Ângela Carrato – Jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

Quem observou as manchetes da mídia corporativa brasileira na última semana, especialmente na quinta-feira, só poderia ter uma certeza: o governo acabou.

Jornais, emissoras de rádio e de TV eram unânimes no catastrofismo.

Todos afirmavam que a Câmara dos Deputados havia infringido uma “derrota ao governo Lula”, que o governo estava “extremamente enfraquecido” e que o vitorioso era o Centrão, de Arthur Lira.

Como se isso não bastasse, essa mesma mídia não perdia oportunidade para tentar intrigar o presidente Lula e seus articuladores políticos com as ministras do Meio Ambiente, Marina Silva, e dos Povos Indígenas, Sônia Guajarara.

Na maior cara de pau, jornais que se dizem sérios, como O Globo e Folha de S. Paulo, estampavam manchetes mentirosas como “governo avaliza acordo para esvaziar poder de Marina” e “Congresso impõe derrota a Marina com aval de Lula”, referindo-se a propostas de mudanças apresentadas por comissão mista que analisa a medida.

Desinformada por quem tem obrigação de informá-la, grande parte da população brasileira assistia perplexa ao macabro espetáculo.

O assunto só virou motivo de piada quando o presidente Lula, durante solenidade do Dia da Indústria, na mesma quinta-feira, recolocou a verdade no seu devido lugar.

Com o bom humor de sempre, lembrou que, ao ler os jornais pela manhã, também pensou que era o fim do mundo.

Irônico, Lula disse que afirmações deste tipo só podem ter partido de quem não conhece a política e não gosta de política. Mais ainda: deixou claro que política é fundamental, que não há saída democrática fora da política e que é através da negociação que as soluções são encontradas.

Dito de outra forma, Lula vai negociar e muito para que os projetos do governo em tramitação no Congresso Nacional sejam aprovados, sempre buscando o melhor para a população brasileira.

É o caso da Medida Provisória (MP)1154/23, que reestrutura a organização administrativa do Executivo e fixa o número de ministérios em 37.

Essa MP precisa ser votada até a próxima quinta-feira (1/6), sob pena de perder validade e o governo passar a operar com a estrutura da gestão anterior, onde muitas pastas foram extintas, esvaziadas ou simplesmente não existiam como a dos Povos Indígenas. É desnecessário dizer que Bolsonaro não gostava nem de ouvir falar em direitos humanos e, se dependesse dele, deixaria todos os indígenas brasileiros morrerem, como estava fazendo com os Yanomani.

A mídia, no entanto, fez questão de esquecer estes aspectos e se fixar no que lhe parecia mais conveniente: sem uma estrutura adequada às suas propostas, o governo Lula estaria liquidado menos de cinco meses depois de empossado.

A vontade de sabotar o governo Lula por parte da mídia corporativa era tamanha, que ela acabou deixando de lado um aspecto fundamental: a Constituição de 1988 permite ao Executivo fazer mudanças em sua estrutura, desde que não crie ou extinga órgãos e nem aumente despesas.
É o caso.

Foi preciso o ministro da Justiça, Flávio Dino, publicar essa informação em suas redes sociais, para o “macabro espetáculo” chegar ao fim.

Lula também chamou para uma conversa no Palácio do Planalto as ministras Marina e Sônia. Para elas também mostrou que há enorme espaço de negociação com o Congresso, pois se os parlamentares que estão à frente de mudanças na área ambiental ou envolvendo a pauta indígena podem impor derrotas ao governo, eles também podem ser derrotados. Basta lembrar que sem uma política ambiental adequada, o agronegócio e as exportações brasileiras podem perder muito. O mesmo pode ser dito em relação às questões indígenas, pois o mundo está acompanhando atentamente o que acontece aqui.

Rabo entre as pernas, a mídia corporativa mudou de assunto e tentou correr atrás do prejuízo, como fez O Globo, cuja manchete na sexta-feira já tratava das medidas do governo para reduzir o preço dos automóveis. Medida aplaudida pelo setor e pelos consumidores. Junto com a construção civil, a indústria automobilística é das que possui cadeia produtiva com maior impacto na economia e os efeitos devem ser quase imediatos.

Já a Folha de S. Paulo ainda tentou insistir na derrota de Lula, mas foi obrigada a admitir que ele tem “como reverter” a situação. E nada mais patético do que incluir na manchete que Lula admite “fraqueza no Congresso”.

Alô, alô, Folha de S. Paulo. Essa manchete é ridícula. Primeiro, porque Lula não admitiu nada. Segundo, porque colocar isso como manchete é fazer pouco da inteligência dos leitores que ainda possui.

Será que tem alguém que desconhece que Lula não conta com maioria no Congresso?

Qual a novidade nisso?

Novidade foi o governo, mesmo sendo minoritário, ter conseguido aprovar o arcabouço fiscal na Câmara dos Deputados, na última quarta-feira, por 372 votos a favor e 108 contra. A matéria seguirá agora para o Senado, onde deve ser aprovada sem problemas. O novo arcabouço fiscal substitui o famigerado Teto de Gastos, uma das mais terríveis amarras neoliberais que o governo golpista Temer impôs ao país.

Por que o assunto não virou manchete? Por que a mídia fez de tudo para transformar essa vitória da maior importância em algo menor?

