Ângela Carrato – Jornalista. Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG. Membro do Conselho Deliberativo da ABI
O balanço de 2024 e perspectivas para o ano que se inicia tradicionalmente realizados pela mídia corporativa brasileira foram substituídos por mentiras, críticas desprovidas de quaisquer fundamentos e preconceitos de toda ordem contra Lula e seu governo, que completa dois anos.
Não que atitudes assim sejam inéditas. Mas a intensidade tem sido tamanha, que o “gabinete do ódio”, criado por Bolsonaro e filhos, parece ter mudado de endereço e atende agora nas redações destes veículos.
As mentiras publicadas e o ódio que jornais, emissoras de rádio, de TV e revistas destilam os transformam em principais difusores de fake news, superando plataformas e redes sociais.
O objetivo do “gabinete do ódio” bolsonarista era colocar em prática a chamada “guerra cultural”, conceito implementado pela extrema-direita para insuflar profundas divisões na sociedade. Com saudades daquele governo, a mídia corporativa brasileira assumiu para si a tarefa de levar adiante estas divisões, que visam manter intatos os privilégios da classe dominante, da qual é parte.
Tentar criar artificialmente uma crise econômica no Brasil talvez seja o aspecto mais visível da atuação desta mídia oligárquica e subimperialista, porém está longe de ser o único. Além de esconder os excelentes resultados econômicos do governo em 2024, ela inventou “rombos” em empresas estatais, atribuiu ao governo a responsabilidade pela alta do dólar e pela “fuga recorde” da moeda estrangeira, e fez de tudo para incutir na sociedade a ideia de que o país está à beira do caos, com inflação “descontrolada” e contas públicas “explodindo”.
Nada mais mentiroso!
Discretamente esta mídia também faz coro com a proposta de anistia defendida por Bolsonaro e demais golpistas do 8 de janeiro de 2023.
Já o balanço que a mídia estrangeira faz desses dois primeiros anos do governo Lula não poderia ser mais positivo. O conceituado jornal Página 12, um dos maiores da Argentina, por exemplo, dedicou na edição da sexta-feira (3/1), ampla reportagem ressaltando o sucesso de Lula no que se refere à queda dos índices de pobreza, ao crescimento de todos os índices econômicos, à redução do desmatamento na Amazônia, o aumento do salário mínimo, sem falar na ampliação de penas para feminicídio e a criação da Aliança Mundial contra a Fome.
Não seriam motivos de sobra para a mídia manchetar e a população comemorar?
Em dois anos de governo, Lula, mesmo enfrentando militares golpistas, Legislativo dominado pela extrema-direita, Banco Central alinhado aos interesses dos rentistas e o combate sem tréguas desta mídia, conseguiu tirar o país do atoleiro em que se encontrava.
O PIB do Brasil em 2024 deve superar o do ano passado e ficar acima dos 3,5%, o maior da América Latina.
A inflação deve fechar o ano em 4,8%.
O índice de desemprego é o menor da história, 6,3%, podendo ser considerado próximo do pleno emprego.
Investimentos estrangeiros não param de chegar.
Novas indústrias estão sendo instaladas.
As vendas no varejo bombaram neste final de ano.
As montadoras nunca venderam tantos carros novos.
Os aeroportos nunca estiveram tão movimentados e as agências de viagens comemoram os ótimos resultados.
Cadê a crise?
Como este quadro desmente qualquer problema na economia, a mídia corporativa brasileira passou a jogar com a subjetividade do público. Do nada, a Folha de S. Paulo, aquela que considera que a ditadura (1964-1985) foi “branda”, divulgou, na semana passada, pesquisa para lá de esquisita, com o objetivo de mostrar que o brasileiro está mais pessimista agora do que em 2020. De acordo com a tal pesquisa, apenas 47% dos entrevistados acham que a situação vai melhorar em 2025.
