Angela Carrato – jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG
Depois de um ano sumidos, os principais movimentos sociais estão de volta à cena política. Em Brasília e capitais como Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, a Frente Brasil Popular, Povo Sem Medo, Levante da Juventude, lideranças sindicais, estudantis, coletivos e servidores estaduais ocuparam ruas e praças neste sábado (23/3), em apoio ao governo Lula, mas também para exigir da Justiça punição aos militares golpistas de 8 de janeiro (“Sem Anistia”) e denunciar as administrações criminosas de governadores de extrema-direita.
A decisão não poderia ter sido das mais acertadas, especialmente quando fica nítido um movimento orquestrado da direita, extrema-direita e mídia corporativa no sentido de ir corroendo o apoio da população ao governo Lula, num momento em que a prisão de Jair Bolsonaro parece cada dia mais próxima.
A prisão do ex-ajudante de Ordens de Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid, determinada pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, na sexta-feira, deixou mais claro ainda como as manifestações populares são necessárias.
Mauro Cid voltou à prisão, porque descumpriu parte do que acordou com a Justiça para que sua delação premiada fosse aceita. Some-se a isso que áudio dando conta de críticas mentirosas suas contra o ministro Alexandre de Moraes e a Política Federal virou manchete da revista Veja. Independente de quem vazou o áudio e com quais intenções, o certo é que a mídia corporativa voltou a se valer dos velhos expedientes para combater governos progressistas e tentar botar lenha na fogueira dos golpistas.
Alguém menos avisado talvez possa argumentar que a intenção dos editores de Veja tenha sido positiva e que o áudio continha informação relevante. Verdade, se a mesma revista não tivesse sido lavajatista de primeira hora e dado como manchete de capa, na edição da semana passada, que Lula está perdendo popularidade e repete os mesmos erros e cacoetes do passado em se tratando da Petrobras e da política externa.
O compromisso da mídia corporativa brasileira com a informação poderia ser alegado, também, se na edição desta semana da revista IstoÉ, o editorial não tivesse como título “O Interventor Lula” e não iniciasse com a seguinte frase: “Lula não perde o cacoete. Aprimora-o. Meter a mão e o bedelho na rotina de empresas lucrativas parece ser o seu esporte favorito”.
São apresentados como negativos Lula ter barrado a distribuição de dividendos extra aos acionistas da Petrobras, querer retomar a direção da companhia Vale (onde o governo é o maior acionista individual) e estar empenhado em reindustrializar o Brasil.
Pela lógica de IstoÉ, o ideal seria que a Petrobras continuasse como “vaca leiteira” de meia dúzia de tubarões acionistas, que a mineradora Vale pudesse matar pessoas, destruir rios e terras impunimente e, melhor ainda, que o Brasil permanecesse um fazendão, ao sabor do interesse de meia dúzia de golpistas do agronegócio.
Em outras palavras, a orientação desta mídia é desgastar o governo Lula de todas as formas possíveis, insuflando militares e fanáticos bolsonaristas contra ele e estimulando a decepção de setores de esquerda com posições do presidente como recomendar a não realização de eventos sobre os 60 anos do golpe militar de 1964.
O objetivo final é o de sempre: derrubar um governo progressista, como aconteceu com João Goulart, em 1964, e com Dilma Rousseff, em 2016. Se isso não for possível de imediato, como é o caso, ir enfraquecendo o governo de tal forma, que não tenha alternativa a não ser adotar as pautas neoliberais defendidas por esta mídia.
Quem se recorda que o então vice-presidente Michel Temer propôs a Dilma aceitar o programa “Ponte para o Futuro” (a cartilha neoliberal que destruiu o Brasil) caso quisesse permanecer no poder? Como ela não aceitou, deu no golpe travestido de impeachment, que a mídia aplaudiu e sustentou.
Como cupim, a mídia corporativa brasileira trabalha de forma incessante para que seus objetivos nada democráticos sejam alcançados. Minimiza e esconde ações positivas do governo (as dezenas de programas sociais retomados e os novos já em atuação), mente sobre ações corretas (caso da Petrobras e Vale), insinua corrupção (olha o escriba da família Marinho, Carlos Alberto Sardenberg, falando que “é preciso retomar a Operação Lava Jato”) e, para coroar o processo, noticia com o maior alarde que a avaliação positiva do governo Lula empata com a negativa.
