Ângela Carrato – Jornalista. Professora da UFMG. Membro do Conselho Deliberativo da ABI
Com a candidata democrata, Kamala Harris, tecnicamente empatada com o republicano Donald Trump, o resultado das eleições nos Estados Unidos, na próxima terça-feira (5/11), mostra-se imprevisível.
Mesmo assim, o presidente Lula, deixando de lado a postura de manter-se distante da corrida pela Casa Branca, que o caracterizou em disputas anteriores, posicionou-se abertamente a favor de Harris.
Em entrevista ao canal francês TF1, na última sexta-feira, Lula disse que, mesmo evitando dar palpites sobre as eleições em outros países, como “um amante da democracia” apoia a candidatura da atual vice-presidente dos Estados Unidos. Segundo ele, “com Kamala Harris é muito mais seguro para a gente fortalecer a democracia. Nós vimos o que foi o presidente Trump no final do seu mandato, fazendo aquele ataque ao Capitólio”.
Lula acrescentou que aquilo era uma coisa impensável de acontecer nos EUA, porque o país se apresentava ao mundo como um modelo de democracia. “E esse modelo ruiu”, frisou.
Pouco tempo antes, Lula havia afirmado que o Brasil trabalharia com qualquer que fosse o vitorioso nestas eleições.
O que o fez mudar de ideia? O que está acontecendo com a diplomacia brasileira, que parece dar uma guinada cujo novo rumo não é claro?
As recentes declarações de apoiadores de Trump e do próprio candidato insultando os porto-riquenhos, os latino-americanos e os imigrantes nos Estados Unidos, comparando-os a “lixos”, sem dúvida contribuiu para a posição de Lula.
Mas as mudanças são anteriores.
Rompendo com a postura de “não ingerência”, o Brasil cobrou a apresentação de atas eleitorais pela Venezuela, quando da vitória do presidente Nicolás Maduro para o terceiro mandato. Na 16ª Cúpula do BRICS recentemente terminada em Kazan, na Rússia, vetou o ingresso daquele país no bloco, mesmo sabendo da importância que isso representava para o nosso vizinho e do apoio dado por Maduro ao PT, a Dilma Rousseff e ao próprio Lula quando do golpe de 2016.
É importante lembrar que no mesmo evento, a diplomacia brasileira apoiou o ingresso da Bolívia e de Cuba como membros do BRICS. Postura importante que acabou sendo encoberta pelas acaloradas discussões provocadas pelo veto à Venezuela.
O resultado tem sido uma escalada de hostilidades entre Venezuela e Brasil, que em nada contribui para integração da América do Sul e da América Latina, principais diretrizes da política externa brasileira e fortemente reforçadas pelo próprio Lula no início de seu terceiro mandato.
A diplomacia brasileira meteu-se também em confusão com a Nicarágua, até agora pouco esclarecida, a propósito de uns padres católicos que teriam sido presos. Supostamente o presidente Lula teria recebido do Papa Francisco a missão de negociar a soltura destes padres, considerados golpistas pelo governo de Daniel Ortega.
Qual a razão para o Brasil se meter também nesta questão? Vamos imaginar se fosse o contrário: se a Nicarágua recebesse do Papa a missão de negociar a soltura de alguns dos condenados e presos pela tentativa de golpe em 8 de outubro de 2023, como o governo brasileiro reagiria?
O resultado foi o rompimento de relações diplomáticas entre Nicarágua e Brasil.
Pela primeira vez em governos progressistas, o Brasil está simultaneamente atritado com dois países latino-americanos. Some-se a isso que sofre ataques permanentes do governo argentino, que tem à frente o extremista de direita, Javier Milei, e vê com preocupação o que se passa na Bolívia, no Equador e no Peru.
Curiosamente, a diplomacia brasileira jamais confronta Milei, que tem feito e falado barbaridades contra o Brasil e contra Lula.
Na Bolívia, o partido Movimento ao Socialismo (MAS) está dividido, com suas principais lideranças, o ex-presidente Evo Morales e o atual presidente Luis Arce, se digladiando, a ponto de Moraes creditar a Arce até atentado contra a sua vida. A unidade do MAS foi fundamental para garantir mais de uma década de desenvolvimento e estabilidade à Bolívia.
Num ponto Morales e Arce concordam: os Estados Unidos estavam por trás do golpe de estado na Bolívia em 2019 e fomentaram a nova fracassada tentativa de golpe este ano. É importante observar que o objetivo central destes golpes é o controle do lítio, pois a Bolívia possui uma das maiores reservas deste mineral no mundo, usado nas baterias de telefones, em computadores e na indústria aeroespacial.
Sobre a Bolívia, a diplomacia brasileira se mantem muda.