De onde o DataFolha tirou esse dado não se sabe, especialmente se comparados aos resultados do portal InfoMoney, o maior e mais completo sistema de comunicação especializado em mercados, investimentos e negócios do país. Segundo ele, 75% dos brasileiros estão otimistas em relação a 2025 e 80% avaliam que no ano que terminou a vida pessoal e familiar melhorou.
Comandado pelo banqueiro Luiz Frias, o Grupo Folha sem dúvida tem saudades da ditadura. Tanto que não mede esforços para tentar limpar a barra de Bolsonaro, criar problemas para o ministro do STF, Alexandre de Moraes, e, em alguns aspectos ser mais entreguista do que foram alguns militares. Se depender dele, o país deveria torrar todas as suas estatais e virar uma espécie de colônia dos Estados Unidos e demais países imperialistas.
Para quem acha que estou exagerando, leia o editorial “Privatizar Petrobras, Caixa e Banco do Brasil”, publicado em 14 de agosto de 2024. Na época, não faltaram vozes lembrando que essa seria uma “ótima estratégia para se destruir o país”.
Possivelmente é isso mesmo o que a Folha pretende.
O Grupo Globo, da família Marinho, fecha em gênero, número e grau com Frias. Atuam juntos em numa espécie de tabelinha que inclui o jornal Estado de S. Paulo, esse controlado diretamente pelo mercado financeiro (a Faria Lima) com o nome dos Mesquitas, seus fundadores, apenas figurando no expediente.
A tabelinha funciona assim: no início da semana, um desses jornais publica em destaque matéria criticando o governo, mesmo sem qualquer fato que a justifique. Nos dias seguintes o assunto ganha repercussão nos dois outros jornais e entre quinta e sexta-feira o assunto vira manchete no Jornal Nacional, da TV Globo. Como esses veículos possuem agências de notícias, que fornecem material para publicações menores, o assunto se espalha pelo país. No final de semana, é capa da edição de revistas como Veja e IstoÉ, com o circuito culminando com reportagem no programa Fantástico, domingo à noite.
Para o cidadão comum, a aparência é de que se trata de algo verdadeiro, pois todos os veículos falam a mesma coisa. Lamentavelmente a maioria desconhece que a mídia corporativa brasileira está nas mãos de apenas cinco famílias bilionárias: Marinho, Frias, Macedo, Santos e Saad. Famílias com vasto currículo no que se refere á sabotagem a governos progressistas e ao desenvolvimento do país.
É com esse tipo de manipulação que a extrema-direita joga.
Em várias oportunidades, a manipulação é tão bem articulada que parece convencer até pessoas com perfil progressista. Digo parece, porque o “convencimento” pode se dar por outros meios.
Benesses e dinheiro são alguns deles.
A manipulação não se limita a tentar espalhar o caos no país. Para o quadro ser completo, é preciso naturalizar os horrores que acontecem no mundo. Para a Folha de S. Paulo, o primeiro ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, é um democrata, mesmo praticando genocídio contra o povo palestino. Genocídio estendido para o Líbano e Síria, sob os olhares complacentes desta mídia que defende incondicionalmente os Estados Unidos e seu pupilo, Israel.
Para ela, ditadores são os presidentes de Cuba, Miguel Diaz-Canel, e da Venezuela, Nicolás Maduro, que nunca declararam guerra contra quem quer que seja e enfrentam pressões, bloqueios e ameaças permanentes por parte da Casa Branca, independente se ocupada por democratas ou republicanos.
A visão seletiva da mídia corporativa brasileira é tamanha, que o extremista de direita, Javier Milei, presidente da Argentina, é tido por ela como estadista e modelo para a América do Sul, mesmo tendo jogado 51% da população de seu país na miséria em um ano de mandato.
Deve ser por isso que a mídia corporativa brasileira foge, como o diabo da cruz, de fazer comparação séria entre os governos Lula e Milei. Como explicar que as coisas aqui vão “mal” com uma inflação de 4,8% ao ano e na Argentina estão “bem” com inflação em estratosféricos 190%?
