Marco Aurelio Carone
Os usuários do transporte de Passageiros de Belo Horizonte e da RMBH, ao pagarem suas passagens, e a Prefeitura de Belo Horizonte ao pagar os subsídios, mantém gigantesco sistema paralelo, comandados pelos maiores empresários do setor, que ganham milhões na exploração, administração e comercialização do Transfácil e Ótimo.
Para estes a prestação do serviço de transporte de passageiros tornou-se secundário.
Linha do Tempo
1985
Não se tem controle sobre a venda do Vale Transporte.
A lei federal nº 7.418 de 1985, que criou o Vale Transporte, determinou que o trabalhador gastaria, no máximo, 6% de seu rendimento salarial, com os custos de deslocamento entre a casa e o trabalho, cabendo ao empregador financiar a parcela de custo restante.
Sobre o impacto dessa medida, a Fundação João Pinheiro comenta:
“que se o vale-transporte veio reforçar um quadro de redistribuição dos custos operacionais entre trabalhador, empregador e governo, sua operacionalização pelas empresas privadas chegou a significar uma nova fonte de renda. Numa economia inflacionária, a venda dos vales-transportes representava uma receita antecipada que gerava aplicações no mercado financeiro”.
A lei não garantiu o controle da receita ao poder público, pois em seu artigo 5º estabeleceu que a empresa operadora é quem emitia e comercializava o benefício.
1987
Newton transfere a CCT Câmara de Compensação Tarifaria para os concessionários.
Newton Cardoso, em seu primeiro ano de governo, cumprindo promessa de campanha, extinguiu a METROBEL, criando a Transmetro (Transportes Metropolitanos).
A Transmetro, imediatamente transferiu o controle e a operação da Câmara de Compensação Tarifaria- CCT para o Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Belo Horizonte (Setransp).
“que passou a receber antecipadamente e operar milionárias somas, acabando com a transparência do sistema, viabilizando recursos capazes de corromper”.
A Transmetro, na gestão de Newton Cardoso, ficou marcada por desvios de verbas, entre elas o cancelamento da implantação dos trólebus em Belo Horizonte, citada na matéria anterior.
O mesmo ocorreu em relação ao seu sucessor Hélio Garcia, em seu segundo mandato.
1988
Em 1988 a Constituição Federal em seu art. 30, V, estabeleceu a competência do Município para organizar e prestar, diretamente ou mediante concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, entre eles o transporte coletivo.
Mesmo assim, a operação dos serviços de transporte municipal de Belo Horizonte e do sistema viário da região metropolitana permaneceu, até 1994, nas mãos da Transmetro.
1991
Eduardo Azeredo cria a BHTrans.
Em julho de 1991, através da Lei nº 5953, do então prefeito Eduardo Azeredo, foi criada a BHTrans e posteriormente através do decreto 6985/91 aprovado o seu estatuto.
1992
Patrus Ananias municipaliza o transporte de passageiros em Belo Horizonte.
Em 1993, através do decreto nº 7637/93, do então prefeito Patrus Ananias, cancelou a delegação outorgada a Tranmetro, municipalizando o transporte de passageiros, que passou a ser de competência da BHTrans, assim como a Câmara de Compensação Tarifaria – CCT.
A administração da Câmara de Compensação Tarifaria – CCT, pela BHTrans acabou gerando enorme déficit pois o transporte de passageiros de Belo Horizonte subsidiava o da RMBH.
1997
Celio de Castro autoriza a subconcessão do serviço de transporte de passageiros em Belo Horizonte
Em 1997, através do decreto nº 0.161/97, o então prefeito Celio de Castro autorizou a Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte BHTRANS a subconceder o serviço de transporte coletivo no Município de Belo Horizonte.
“O transporte em Belo Horizonte era prestado por autorizações precárias herdadas da Metrobel/ Transmetro”.
Em 21 de agosto de 1997, a BHTRANS publicou edital de licitação para contratar, mediante outorga de subconcessão, a execução do serviço público de transporte coletivo por ônibus, sob seu gerenciamento e fiscalização, por um período de 10 anos.
A tentativa da Prefeitura de Belo Horizonte em licitar o transporte coletivo provocou uma guerra jurídica e política com a Câmara de Vereadores, as prefeituras da região metropolitana e as empresas de ônibus.