Pesquisas de opinião e notas de agência de classificação de risco são dois velhos instrumentos utilizados por esta mídia.
A coisa funciona assim: a mesma mídia que inventa notícias negativas para o governo é a que noticia que institutos de pesquisa apontam queda na popularidade do presidente e na avaliação positiva de seu governo. Além de atuar nas duas pontas do processo, como é o caso do jornal Folha de S. Paulo com o seu DataFolha, uma mentira repetida à exaustão e sem contestação, corre o risco de ser considerada verdade.
Vale lembrar que em meados de março de 1964, às vésperas do golpe, pesquisa Ibope indicava que a avaliação positiva do governo de Goulart beirava os 58%. A mídia não só escondeu essa pesquisa, como direcionou todo o noticiário para mostrar que Jango estava desgastado e não tinha mais apoio popular.
No momento, não há cenário para as agências de classificação de risco (todas ligadas a interesses imperialistas) rebaixarem a nota do Brasil. Como falar em risco, quando o país bate recorde internacional em investimentos? Quando os investimentos externos foram ao fundo do poço, como no governo Bolsonaro, curiosamente essas agências ficaram caladinhas e a mídia se esqueceu da existência delas.
Todo o processo vivido em anos recentes, no entanto, aponta para o fato de que os golpes de estado clássicos, com militares e tanques nas ruas, serão cada vez mais substituídos por esquemas orquestrados pela mídia. E pior ainda: esquemas que parcela expressiva da população não identifica como tal.
Os vizinhos argentinos talvez sejam o melhor exemplo. Inexpressivo, neoliberal e candidato a ditador, Javier Milei foi eleito com 55,69% dos votos, uma porcentagem altíssima quando se sabe que suas propostas envolviam absurdos como dolarizar a economia, acabar com programas sociais e reduzir o estado ao mínimo.
Sua vitória só foi possível, porque os argentinos foram levados a uma espécie de exaustão e descrença generalizada nos políticos. “São todos iguais”, afirmavam diariamente jornais, canais de TV e emissoras de rádio, tentando colocar como equivalentes peronistas históricos, como Cristina Kirchner, e um aventureiro a serviço dos países imperialistas, como Milei.
Milei, por sua vez, está retribuindo o apoio que recebeu dos países imperialistas. Permitiu a construção de base militar dos Estados Unidos na Patagônia, mesmo diante de repúdio da população e manteve silêncio diante da informação de que o Reino Unido vai reforçar sua base militar nas Ilhas Malvinas.
Aqui o silêncio sobre esse assunto é total, deixando visível de que lado a mídia está.
Na edição da última sexta-feira, o jornal Estado de S. Paulo deu como manchete que “Lula repete Bolsonaro e impõe sigilo de cem anos a documentos”. Claro que os documentos não são os mesmos e nem as razões do sigilo. A jogada foi tentar igualar Lula a Bolsonaro e ir, como cupim, corroendo a imagem do governo junto à população.
No passado, chegamos a paradoxos como o de manifestantes que exigiam do governo Dilma, “educação e saúde padrão Fifa”, terem se calado e sumidos das ruas quando Temer e depois Bolsonaro aprovavam reformas profundamente antipopulares como as do Ensino Médio, Trabalhista e da Previdência Social.
Daí ter sido acertada a decisão do presidente Lula de abrir a semana com reunião de seu ministério, onde avaliações e cobranças foram realizadas. O objetivo foi falar para o público interno e o externo e, sobretudo, rebater a ideia de desarmonia no primeiro escalão.
A mídia, como sempre, noticiou apenas o que lhe interessava e como interessava. Ficaram de fora, por exemplo, as conversas que Lula manteve com ministros de partidos da base aliada, que mesmo no governo, tem votado contra o governo. Ficaram de fora, também os comentários do presidente sobre a atuação da própria mídia, onde, ao contrário do que alguns pensavam, ele não estaria percebendo o que acontece e nem a gravidade do momento.