Se a mídia corporativa brasileira não fosse o que é, deveria estar mostrando os riscos que o novo governo de Donald Trump, que toma posse em 20 de janeiro, representa para América Latina e para o mundo.
Mas não. Finge que não sabe de absurdos como os que Trump promete realizar nos primeiros momentos de sua volta à Casa Branca: deportar todos os imigrantes latino-americanos irregulares, impor taxas de 100% a produtos de vários países, inclusive do Brasil, comprar brigas e tentar desestabilizar governos em todos os hemisférios, sempre de olho em vantagens políticas e pessoais e em rapinar recursos naturais e minerais.
Esse tipo de comportamento, somado às mentiras que tem divulgado no plano interno, deixa evidente a quem esta mídia serve. No caso do Grupo Globo, desde o ilegal acordo com o grupo estadunidense Time-Life, nos anos 1960, a sua relação prioritária é com os interesses da Casa Branca e das multinacionais daquele país.
Para quem alega que a teledramaturgia da Globo é positiva, pois combate o conservadorismo e empodera negros e mulheres, basta lembrar que esse suposto empoderamento vai por água abaixo quando a família Marinho apoia a retirada de direitos trabalhistas e mudanças na previdência social, ou quando defende a taxa de juros nas alturas e cortes de despesas públicas apenas na área social.
O identitarismo do grupo Globo nada mais é do que a tentativa de mascarar a luta de classes, como fez e faz nos Estados Unidos o Partido Democrata.
Neste ponto, o Partido Republicano é mais explícito.
Se Grupo Globo existisse quando do final do Império no Brasil, certamente seria contrário à abolição da escravatura. Não por acaso, a família Marinho, inicialmente Roberto e agora seus filhos e netos, sempre se bateu contra qualquer avanço social.
Foram contra melhorias no salário mínimo, contra a legislação trabalhista e, claro, contra o 13º salário. Odiavam Getúlio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola. Sempre foram chegados em golpistas como o udenista Carlos Lacerda e, mais recentemente, tinham o playboy tucano Aécio Neves como ideal para governar o Brasil.
Já se tornou um clássico do mau-caratismo desta mídia, a manchete de O Globo em 26 de abril de 1962: “Considerado desastroso para o País um 13º Mês de salário”. A lenga-lenga naquela época é muito parecida com a dos dias atuais. Antes eram “os meios econômicos e financeiros” que desaprovavam mais um mês de salário. Agora é “o mercado” que exige o corte de investimentos na área social.
Como sempre, para essa turma do “andar de cima” o estado deve ser o máximo para ela e mínimo para a maioria da população. Tanto que não querem nem ouvir falar em taxação de grandes fortunas, pagamento de imposto para jatinhos, iates e jet-skis. De quebra, também são favoráveis à manutenção dos privilégios e altos salários para miliares, juízes e magistrados.
Some-se a isso que a Globo que enxergava corrupção por todos os lados em governos progressistas, não dá um pio sobre as falcatruas do presidente da Câmara dos Deputados, o “coronel” Artur Lira, que quer porque quer, manter perto de R$ 50 bilhões do orçamento brasileiro, sendo distribuído de forma secreta por ele e sua turma.
Você já reparou que o Grupo Globo, como os demais grupos da mídia corporativa brasileira, não mede esforços para criticar os ministros do STF Alexandre de Moraes e Flávio Dino, o último responsável por exigir transparências nas emendas parlamentares que envolvem esses bilhões?
Você se recorda como essa mídia no embate entre Moraes e o empresário-salafrário estadunidense, Elon Musk, que não queria respeitar as leis brasileiras em se tratando da rede social X, de sua propriedade, ficou do lado de Musk?
Talvez esse seja um retrato sem retoques desta mídia, que perde credibilidade a cada dia.
É por isso que a mídia independente, com seus jornais, sites, portais e pós-TVs não para de crescer, com alguns destes veículos já contando com milhões de inscritos.
A mentira pode parecer poderosa, mas tem pernas curtas!