A licitação para as novas concessões aberta pela BHTrans, era uma exigência da Lei nº 8.987/95.
A força das empresas de transporte de passageiros
“A força do lobby empresarial na Câmara é muito grande“, disse o então vereador petista Rogério Corrêa”. Entrevista a Folha de São Paulo em dezembro de 2007.
A Câmara chegou a derrubar o veto do prefeito Célio de Castro (PSB) à emenda que extinguia a BHTrans e promulgou a lei. Mesmo tendo o apoio de 21 vereadores dos partidos aliados, o prefeito teve seu veto derrubado por 24 votos a seis.
A polêmica começara em novembro de 1996, quando a Câmara, também derrubando veto do então prefeito Patrus Ananias (PT), aprovou uma lei adiando as concessões por mais dez anos, prorrogáveis por outros dez.
A prefeitura obteve liminar contra a lei, considerada inconstitucional. Os empresários recorreram, ganharam e, então, foi a vez de o Ministério Público contestar.
“A BHTrans conseguiu cassar todas as liminares existentes”.
Depois de enfrentar a batalha jurídica e política, a BHTrans homologou a licitação dando início ao projeto BHbus, implantando mudanças efetivas no sistema de ônibus na cidade.
Saíram vencedoras 46 empresas, sendo que 96% já operavam no mercado de transporte público na capital mineira; foram licitados 83 lotes de composição variada em termos de número e tipos de veículos, compreendendo um total de 2.762 ônibus.
Dentre as mudanças:
“as empresas teriam de renovar a frota, adquirindo ônibus maiores, com motor traseiro e dispositivos que impeçam a arrancada com as portas abertas. Também vão ter de usar o diesel metropolitano, que é menos poluente”.
“A licitação era para concessões por um período de dez anos e acabou com o sistema de empresas donas de linhas. A licitação foi por frota de ônibus, o que transforma as empresas em prestadoras de serviços do município”.
“A BHTrans acabou com o monopólio das empresas, colocando empresas diferentes para explorar um mesmo trecho. Permitindo a implantação do BHBus, que reduziu em 40% o número de ônibus circulando na região central”.
O BHBus, como hoje em funcionamento, baseia-se na utilização de estações em vários pontos estratégicos da cidade onde os passageiros trocam de ônibus para chegar ao centro. Os ônibus que irão até o centro serão maiores e trafegarão em pistas exclusivas.
Na época estava previsto a construção de 14 estações.
Em 1997 foi inaugurada a Estação Diamante, a Estação Venda Nova em 2000, a Estação São Gabriel em 2002, a Estação Barreiro e a Estação Vilarinho, também em 2002.
A Estação Pampulha foi inaugurada apenas em 2014, com suas linhas troncais totalmente integradas ao sistema MOVE.
2001
Através da Lei nº 8.224 de 2001, foi autorizado a implantação do sistema de bilhetagem eletrônica no serviço de transporte coletivo de passageiros em Belo Horizonte, e através da portaria BHTrans 066/2002, sem qualquer licitação foi entregue a uma Sociedade Anônima. Isto mesmo, a empresa SBE Líder S.A, a exploração do denominado Transfácil.
Segundo a Receita Federal, são sócios da SBE Líder S.A os maiores empresários do transporte de Passageiros de Belo Horizonte:
Iraci de Assis Cunha
Joel Jorge Guedes Paschoalin
Reinaldo de Carvalho Moura
2008
Em 2008 através de um aditivo ao contrato de conceção o Consórcio Operacional, foi autorizado pelo Poder Concedente a exercer o papel de Agente de Liquidação.
No transporte da Região Metropolitana de Belo Horizonte, RMBH opera o Consorcio Ótimo de Bilhetagem Eletrônica, dirigido por Rubens Lessa.
Empresário “muito conhecido nos meios políticos”. Seu grupo de empresas denominado Grupo Turilessa, composto de 44 empresa, tem uma dívida confessada de R$ 766 milhões, (sem correções) perante a Receita Federal.
Nova licitação
O decreto 9.491/2008, do então prefeito Fernando Pimentel, determinou que a BHTrans promovesse nova licitação para concessão do serviço público de transporte de passageiros de Belo Horizonte.
