunião de emergência para a próxima quinta-feira (30), para discutir a crise provocada por Donald Trump com suas  deportações em massa de imigrantes latino-americanos.

Composta por 33 países, a Celac é o principal bloco regional e a previsão é de que participe a maioria dos seus integrantes. A questão da imigração ilegal para os Estados Unidos atinge toda a região e exceto os governantes de extrema-direita, capachos de Washington, há muita indignação com a maneira com que Trump tem tratado o assunto.

Tão logo assumiu, Trump declarou que não precisava da América Latina para nada, depois de ameaçar o Canadá, o México e a Dinamarca com a anexação de seus territórios e de anunciar que pretende retomar para os Estados Unidos o Canal do Panamá. Deportar todos os imigrantes ilegais ele vinha ameaçando desde o seu primeiro governo, retomando o assunto durante a recente campanha eleitoral.

Antes mesmo de completar uma semana na Casa Branca, Trump determinou a expulsão da primeira leva de brasileiros. Os deportados chegaram em Manaus, na última sexta-feira, algemados e acorrentados, como se fossem criminosos de alta periculosidade. O voo tinha como destino final o aeroporto de Confins, em Belo Horizonte, mas foi obrigado a fazer um pouso forçado em Manaus, porque o avião teve uma pane no sistema de ar-condicionado.

Ao desembarcarem, os deportados relataram não só as humilhações de que foram vítimas, como os momentos de aflição durante a viagem, devido à pane no avião. O governo brasileiro reagiu à conduta das autoridades estadunidenses e não autorizou que o voo prosseguisse, lembrando que “o uso indiscriminado de algemas viola os termos do acordo com os Estados Unidos, que prevê o tratamento digno, respeitoso e humano dos repatriados”.  O restante da viagem foi feita em aeronave da Força Aérea Brasileira (FAB).

Na mesma sexta-feira, o problema envolvendo imigrantes transformou-se em crise diplomática entre Trump e o presidente colombiano, Gustavo Petro. Sem qualquer consulta ao governo de Petro, os Estados Unidos enviaram à Colômbia dois aviões militares com cidadãos colombianos que viviam ilegalmente nos Estados Unidos e haviam sido deportados. Petro proibiu as aeronaves de entrarem no espaço aéreo colombiano, lembrando que os direitos dos deportados não haviam sido respeitados. As aeronaves tiveram de voltar ao território dos Estados Unidos.

A reação de Petro enfureceu Trump, que anunciou uma série de sanções contra a Colômbia, a exemplo de tarifa de 25% sobre todos os produtos colombianos que entrem nos Estados Unidos, sanções ao Tesouro, ao setor bancário e ao setor financeiro daquele país, além de bloqueio de viagens de colombianos e de autoridades do governo Petro aos Estados Unidos.

Petro, por sua vez, comprou a briga e anunciou que aplicaria as mesmas tarifas a produtos estadunidenses e que a Colômbia enviaria avião presidencial para buscar os deportados. Em comunicado logo depois, a Casa Branca anunciou que iria suspender as tarifas extras e demais sanções anunciadas por Trump e Petro concordou em aceitar o voo com os deportados, com as garantias de proteção dos direitos dos cidadãos colombianos.

A crise, no entanto, está longe do fim, seja em relação aos deportados colombianos, seja em relação aos dos demais países da América Latina. Razão pela qual a reunião da Celac se reveste da maior importância, pois só uma posição comum à maioria desses países conseguirá deter a violência com que Trump vem tratando a questão.

Historicamente, os Estados Unidos são um país de imigrantes. Entre os anos de 1870 a 1910, o país recebeu cerca de 20 milhões de pessoas. O desenvolvimento de sua economia, em especial após a Segunda Guerra Mundial, tornou-se fator de atração de migrantes em todo o mundo, desenvolvimento para o qual os imigrantes foram essenciais.  Em 1986 houve inclusive anistia a milhares de pessoas que viviam ilegalmente lá.

