Angela Carrato – jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

Não é fácil e muito menos simples para um país da importância e peso geopolítico do Brasil manter posição firme na defesa da paz e do cessar fogo imediato, quando para as potências imperialistas ocidentais o que interessa é a guerra.

No momento, dois gravíssimos conflitos acontecem no mundo, na Ucrânia e na Faixa de Gaza, com risco de escalarem e levarem o planeta à terceira conflagração mundial.

Esses conflitos envolvem muito mais do que aparentemente se vê. O que explica o fato de o governo Lula ser vítima de uma série de provocações e armações que, na semana passada, chegaram perto do ponto de ebulição.

Da mesma forma que a invasão da Ucrânia pela Rússia, no início de 2022, não foi um raio em pleno céu azul, o ataque do Hamas a Israel, há pouco mais de um mês, não surgiu do nada. Ataque que Israel aproveitou para intensificar o genocídio e a limpeza étnica que historicamente promove em Gaza.

A invasão da Ucrânia pela Rússia foi motivada pelo avanço da OTAN (leia-se Estados Unidos) no Leste Europeu, colocando em xeque a própria soberania russa. Já o pano de fundo para o ataque do Hamas foram os 75 anos de guerras, perseguições e todo tipo de violência de Israel contra o povo palestino. Violência que levou à absurda situação de os palestinos não terem sequer o próprio estado e grande parte viver confinada por Israel em prisão a céu aberto.

Nos dois casos, o interesse dos Estados Unidos e de seus aliados é o mesmo: manter o domínio, num momento em que o chamado Sul Global e suas representações – em especial o BRICS e o G-77 – apontam para a emergência do mundo multipolar.

Os Estados Unidos, independente de o ocupante da Casa Branca ser democrata ou republicano, sempre quis um Brasil submisso e ponta de lança para seus interesses na América Latina. Por não compactuar com isso, o presidente João Goulart foi deposto nos idos de 1964 e Dilma Rousseff se viu alvo de golpe parlamentar, jurídico, midiático patrocinado pelo Tio Sam em 2016.

É por motivo semelhante que o terceiro governo Lula está sendo atacado de forma tão dura, num momento em que detém posição de peso no mundo multipolar que se desenha.

Se até o início da semana esses ataques eram perceptíveis apenas para especialistas e aqueles que acompanham detalhadamente a cena nacional e internacional, agora já são visíveis para todos que estiverem dispostos a enxergar além do que esconde ou passa pano a mídia corporativa brasileira, verdadeiro capacho dos Estados Unidos e de Israel.

Dois episódios tiveram lugar no mesmo dia, a última quarta-feira. Aparentemente do nada, foi vazado para a TV Globo a informação de que a Polícia Federal havia feito operação sigilosa, em parceria com o truculento serviço secreto israelense, Mossad. A operação resultou na prisão de dois brasileiros que supostamente teriam contato com o grupo libanês Herzbollah, tido como terrorista apenas pelos Estados Unidos e Israel. Os presos seriam acusados de planejar atos terroristas contra alvos judeus no Brasil.

Como nos tempos da Operação Lava Jato, o Jornal Nacional noticiou a versão de setores da Polícia Federal como sendo a expressão da verdade. Não se ouviu outra fonte, até porque o que interessava era tentar antagonizar o governo brasileiro com o Irã, principal apoiador do Herzbollah. O mesmo Irã que agora integra o BRICS ampliado e tem nos Estados Unidos e em Israel inimigos em tempo integral.

Detalhe: o enredo de tentar associar um governo progressista na América Latina ao Hezbollah não é sequer novo. Quando presidente, Cristina Kirchner enfrentou semelhante acusação, a partir de um atentado terrorista que destruiu a sede de uma entidade judaica em Buenos Aires, em 1994. Mais de dez anos depois, ainda tentava-se jogar esse atentado no colo dela, no que fixou conhecido como Caso Nisman.

Não vou me aprofundar no assunto, até porque tem série na Netflix sobre o assunto, com esse mesmo nome. Vale assistir, da mesma forma que se deve assistir, com todo o arsenal crítico ligado, ao infame filme O Mecanismo. Desnecessário dizer que a Netflix é a nova Hollywood, onde o dinheiro dos sionistas faz a festa.