Saíram vencedoras no certame:
Consórcio Pampulha
Consórcio BH Leste
Consórcio Dez
Consórcio Dom Pedro II
Um novo modelo de gestão, considerado inovador e liberal, na remuneração, no reajuste tarifário e nos quesitos de qualidade foi definido nos novos contratos a vigorarem por um prazo de 20 anos.
Nesse novo modelo, foram definidos requisitos mínimos de qualidade e desempenho que deveriam ser considerados pelas concessionárias na prestação dos serviços.
“Para atender a tais requisitos, as empresas poderiam desenvolver e propor ajustes no planejamento e na programação operacional dos serviços, “antes atribuição única do órgão gestor”. Além disso, é prevista uma remuneração baseada na receita tarifária e no equilíbrio financeiro através de taxa interna de retorno (TIR). A tarifa é reajustada anualmente a partir de uma fórmula paramétrica, composta por cinco índices econômicos, e revisada a cada quatro anos”.
Modelo operacional
O novo modelo de contrato fixava:
“que as concessionárias dos serviços eram responsáveis pelo planejamento operacional, ou seja, responsáveis pela definição de quadros de horários, itinerários, pontos de embarque e desembarque e quantidade de veículos”.
Os quesitos de qualidade eram:
– Frequência mínima para cada linha, medida através do intervalo máximo entre viagens;
– Capacidade de transporte considerada, medida através da taxa de ocupação máxima para passageiros em pé/m²;
– Acessibilidade à rede de transporte, medida através do deslocamento a pé máximo até um ponto de embarque e desembarque.
E as especificações consistiam em:
– Idade máxima da frota em cada linha.
– Idade média da frota por concessionária.
– Vida útil dos veículos.
Competindo à BHTRANS apenas a regulação e a fiscalização dos serviços.
Modelo tarifário
A Câmara de Compensação Tarifaria (CCT) deixou de existir, a remuneração das operadoras passou a ser baseada na receita que cada concessionária auferia.
Como instrumento para o equilíbrio tarifário foi criado Fundo Garantidor do Equilíbrio Econômico Financeiro do Contrato (FGE).
O patrimônio do FGE seria formado pelo aporte do montante de 1% (um por cento) do valor da Receita Operacional Bruta, obtida pelas Concessionarias na exploração do serviço, bem como pelo resultado da aplicação desses valores no mercado financeiro.
No contrato é previsto que:
“os valores aportados no FGE e seus respectivos rendimentos somente serão sacados pelas Concessionarias com a extinção da Concessão, após a liquidação de todas suas obrigações, inclusive eventuais indenizações, perante o Poder concedente, observada a proporcionalidade de quotas remanescente”.
O novo critério de reajuste é aplicado individualmente a cada valor tarifário e a base de cálculo dos índices é novembro de 2007.
“A variação de receita decorrente do aumento ou da redução de passageiros pagantes deve ser compensada pelas próprias concessionárias através de medidas de redução de custos ou mesmo através de captação de receitas complementares”.
“O risco é compartilhado, diferentemente dos contratos anteriores, nos quais as empresas operadoras eram remuneradas pelos custos operacionais”.
A sistemática de reajuste tarifário prevê a aplicação de fórmula paramétrica composta por cinco itens, cada qual com pesos específicos:
Óleo Diesel 25%
Rodagem 5%
Veículos 20%
Mão de Obra 40%
Despesas Administrativas 10%
Foram criadas três pessoas jurídicas e uma empresa autônoma, nascendo, assim, o Consórcio Operacional do Transporte Coletivo de Passageiros por ônibus do Município de Belo Horizonte – TRANSFÁCIL, composto por todas as demais empresas concessionárias, administradas e de propriedade dos concessionários.
O Consorcio Operacional
O Agente Comercializador
O Agente de Liquidação
Previa-se um sistema administrativo e financeiro, onde a comercialização de cartões e créditos eletrônicos do sistema de bilhetagem eletrônica que seria feita pelos denominado:
Agente Comercializador, contratado pelo Consorcio Operacional, que repassa ao Agente de Liquidação as receitas oriundas da comercialização dos cartões inteligentes de passagens, dos cartões de vale transporte, dos cartões de benefícios e dos créditos eletrônicos, e paga os consórcios.