Sempre existiu por parte dos governos estadunidenses interesse na presença de imigrantes latino-americanos, africanos e asiáticos, por se constituírem em mão de obra barata, disposta a exercer funções que os locais não mais aceitavam. A concessão de green card funcionou como um atrativo extra, pois transforma o imigrante ilegal em residentes permanentes legais.

Dos 11 milhões de imigrantes que vivem ilegalmente nos Estados Unidos, a maioria, cerca de 7,3 milhões, vem da América Latina. Quatro milhões são do México. Muitos estão lá há décadas. Os brasileiros ilegais chegam a 230 mil. Guatemala e Honduras são outros países com elevado número de imigrantes ilegais vivendo lá.

A mídia corporativa brasileira, ao invés de explicar as razões históricas desta imigração, prefere cerrar fileiras com a Casa Branca na mentirosa tentativa de justificar as deportações por se tratarem de pessoas que tinham condenações criminais em seus países. Em relação a uma ínfima minoria é verdade. Mas está longe de retratar a realidade destes imigrantes ilegais.

Como disse a bispa Mariann Edgar Budde, em sermão especial de 15 minutos, durante a posse de Trump, os imigrantes são “as pessoas que colhem nossas safras e limpam nossos prédios de escritórios; que trabalham em granjas avícolas e frigoríficos; que lavam a louça depois que comemos em restaurantes e trabalham nos turnos noturnos nos hospitais”, acrescentando que “elas podem não ter a documentação adequada, mas não é criminosa”.  Para ela, “essas pessoas pagam impostos e são bons vizinhos”, concluindo com um apelo em defesa dos imigrantes.

Arrogante como sempre, Trump referiu-se à fala da bispa dizendo que não achou que foi um bom culto. Isso porque as palavras dela desmontam a mentira que a extrema-direita estadunidense tem dito, ao responsabilizar o imigrante ilegal pela falta de empregos e pela crise enfrentada pelo país.

Trump, no seu primeiro governo, deixou os Estados Unidos em situação de crise profunda, agravada pela pandemia do covid-19, que ele, a exemplo de Bolsonaro, geriu de forma negacionista e criminosa. Antes disso, no entanto, a economia estadunidense já vinha dando sinais de graves problemas, como a crise financeira de 2008, quando  Obama optou por salvar bancos e grandes empresas, provocando o agravamento dos problemas sociais.

Trump já havia prometido “fazer os Estados Unidos grandes de novo”. E não cumpriu. De volta ao poder e se valendo do mesmo slogan, está tentando transformar os imigrantes ilegais nos responsáveis por seu país estar declinando. Daí a rapidez com que passou a perseguir os imigrantes ilegais, uma vez que seu objetivo é desviar a população do que realmente está causando a derrocada dos Estados Unidos: a postura imperialista e o fomento a guerras em todo o mundo.

O que Trump está tentando fazer não tem nada de novo. Hitler já adotou essa postura ao transformar os judeus em responsáveis pela crise econômica que a Alemanha enfrentava no início dos anos 1930. Hitler usou a surrada tática do “inimigo que está entre nós”. A mesma que Trump está vendendo aos estadunidenses.

O declínio dos Estados Unidos e a emergência da China como potencial mundial são irreversíveis, mas Trump quer convencer a população de seu país que a responsabilidade é dos imigrantes. Num primeiro momento pode até conseguir, como atestam as pesquisas indicando que sua popularidade é alta e que o estadunidense médio concorda com ele.

Em breve, no entanto, o impacto destas perseguições e deportações começará a apresentar efeitos não esperados. Os primeiros devem se dar com a falta de mão de obra na área agrícola, hotéis, restaurantes e em grande parte do setor de serviços no país e não apenas em estados do Sul. Cidades como Nova Iorque não funcionam sem o trabalho dos imigrantes.

A falta de pessoas para atuar nestas áreas terá reflexos na inflação, que deve aumentar muito, e na ausência de serviços de entregas, setor onde os imigrantes ilegais predominam. A população estadunidense não sabe mais viver sem entregas domiciliares de todo tipo.