No Equador, o governo do extremista de direita Daniel Noboa, subserviente ao governo dos Estados Unidos, torce pela vitória de Trump. Já no Peru, o frágil e corrupto governo de Dina Boluarte, uma golpista apoiada pela Casa Branca, além de sempre cumprir os desígnios de Washington, acaba de autorizara a construção de novas bases militares dos Estados Unidos em seu país e o aumento da presença de tropas do Tio Sam em solo peruano.
O governo brasileiro nunca se pronunciou sobre o golpe que derrubou o presidente democraticamente eleito, José Castillo, e alçou Boluarte ao poder. Um golpe com as mesmas características do sofrido por Dilma Rousseff.
Oficialmente, os Estados Unidos possuem bases militares na América Latina em Porto Rico, Cuba, Honduras, Colômbia e pretendem construir novas bases na Argentina, além de controlar a base de Alcântara, no Brasil. Na Argentina, o governo Milei já autorizou a construção de uma dessas unidades no extremo sul do país, na Terra do Fogo.
Na prática, existem bases dos Estados Unidos também no Paraguai, deixando claro como há um nítido interesse em cercar o Brasil e em estabelecer discórdias num subcontinente que não dispõe de armas nucleares e preza a paz.
A nova sede da embaixada dos Estados Unidos em Brasília, cujo projeto já é conhecido, envolve uma construção que mais se assemelha a um bunker, com nove andares de subsolo, onde estarão abrigados seus sistemas de espionagem. Como CIA, NSA e outra dezena de instituições no gênero são bipartidárias – suas práticas independem de qual partido esteja no poder na Casa Branca -, tudo indica que o deep state estadunidense pretende transformar o Brasil em uma espécie de sub-sede para atuações na América do Sul.
Daí algumas perguntas se tornam inevitáveis.
É aceitável para um governo democrático a postura subimperialista?
Onde foi parar a política externa “independente”, “ativa e altiva”?
Ao contrário do que alguns possam acreditar, a hipótese de conflito de grandes proporções nos Estados Unidos não está descartada. Trump já deixou claro que não admite outro resultado a não ser a vitória e os democratas, que ocupam a Casa Branca, obviamente não aceitarão isso.
O mais recente filme do diretor estadunidense Alex Garland, que estreou este ano no seu país e no Brasil, cujo título é exatamente “Guerra Civil”, retrata, por meio da ficção, esta possibilidade, ao mostrar a devastação que a extrema polarização política produziu. Tendo em um dos papeis centrais o ator brasileiro Wagner Moura, ele é excelente por colocar a nu os desastres que as guerras culturais, a violência política e a xenofobia podem causar até naquele que sempre se intitulou “a mais sólida democracia do mundo”.
Ao contrário do Brasil, onde o sistema de votação é eletrônico e totalmente confiável, nos Estados Unidos o voto é em cédula de papel e o eleitor pode votar presencialmente ou de forma antecipada pelos correios. Além de apuração demorada, tal sistema está longe de poder ser considerado isento de fraudes.
O fato de cada estado ter um número de delegados de acordo com a população e o candidato que conquistar a maioria dos votos ganhar todos os delegados daquele estado é outro aspecto que potencializa narrativas sobre corrupção eleitoral. Até porque nem sempre o vitorioso entre os delgados é o que mais votos recebeu da população.
Como os ânimos trumpistas estão exaltados e há registros de tumultos em várias cidades, tudo pode acontecer.
Diante desse cenário cabem ainda outras perguntas cruciais.
Como Bolsonaro e os bolsonaristas reagirão a uma possível decisão de Trump de não reconhecer a derrota?
Como vão se comportar as nossas instituições, em especial as Forças Armadas, despreparadas e desarmadas para ações externas, mas sempre dispostas a participar e a respaldar golpes internos contra presidentes progressistas como demonstra a deposição de João Goulart, em 1964, e a de Dilma Rousseff, em 2016? A questão serve para os dias atuais, mas também para as nossas eleições presidenciais de 2026.
O governo Lula continua apostando na construção do mundo multipolar, do qual o BRICS é protagonista, ou avalia que o caminho mais adequado ainda seja permanecer ao lado da potência hegemônica mesmo que em declínio?
Ninguém desconhece o histórico dos Estados Unidos no apoio a golpes tradicionais na América Latina enquanto durou a “guerra fria”. Já a partir dos anos 2000, os golpes tradicionais foram substituídos pela pressão neoliberal sobre os governos progressistas da região, a chamada “guerra híbrida”, que visa obter recursos minerais, riquezas, conhecimentos e força de trabalho de nossas sociedades. Dito de outra forma: manter a América Latina como “quintal”.