Todas este sistema é financiado pela tarifa paga pelo usuário do transporte de passageiros, e o mais grave, a remuneração do Agente de Liquidação:
“se dar por qualquer modalidade legalmente aceita, inclusive por meio da compensação de seu montante em eventuais ganhos financeiros gerados pelos recursos sob sua custódia”.
Estas pessoas jurídicas, foram distribuídas entre os concessionários, que passaram a ter outra receita além da prestação do serviço de transporte de passageiros.
O monstro sem controle
Em relação a renovação de frota, frequência mínima no intervalo máximo entre viagens, capacidade de transporte considerando a taxa de ocupação máxima de passageiros, é público o descumprimento destas normas contratuais pelas empresas.
Evidente que está situação não ocorreu em curto espaço, são anos de falta de fiscalização e punição pelo poder público. Os motivos desta inércia foram apuradas através de CPI instalada na Câmara Municipal de Belo Horizonte, que mostrou as entranhas da relação promiscua entre o poder concedente e os concessionários.
Porém o mais grave, o Novojornal teve acesso ao Relatório Técnico Final de Apuração do Resultado Econômico – Financeiro dos Contratos de Concessão da Rede de Transporte e Serviços por Ônibus de Belo Horizonte, feito em 2013, constatando que os concessionários jamais obedeceram às normas estabelecidas no contrato, em especial a relativa Fundo Garantidor do Equilíbrio Econômico Financeiro do Contrato (FGE).
Desde 2013 faziam retiradas do FGE. Daí a ausência de recursos para equilibrar o sistema de transporte de passageiros de Belo Horizonte, diante de uma eventualidade como foi a pandemia de COVID.
Quando se fez a licitação em 2008, certamente não se levou em conta o histórico do comportamento dos concessionários. Como acreditar que executariam algo que fosse benéfico aos usuários do serviço de transporte de passageiros e até mesmo seguissem as regras estabelecidas no contrato.
Como resultado destas equivocadas regras, toda sociedade de Belo Horizonte hoje paga um alto preço. Seja através do precário serviço de transporte de passageiros oferecido, ou do subsídio bilionário pago pela Prefeitura, com recursos oriundos dos impostos cobrados. Este fato será abordado em outra matéria.
O jornal O Tempo noticiou em 14 de janeiro de 2022:
“O acesso das companhias ao FGE é previsto em contrato, mas o prefeito Alexandre Kalil (PSD) afirmou, em coletiva, que só autorizaria a transferência do dinheiro com o aval do MPMG”.
Além do acesso ao dinheiro, a Promotoria acordou com a prefeitura a instauração de um “Procedimento Administrativo para apurar as circunstâncias atuais que justificam ou não o desbloqueio para acesso ao fundo”. O prazo para resposta é de 30 dias e pode ser prolongado, sob justificativa, para mais 30.
O Novojornal procurou o Ministério Público de Minas Gerais, em busca da posição atual do Procedimento Administrativo citado, obtendo como resposta:
“A apuração da demanda está em andamento.
Vamos retornar assim que tivermos as informações”.
Procurado o presidente da Câmara Municipal de Belo Horizonte não respondeu.
A Prefeitura de Belo Horizonte procurada respondeu:
“A Prefeitura de Belo Horizonte informa que em fevereiro de 2023 o Poder Concedente autorizou a retirada do valor no Fundo Garantidor. Os depósitos foram restabelecidos a partir de junho, com o aumento da passagem para R$ 6,00. O valor resgatado foi de R$ 6.658.095,89. A gestão do FGE é de responsabilidade das Concessionárias e o Poder Concedente fiscaliza a movimentação”.
O Setra – BH procurado, não respondeu.
Existe em tramitação uma Ação Civil Publica ajuizada pelo MPMG para anular a licitação de 2008, é uma manifestação do Ministério Público de Contas no TCMG para que os contratos celebrados em 2008 sejam suspensos.
Nota da redação:
– Está é a terceira de uma série de seis matérias que o Novojornal irá publicar sobre o sistema de transporte de passageiros de Belo Horizonte e da RMBH.
Primeira: Belo Horizonte, cidade refém do grupo que comanda o transporte de passageiros há 70 anos
Segunda: O Golpe militar de 1964: financiou e empoderou os empresários de ônibus