Quando Trump disse que não se preocupava com a América Latina, porque ela é que dependia dos Estados Unidos, estava, como sempre, mentindo. Os Estados Unidos só se tornaram um país grande  e poderoso devido à rapinagem que promoveu primeiro sobre o território do México, do qual roubou quase 50%, e depois rapinando todos os demais países ao sul do rio Grande.

Gustavo Petro, na carta aberta que dirigiu a Trump, em resposta às recentes deportações, faz menção a isso. Ele lembra, por exemplo, que os Estados Unidos, promoveram a guerra contra a Colômbia, que deu independência ao Panamá em 1904, de olho na construção do canal ligando os oceanos Atlântico e Pacífico. Na época, a ligação era essencial para a expansão do comércio do Tio Sam. O mesmo canal que agora Trump quer tomar dos panamenhos, de olho em impedir as exportações da região, inclusive do Brasil, para a Ásia.

A doutrina do “Destino Manifesto”, que embasa os discursos e a ação de Trump, tem origem no século XIX, e significa que o povo branco estadunidense e suas “excepcionais” instituições tinham, com a benção de Deus, a missão de se expandir e controlar todos os demais. Foi essa doutrina que legitimou a expansão dos Estados Unidos primeiro pela América Central e, sempre que possível, também para a América do Sul, tentando controlar os diversos governos da região.

Direta ou indiretamente, todos os golpes de estado e governos autoritários na América Latina tiveram o apoio dos Estados Unidos. No passado, os governos eram militares, que assumiam abertamente a face ditatorial. Agora são fantoches como o atual presidente da Argentina, Javier Milei, que, de tão capacho, deve incomodar ao próprio Trump.

Se a mídia corporativa brasileira tivesse um mínimo de compromisso com o país e com esta região do globo onde se situa, era para aproveitar o momento e contar esta história para o seu público. Mas não. É mais conveniente para ela continuar dando razão a Trump e acenar, mentirosamente, para os altos índices de criminalidade entre os imigrantes ilegais. Ou seja: para ela o Tio Sam está sempre com a razão.

Nos próximos dias, o secretário de Estado dos Estados Unidos, Marco Rubio, filho de imigrantes latinos, mas um feroz inimigo de Cuba e dos governos progressistas da região, deve fazer sua primeira viagem, indo a cinco países da América Central: Guatemala, Honduras, Costa Rica, Panamá e República Dominicana.  O motivo da viagem ainda não foi divulgado, mas é obvio que se tratará de pressão dos Estados unidos sobre os governos desses países. Vale lembrar que Guatemala e Honduras posuem governos progressistas e comprometidos com o desenvolvimento de suas populações.

É por isso que a reunião da Celac se reveste de tanta importância. Quem sabe dela possa sair uma proposta de, em conjunto, a maioria dos seus membros atuar para começar a inverter o curso dos acontecimentos.

Ao retomar a construção do muro que separa os Estados Unidos do México, na prática Trump está se separando de toda a América Latina. Só que nesta região do mundo vivem mais de 650 milhões de pessoas que podem deixar de consumir os produtos estadunidenses e substituí-los num piscar de dedos por produtos de outras partes.  Que tal trocar o iPhone por um aparelho Samsung ou Huawei? O mesmo pode ser dito em termos de roupas, eletrodomésticos ou carros. Aliás, os veículos asiáticos ou europeus dão de dez a zero nos antiquados modelos de carros estadunidenses.

Também em termos de lazer e diversão, o mundo é enorme. Só vira-latas e antiquados ainda sonham com Disney, Flórida ou Nova Iorque. Há destinos maravilhosos e para todos os gostos na América Latina, a começar por Cancún, no México, Machu Pitchu, no Peru, ou praias fantásticas no Nordeste brasileiros e na Colômbia.

Passou da hora de a América Latina pensar nos seus interesses e deixar Trump falando sozinho.