Tanto está percebendo, que a Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom) divulgou nota deixando nus os governadores de extrema-direita, Tarcísio de Freitas, de São Paulo, e Ronaldo Caiado, de Goiás. Ambos viajaram a Israel, em meio ao massacre que o governo sionista promove contra o povo palestino. Tiraram fotos sorridentes ao lado de Netanyahu e tentaram confundir a posição brasileira sobre as ações de Israel. Além de enfatizar que os dois governadores “distorcem a posição do Brasil sobre o tema”, a nota da Secom lembra que a viagem se deu em momento em que “todo o mundo se preocupa com os civis palestinos”.
Era para o tema ter ocupado espaço semelhante ao destaque dado à viagem dos governadores apoiadores de genocida. Mas não. Mereceu apenas registro, deixando evidente o apoio da mídia a qualquer um que faça oposição a Lula.
Não por acaso, governadores como Tarcísio e Romeu Zema foram alvo dos manifestantes que voltaram às ruas no sábado para denunciar a venda do patrimônio público de São Paulo e Minas Gerais a preço de banana, dizer não à anistia para golpistas e hipotecar apoio ao governo Lula.
Se Zema trata funcionário como se inimigo, Tarcísio tem colocado a Polícia Militar a serviço do extermínio da população preta e pobre. O número de mortes cometidas pela PM de São Paulo subiu 94% no primeiro bimestre deste ano em comparação com igual período do ano anterior, passando de 69 para 139 mortes. Tarcísio acha isso tão normal, quanto Zema acredita que não tem nada de errado em aumentar o próprio salário em 299% e dar reajuste perto de zero para os funcionários.
Zema não foi a Israel, mas se juntará à turma de mais uma “caravana da alegria” a Nova York, promovida pelo grupo Lide Brazil, em 14 de maio. A título de divulgarem “oportunidades para investimentos em seus estados”, estarão juntos golpistas e bolsonaristas, entre eles Temer, governadores como Ratinho Júnior e Caiado e os atuais presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado.
Tem razão os manifestantes que consideram Zema figura traiçoeira e perigosa. Além da mídia mineira não ter divulgado uma linha sobre os preparativos para a manifestação de sábado e também de não a ter coberto, uma tentativa de cancela-la certamente estava por trás de uma pesquisa bastante suspeita.
No momento em que a mídia martela no tema da perda de apoio popular para o governo Lula, um dos jornais locais mineiros estampou como manchete, na quinta-feira, pesquisa de opinião encomendada pela própria publicação, na qual apontava Zema como “o principal eleitor em Belo Horizonte, à frente de Lula e de Bolsonaro”.
Um sinônimo para esta manchete é desinformação.
Se é indispensável que o governo Lula coloque em atividade todo o aparato de comunicação para enfrentar as mentiras e sabotagens da extrema-direita, que devem atingir níveis elevadíssimos em ano de eleição municipal, se faz igualmente necessário que os diversos movimentos sociais entrem em campo e deem a sua contribuição para repor a verdade no seu devido lugar.
Daí a importância desses movimentos terem voltado às ruas e dos manifestantes usarem, como um dos seus slogans “quem luta educa”.
Desmascarar mentiras e manipulações da mídia é educar.
Mas não basta denunciar que as redes sociais estão ocupadas por blogs e sites bolsonaristas, anti-Brasil e antipovo brasileiro. Não basta dizer que o Jornal Nacional mente.
É preciso mostrar para as pessoas comuns, para a população simples, o que está acontecendo e quais as consequências de não perceberam jogadas canalhas desta mídia corrupta e subserviente aos interesses imperialistas.
É preciso que ministérios, órgãos do governo federal, sindicatos de trabalhadores, escolas e universidades produzam material para esclarecer à população sobre o que acontece e por que acontece.
É preciso que a Petrobras, por exemplo, produza material informativo de todo tipo explicando o que faz, e rebatendo item por item as mentiras divulgadas pela mídia.
A volta dos movimentos sociais às ruas e às redes merece ser saudada, mas vencer a batalha contra a desinformação exigirá bem mais.
Exigirá esclarecer as pessoas e dotá-las de informações para que não sejam feitas de bobas e nem caiam, como no passado, no conto da mídia.