Também na quarta-feira aconteceu outro fato estranho, desta vez na Câmara dos Deputados, envolvendo o embaixador de Israel no Brasil, Daniel Zonshine, parlamentares de extrema direita e o ex-presidente golpista Jair Bolsonaro, inelegível e acusado de uma série de crimes que devem levá-lo à cadeia nos próximos meses.

O objetivo do estapafúrdio encontro foi assistir a um vídeo preparado por Israel para mostrar cenas do ataque do Hamas em 7 de outubro.

Esse encontro deve ser visto como mais uma provocação da extrema-direita nacional e do governo de extrema-direita de Israel contra governos petistas, que não se dobram aos interesses dos Estados Unidos e daquele que Biden define como tendo seu “apoio incondicional” no Oriente Médio.

Nenhum governo sério autorizaria seu embaixador a reunir-se com parlamentares notoriamente golpistas e com um ex-presidente sabidamente o mentor da tentativa de golpe em 8 de janeiro. Mais ainda: durante o evento foram proferidas palavras de ordem contra Lula e exaltada a figura de Bolsonaro. Não há dúvida de que o tal embaixador participou de um ato antidemocrático e contra as instituições brasileiras.

Ao contrário de dar como manchete o teor desta reunião, a mídia corporativa praticamente ignorou o assunto e enfatizou apenas às prisões efetuadas pela Polícia Federal. Para bom entendedor, a nova narrativa golpista já está em cena.

Igualmente digno de nota são informações que a mídia corporativa brasileira começa a divulgar dando conta que setores do Ministério Público Federal retomam suas ações nitidamente pautadas por Sérgio Moro e Bolsonaro, num momento em que a instituição tem um comando interino, enquanto aguarda a decisão de Lula de quem será o indicado para a Procuradoria-Geral da República.

Se o mote para a Operação Lava Jato era o combate à corrupção, que nunca foi o principal problema brasileiro, agora, o novo mote é o combate ao terrorismo, num país que historicamente prima pela posição pacífica e de diálogo em se tratando de política externa. É significativo observar que tanto a corrupção quanto o terrorismo se equivalem no quesito provocar ódio e insegurança nas pessoas.
O elo entre esses episódios da quarta-feira não demorou a aparecer.

Na manhã do dia seguinte, um lavador de carros que conheço há anos, veio me falar de sua preocupação com “algumas bobagens” que Lula vem falando. Como ele nunca escondeu ter sempre votado em Lula, quis sabe quais bobagens era essas. Ele não titubeou: “Lula tá falando bobagem sobre o Hamas e pode trazer terroristas para o Brasil”.

Com a curiosidade mais aguçada ainda, especialmente por ele mencionar o Hamas, perguntei quem tinha comentado aquilo com ele.

Acertou em cheio quem pensou no pastor do templo neopentecostal por ele frequentado.

De novo, os velhos atores estão à postos para tentar inflamar a sociedade brasileira contra Lula, com as manifestações de rua sendo substituídas pela rede de templos neopentecostais que servem aos interesses de Israel e pelas redes sociais de extrema-direita, igualmente controladas pelas big techs estadunidenses.

Como num quebra-cabeças, basta ligar os pontos. Estados Unidos e Israel querem arrastar Lula e o Brasil para as guerras que lhes são convenientes. Para tanto, vale tudo. Vale vazar uma operação da PF que pode ser pura armação, mesmo que o ministro da Justiça, Flávio Dino, para não passar recibo, tenha procurado dar aparência de sério ao que dificilmente se sustenta como tal.

Vale uma reunião golpista em plena Câmara dos Deputados e vale acionar a rede de tempos/empresas neopentecostais, para dar sustentação à farsa junto à opinião pública.

De todos os países latino-americanos, é no Brasil que aconteceu o maior enraizamento dos interesses desses ditos tempos religiosos. Na vizinha Argentina, que vem passando por iguais tentativas de golpes desde o governo do casal Kirchner, a influência destas igrejas não chega a 30% em toda a sociedade. Daí, por exemplo, o extremista de direita e candidato à presidência da República, Javier Milei, se valer em doses quase homeopáticas das chamadas pautas de costumes em sua atual campanha.