Haja vista que uma das primeiras medidas do governo golpista de Michel Temer foi isentar as petroleiras estrangeiras que atuam no pré-sal brasileiro do pagamento de impostos. Isso após a Operação Lava Jato quase destruir a Petrobras e de ter feito terra arrasada das empreiteiras brasileiras, que se destacavam no cenário internacional vencendo concorrências em todas as partes do mundo, inclusive nos Estados Unidos.
Até o momento, o governo Lula não conseguiu reverter essa situação.
Some-se a isso que a nova onda golpista patrocinada pelos democratas estadunidenses está longe de ter chegado ao fim.
Se Trump for o vitorioso, ela será explícita.
Se Kamala for a vitoriosa, seguirá, como nos dias atuais, através de fortes pressões econômicas e de ingerências permanentes, algumas visíveis e outras nem tanto, via ONGs e de entidades ditas sociais. Basta verificar a atuação de entidades deste tipo, quando se trata de sabotar as tentativas do Brasil obter parcerias e transferência de tecnologia para a produção de itens sofisticados como máquinas e aviões ou a exploração de petróleo no novo pré-sal, a chamada Margem Equatorial.
Detalhe: a exploração de petróleo na mesma região, só que em águas da Guiana, a colônia francesa na América do Sul, está a pleno vapor e ninguém, nem na mídia, no Parlamento ou ONGs, faz qualquer crítica sobre o assunto. A produção é de 600 mil barris por dia.
O fato de essa exploração ser feita pela petrolífera estadunidense ExxonMobil certamente explica esse silêncio. Algo como: lá pode, mas aqui não.
Você já reparou como a mídia corporativa brasileira, que segue os interesses de Washington, defende que o Brasil se mantenha na posição de mero exportador de commodities e reage negativamente toda vez que um governo progressista como Lula tenta investir na industrialização, em ciência e em tecnologia?
Não por acaso, Biden tem dito e repetido que não vê com bons olhos a participação do Brasil no projeto de desenvolvimento compartilhado Cinturão e Rota da Seda, patrocinado pela China. E não por acaso, o Brasil tem adiado qualquer decisão sobre o ingresso nele.
Por tudo isso, é fundamental acompanhar dois importantes eventos internacionais que terão em breve o Brasil como protagonista. O primeiro é a Cúpula do G-20, a reunião das maiores economias do mundo, que acontecerá no Rio de Janeiro, nos dias 18 e 19 próximos.
O Brasil presidiu o G-20 em 2024 e no evento serão divulgados os resultados deste trabalho. Espera-se a presença de Joe Biden e de Xi Jinping, entre outros líderes mundiais.
Sabe-se que Lula conseguiu avanços significativos, seja em relação à adesão à campanha mundial contra a fome e a pobreza e no que se refere a pautar internacionalmente a discussão sobre a taxação de grandes fortunas. Discussão que, internamente, a extrema-direita e a direita brasileira enterram na última quarta-feira, ao derrotar projeto nesse sentido que tramitava na Câmara dos Deputados.
Já em questões voltadas para o desenvolvimento do Sul Global, não há nada significativo a registrar.
Em 2025, o Brasil presidirá o BRICS e terá como missão implementar as dezenas de resoluções tomadas pela Cúpula em Kazan, considerada a mais importante dos 15 anos de existência do grupo. Entre essas resoluções está o ingresso de 13 novos países, que se somarão os nove atuais.
A diplomacia brasileira e, sobretudo, Lula, vão manter o atual ritmo de trabalho do BRICS ou optar por desacelerá-lo? Na presidência do bloco, o Brasil poderá rever o inexplicável veto ao ingresso da Venezuela?
Não falta quem acredite que Lula, num mundo tão complexo e conflituoso como o que se apresenta, tende a repetir o posicionamento de Getúlio Vargas: equilibrar-se entre os poderosos, especialmente numa conjuntura interna para lá de difícil.
Getúlio só aceitou entrar na Segunda Guerra Mundial ao lado dos Estados Unidos, depois de acertar com o presidente Franklin D. Roosevelt, conquistas para o desenvolvimento brasileiro, como a criação da nossa primeira grande usina siderúrgica, a CSN.
O Brasil, naquela época, não tinha alternativa para se desenvolver. Hoje o quadro é bem diferente. Se os Estados Unidos são os senhores da guerra por trás do que acontece na Ucrânia, na Faixa de Gaza e no Líbano, desde o fim da Segunda Guerra Mundial é a primeira vez que a potência hegemônica se vê confrontada internamente de forma tão radical. Logo ela que sempre patrocinou e estimulou golpes em toda parte.
Não seria o momento de o Brasil manter-se distante dessa eleiçao nos Estados Unidos?
Não seria o momento de reforçar novas parcerias de seu interesse visando o fortalecimento do Sul Global?
Os próximos dias prometem ser ansiosos e tensos não só para a política e a população estadunidense, mas o mundo como um todo e o Brasil, maior país da América Latina, em especial.