Vale perguntar, igualmente, porque a descoberta de uma enorme reserva de petróleo na margem equatorial, que fica a 175 km da costa do Amapá e a mais de 500 km de distância da foz do rio Amazonas, não foi manchete na mídia corporativa? Esse novo pré-sal, que seria motivo de comemoração em qualquer país, aqui foi noticiado apenas pelo lado negativo: problemas que pode causar ao meio ambiente e embate entre o IBAMA e a Petrobras. Em momento algum se falou no que isso pode significar em termos de recursos essenciais para o desenvolvimento do Brasil.

Mesmo sendo muitas as perguntas, as respostas convergem para um só ponto. A mídia corporativa brasileira é parte do esquema golpista que derrubou Dilma Rousseff, em 2016, apoiou todos os crimes da Operação Lava Jato, condenou e prendeu, sem provas, Lula por 580 dias, e esteve na linha de frente da vitória de Bolsonaro em 2018.

O fato de Bolsonaro ter se tornado disfuncional para essa mídia não significa que tenha deixado de apoiar o seu programa econômico. Tanto que, mesmo não conseguindo impedir a vitória de Lula em 2022, tenta agora, a todo custo, impor a Lula o programa neoliberal derrotado.

Lula quer transformar o Brasil numa grande democracia de massas, onde todos tenham acesso à educação, à saúde, ao trabalho e aos bens e confortos daí decorrentes. Só que os neoliberais vêm a democracia de massas como a grande inimiga. Para eles, um mercado de consumo de 50 milhões de pessoas já estaria de ótimo tamanho. Só que o Brasil tem 210 milhões de habitantes e, se depender dos neoliberais, essas pessoas simplesmente não contam.

Daí o ódio que nutrem contra Lula, como no passado nutriram também contra Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, João Goulart e Dilma Rousseff, todos presidentes que apostaram e lutaram pelo desenvolvimento do país.

Óbvio que os neoliberais não admitem isso abertamente. Para eles é mais conveniente se valer de uma série de estratégias para tentar emparedar governos progressistas. Estratégias que, aqui, desde sempre contam com o apoio de parte do mercado, dos militares, do parlamento e da mídia.

Depois do fracasso/fiasco da tentativa golpista de 8 de janeiro, os militares ficaram muito desmoralizados. E vão ficar ainda mais com o andar da CPMI, instalada no Congresso Nacional na última quinta-feira, que vai investigar o que aconteceu, em paralelo com o que já fazem a Polícia Federal e o STF. Um dos convocados deve ser o próprio Bolsonaro.

No parlamento, as forças de direita e de extrema-direita são maioria. Mas isso está longe de significar que Luta será sempre derrotado. Ao contrário. Ganhar ou perder faz parte do jogo democrático, mas a população sabe distinguir responsabilidades. Se o que o Congresso aprovar for contra os interesses da maioria, quem ficará mal não é o governo, mas o próprio Congresso.

Daí a grande sabedoria de Lula ao lembrar que fora da política não há alternativa. Isso vale, sobretudo, para os próprios políticos. Pode-se criticar o chefe do Centrão, Arthur Lira, por muitas coisas, menos por desconhecer os próprios limites.

Acerta, por outro lado, quem tem chamado tentativas golpistas, inclusive essa da última semana, de “terceiro turno” contra Lula.

Quem quiser se aprofundar sobre o assunto, recomendo um livro que tem como título “A Escolha da Guerra Civil”. O subtítulo é mais esclarecedor: “Uma outra história do neoliberalismo”, cujos autores são Pierre Sauvêtre, Christian Laval, Haud Guéguen e Pierre Dardot.

Dos quatro, Laval e Dardot são os mais conhecidos do público brasileiro pela análise que fazem não só da história do neoliberalismo, como de sua atuação no passado e nos dias atuais. Em “A Escolha da Guerra Civil”, o Brasil de Bolsonaro é citado várias vezes, com o país se tornando uma espécie de laboratório para um mundo desigual, comandado por poucos e pelo interesse de poucos.

Os autores deixam nítido que para os neoliberais (direita e extrema-direita) interessa manter o estado permanente de guerra civil. Guerra na qual a maioria da população é vista como adversária. Para os neoliberais que querem ser donos do mundo, os inimigos são os sindicalistas, que lutam por melhores salários para sua categoria, as mulheres, negros, indígenas, LGBTQIA+, que querem um mundo justo e livre de preconceitos, e os governos progressistas, que defendem inclusão social e mais democracia.

Daí Bolsonaro ser tão funcional para os neoliberais.

Daí Lula ser visto como inimigo.

As batalhas estão apenas começando. Lula sabe dos desafios que tem pela frente. Mas a julgar por esses primeiros meses, as guerras contra ele, inclusive as da mídia, não devem ter muito sucesso.

P.S. Na próxima quarta-feira (31/5), o presidente Lula recebe, em Brasília, 10 dos 12 presidentes da América do Sul para uma conversa sobre integração regional. Não devem comparecer os presidentes do Peru e do Equador. O encontro será da maior importância, especialmente no momento em que a guerra na Ucrânia pode se transformar em terceira guerra mundial.

Historicamente, a América do Sul se coloca como uma região desmilitarizada e de paz e deve continuar assim. Claro que as pressões dos Estados Unidos para que os países adiram à guerra ao seu lado (leia-se “Ocidente”) é enorme, mas os diversos governos parecem ter clareza de que trilhar o caminho da neutralidade é o mais adequado e conveniente.

A reunião deverá servir ainda para a retomada da Unasul, entidade fundamental para a discussão de temas da região sem a interferência externa.

Como a mídia corporativa brasileira é capacho dos interesses dos Estados Unidos, ninguém deve se assustar com as manchetes sobre esta reunião. Com enorme probabilidade, elas serão ditadas direto de Washington.