Glorita era irmã de meu pai, Paulo. Arthur, seu marido, se agitava no interior da casa, indo e voltando a passos largos pelos corredores, e sussurando frases inaudíveis. Só ele, afinal, sabia o sofrer imposto pelos estertores da Glorita que, gravemente enferma, definhava acelerada em direção ao ocaso que se avizinhava. A doença, em família, quando a cura se estampa possível na linha do horizonte, é aceita como algo natural e passível de ser superado com o passar do tempo e mediante tratamento adequado. Mas, quando ela surge desaforada, mal-educada, cheia de vontades, rebelde e surda, tudo se complica. Não há crença que resolva, nem reza, nem promessa, nem vela seja lá de que cor for, inclusive a preta, porque a moléstia, neste caso, não bateu à porta, mas a arrombou. E, esse, era o caso da Glorita, em sua fase terminal, quando tocou, na sala de jantar a campainha do telefone, que ficava preso à parede. Arthur Albano não tinha o hábito de atender às chamadas; preferia deixar esse encargo para alguém, que pela casa estivesse circulando. Mas, ansioso, como se encontrava, atendeu a ligação. Do outro lado da linha o conhecido jornalista Benedito Adami de Carvalho, figura de notória participação na crônica esportiva, e que tinha pelo Arthur especial admiração. Aliás, pelo que sei, a admiração era recíproca. “Arthur, meu amigo, estou lhe telefonando nesta hora difícil para lhe apresentar os meus sentimentos pela morte da nossa querida Glorita”. Arthur se assustou, pigarreou, apoiou o cotovelo esquerdo na parede, e pressionando o telefone contra a orelha, disse em tom amigável: “Benedito, fico muito agradecido pela sua gentileza em me telefonar, para manifestar os seus sentimentos, mas preciso lhe dizer que a Glorita está muito mal, em fase final, mas que ainda não faleceu”. O jornalista, pego de surpresa e na falta de argumento melhor elaborado, retrucou: “Bom, não morreu, mas vai morrer, não é Arthur?”

A doença está sempre à espreita. Pode vir a qualquer momento, com ou sem aviso. Uma pequena mancha pode se transformar em tragédia, mas é com a idade avançada que ela se manifesta com a desenvoltura de quem quer se divertir brincado com a nossa saúde, jogando com as nossas crenças, se foliando com a nossa esperança, além de estimular em nosso interior apressadas e contritas promessas de dívidas que, contraídas, serão esquecidas. Mas as doenças também podem nos trazer além de revolta, resignação, esperança, promessas e, entre outras tantas ocorrências, o senso de humor.

Minha mãe havia sofrido um AVC e se encontrava internada no Hospital Semper, na região da Savassi, em Belo Horizonte. Passou um tempo na UTI e depois de alguns dias foi transferida para apartamento. Em sua companhia se revezavam a estimada Anita, pessoa agregada à família e que conosco passou toda a sua vida, além da Jandira, uma amiga fiel da paciente, e com a qual estreitava inúmeras afinidades, inclusive no tocante às nuances da espiritualidade.

Nair havia estado inconsciente por vários dias e a sua fisionomia não era das melhores. Jandira era impressionável, tinha muitas crenças, vários padroeiros e acreditava tanto em anjos da guarda, como no Arcanjo Gabriel, quanto nos guias espirituais, como na Vovó Maria Conga e no Pai João D’Angola. A seu turno, Nair era espiritualista Kardecista, mas mantinha um pé na Teosofia, enquanto que o meu pai era ateu. Enfim, aquele quarto era uma salada no tocante ao Além, mas receptivo a todos os milagres impossíveis, mediante o concurso, sem preconceitos, entre as inúmeras forças do universo, conhecidas ou não.

E foi nesse clima que o milagre, que alguns chamam de “visita da saúde”, aparentemente aconteceu. Nair, que se encontrava próxima ao desencarne, acordou pela manhã, sentou-se na cama, ajeitou a camisola e cumprimentou a Jandira com largo sorriso. Jandira ficou pasma, não acreditou no que via. Nair andou pelo quarto, foi ao banheiro, lavou o rosto, pediu uma troca de roupa e pegou o telefone sobre o criado-mudo. Ligou para a poetisa Eva Reis, trovadora de escol, sua amiga.” Alô, amiga, aqui é Nair”. “Quem? Nair? mas a Nair está internada em hospital, inconsciente e muito mal”. “Pois é, Eva, mas sou eu mesma, morri, e estou ligando para me despedir”. Eva achou tratar-se de trote e desligou. Nair não se aborreceu, voltou para a cama, se recostou e disse à Jandira que ela vinha recebendo a visita de seus pais e de amigos falecidos, que a estavam confortando em face da doença e da gravidade de sua situação. Jandira retrucou, dizendo que os mortos não retornam e que as visitas se tratavam apenas de sonhos. Mas, Nair, com os olhos em lágrimas, insistiu na versão.

O sol se escondia por detrás das cortinas, quando a porta do apartamento se abriu, bem devagar, dando acesso a figura de um homem alto, muito magro, de tez pálida, nariz afilado, sobrancelhas espessas, além de cabelo liso, com pontas soltas sobre as orelhas grandes e de lóbulos avantajados. O visitante cumprimentou Jandira com leve aceno de cabeça e sentou-se bem devagar na cama, tomando entre as suas, com delicadeza, a mão direita da Nair, que dormia. O visitante, de olhos fechados, balbuciou algo parecido com oração e voltou o olhar para Jandira, quando ela lhe perguntou quem era ele. A visita se apresentou como primo da “Narrinha”, seu apelido de infância, acrescentando que se tratava do Cícero Brandão, o professor Ceru, de Ubá, terra natal da amiga. Jandira, que já estava apavorada com os relatos feitos pela Nair sobre as visitas estranhas que a paciente vinha recebendo, perguntou titubeante: doutor Ceru, a Narrinha vem acolhendo muita gente estranha aqui no apartamento. Doutor Ceru, seja franco, o senhor é encarnado ou desencarnado?

PS: Nair faleceu três dias depois.


4 Comentários

  • Avatar

    Guilherme Hernandez Filho, abril 24, 2022 15:49 @ 15:49

    Muito boa crônica. Situação cômica, não fosse pelo momento triste. Abraços.

  • Avatar

    ROSANA MARQUES RIBEIRO, abril 24, 2022 20:08 @ 20:08

    Bela crônica amigo Caio

  • Avatar

    Leninha Pinto, abril 25, 2022 14:33 @ 14:33

    Bela crônica 👏👏👏👏

  • Avatar

    Ruy Nogueira, abril 25, 2022 21:17 @ 21:17

    👏👏👏👏👏👏

Os comentários estão fechados.