Bolsonaro e Milei são versões produzidas em laboratório com objetivo de implementar pautas que interessam aos Estados Unidos e a seus aliados na América Latina. Será mera coincidência Bolsonaro e Milei terem como únicos aliados os Estados Unidos e Israel, utilizarem as bandeiras desses países em seus comícios e anunciarem sua submissão a eles?

Se Bolsonaro bateu continência para a bandeira dos Estados Unidos e disse “eu te amo “ para Donald Trump, Milei já garantiu que, se eleito, romperá relações diplomáticas com o Brasil e com a China e terá como aliados os Estados Unidos e Israel.

Se as provocações de quarta-feira seriam suficientes para o governo Lula tomar providências cabíveis, Israel e, claro, os Estados Unidos, continuam pirraçando a nossa diplomacia. Pela sétima vez foi adiada a libertação dos 34 reféns brasileiros que se encontram na Faixa de Gaza e impedidos por Israel de deixarem o local a fim de serem repatriados.

A fajuta argumentação de que a fronteira com o Egito foi fechada outra vez após a passagem de ambulâncias, não consegue tapar a realidade.

As ambulâncias têm prioridade, não resta dúvida, mas quem manda na fronteira do Egito é Israel e é a mando de Netanyahu que ela está fechando tão rapidamente para os brasileiros, mesmo o governo Lula tendo sido o primeiro a anunciar que iria buscar seus nacionais em Gaza.

Outra vez, o objetivo de Israel e também dos Estados Unidos é desgastar o governo Lula junto à opinião pública e forçá-lo a rever sua posição a favor do cessar fogo imediato nesta guerra.

Estados Unidos e Israel querem sangue. Em momento algum seus dirigem mencionam a palavra paz.
O que Israel está fazendo contra os palestinos e em relação aos reféns brasileiros é criminoso, mas Netanyahu não parece se preocupar com isso e muito menos os Estados Unidos e entidades internacionais que foram tão prestativas para condenar Putin, por crimes de guerra, mas seguem passando pano o imperialista, colonialista e genocida Netanyahu.

Num quadro complexo como este, fica nítido que o governo Lula não deve e nem responderá com o fígado às provocações de Israel. A diplomacia brasileira, das mais competentes do mundo, tendo à frente o chanceler Mauro Vieira e o assessor especial Celso Amorim, está fazendo o que precisa ser feito.

A prioridade é repatriar os 34 reféns brasileiros. As aprontações de Israel já são bem conhecidas e anteriormente envolvem desde espionagens de dirigentes da Petrobras e do governo Dilma, a começar pela própria presidenta, a vendas no mínimo nebulosas de equipamentos de espionagem para a ABIN quando do governo Bolsonaro.

Se esse quadro já se mostra nebuloso, é preciso acrescentar que as agências de notícias ocidentais estão contribuindo e muito para a desinformação que reina tanto sobre a guerra na Ucrânia quanto sobre que se passa em Gaza. Desinformação que se explica por essas agências serem controladas pelo lobby sionista que, diferentemente de outros conflitos, agora tem matado jornalistas para impedir que versões que não lhes interessam venham à tona.

Só nessa guerra de extermínio de Israel contra os palestinos em Gaza já foram mortos 35 jornalistas.
Essa verdadeira nakba 2.0 que Israel está impondo aos palestinos tem surtido, no entanto, efeito contrário junto à opinião pública mundial.

O que se passa em Gaza já entrou para a história como o holocausto que Israel impôs aos palestinos.

Quanto à tentativa de novo golpe no Brasil patrocinado por Israel e pelos Estados Unidos, o governo Lula tem razão em priorizar o resgate dos 34 brasileiros e de air com muito cuidado. Mas cometerá equivoco que pode lhe custar caro, se, uma vez tendo efetivado tal resgate, não impuser duras sanções a Israel e rever, no detalhe, seus acordos de cooperação com o Tio Sam.

Acreditar que brumas tão cerradas se desfarão sozinhas nunca fez bem à verdade e menos ainda foi positiva para quem está do lado certo da história.