Imagine a cena: um poeta idealista e com ambições revolucionárias desembarca em Nápoles, na Itália, em sua primeira viagem transatlântica na Europa. O ano é 1912, e o Velho Continente fervilha com ideias inovadoras, ciências mirabolantes e movimentos culturais de vanguarda que deixam o jovem extasiado com o que testemunha.

Após passar sete meses convivendo com intelectuais, artistas e boêmios no exterior, ele retorna ao Brasil decidido a assimilar todos aqueles aportes estrangeiros para criar uma nova cena artística que reflita a identidade nacional e enterre de vez as tradições do passado. “Estamos atrasados 50 anos em cultura”, escreveu o jovem na época.

O artista em questão era Oswald de Andrade – ainda com 22 anos –, que uma década mais tarde se tornaria um dos arquitetos da Semana de 22, evento considerado pedra fundamental do modernismo brasileiro.

Realizado nos saguões do Theatro Municipal de São Paulo, entre as noites de 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, o encontro reuniu artistas como os pintores Di Cavalcanti e Anita Malfatti, o compositor Heitor Villa-Lobos e os escritores Oswald e Mário de Andrade, Graça Aranha e Menotti Del Picchia para sessões de música, poesia, dança e artes plásticas. O projeto almejava libertar as artes brasileiras do conservadorismo e do academicismo que imperavam na época.

Neste domingo (13), a histórica exposição completa cem anos cada vez mais estabelecida na psiquê nacional como um dos grandes marcos culturais do país. Embora tenha fama de berço da vanguarda, especialistas afirmam que o senso comum sobre a Semana de 22 é bastante deturpado.

“A Semana não teve nenhum impacto nacional em 1922. Ela foi a externalização da vontade de modernização cultural de um grupo de intelectuais e artistas ligados à elite paulistana – e funcionou muito mais como proposta do que como efetivação dessa vontade”, opina a professora de história da arte e doutora em filosofia pela UFMG Rachel Cecília de Oliveira.

Segundo ela, o modernismo nem sequer começou com o famoso evento realizado às vésperas do centenário da Independência.

“É importante ressaltar que existem obras modernistas produzidas no Brasil desde o final do século 19. A arte modernista que celebramos hoje como derivada da Semana demorou quase uma década para ser exposta no Salão da Escola Nacional de Belas Artes, realizado no Rio de Janeiro. E quando isso aconteceu, o diretor que estava à frente do salão, o renomado urbanista Lúcio Costa, responsável pelo projeto da cidade de Brasília, teve que deixar o cargo. Ou seja, o processo de aceitação das obras modernas inspiradas pelo evento foi muito lento”, frisa.

Mas se o cânone oficial sobre a Semana é cheio de ambiguidades e equívocos, qual é a importância real deste acontecimento para o panorama cultural nacional?

“A Semana de Arte Moderna é sem dúvida um momento importante no universo artístico brasileiro, tanto que ela segue sendo discutida, polemizada e debatida um século depois de ter acontecido”, explica Marcia Camargos, escritora, historiadora e pesquisadora com pós-doutorado na Universidade de Sorbonne.

“Ela representa o estopim, o grito de basta, que estabeleceria os padrões do que viria depois ser estabelecido como arte brasileira moderna”, destaca.

Autora de três livros dedicados ao famoso encontro, Marcia ressalta que a real significância da Semana de Arte Moderna só foi reconhecida posteriormente.

“A Semana não conseguiu forjar imediatamente uma arte ou identidade nacional – e nem poderia durante somente três saraus”, diz, acrescentando ainda que é possível que a memória do evento desaparecesse por completo caso não fosse resgatada por movimentos de vanguarda da primeira fase do modernismo nacional, como o Pau-Brasil, o Verde-Amarelo e o Antropofágico.

“Ela plantou a raiz que acabou ganhando corpo através dos manifestos que vieram depois, principalmente o antropofágico, criado pelo Oswald de Andrade. Antonio Candido fala que a antropofagia é o momento mais rico e importante da dialética modernista – e foi justamente com ela que Oswald adaptou, de maneira altamente criativa, elementos estrangeiros para criar um fazer artístico totalmente brasileiro”, afirma a estudiosa.

Paulicentrismo

Professor de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Luís Augusto Fischer vai mais além e aponta que a aura mítica em torno da Semana de 1922 só foi construída de fato 50 anos depois – e com a proposta principal de tentar transformar São Paulo “numa capital modernista”.

“A Semana não teve esse poder todo na sua época. Na verdade, foi uma coisa muito restrita à cidade de São Paulo, com pouquíssima audiência e até mesmo vaia encomendada”, enfatiza. “Essa ideia de que o evento foi o ‘big bang’ da modernidade brasileira só ganhou força a partir de 1972 – e fazia parte de um desejo de criar uma visão de mundo, uma hegemonia cultural protagonizada por São Paulo, que até então era uma cidade rica, mas provinciana. Essa expressão inclusive é do Mário de Andrade”, esclarece o professor.

Ele lembra que o posto de capital cultural do país era o Rio de Janeiro e que os organizadores do evento paulista queriam reproduzir a cena cultural efervescente carioca no início do século 20.

“A Semana só poderia ter acontecido em São Paulo, cidade que tinha muito dinheiro, mas não tinha vigor cultural. A grande obsessão deles era o Rio, que naquela altura era muito desenvolvido e tinha sido a capital da Colônia Portuguesa no Brasil desde 1760, depois da Independência, e continuou como capital federal até 1960. O Rio já era moderno, não precisava forçar barra nenhuma para ser modernista”, acrescenta.

Para Fischer, a comemoração do centenário da Semana de 22 pode ser uma boa oportunidade para se revisar o que já foi ensinado sobre o evento, inclusive o mito de que somente São Paulo tinha vocação moderna e construtiva no Brasil.

“É uma boa hora de rever aquele episódio e dar balanços nas coisas. Tem muita pesquisa acadêmica séria, muitos livros e informação sobre a Semana de Arte Moderna, sobre o processo do Modernismo que podem nos permitir uma visão mais ampla do evento e sua real significância”, resume.

Conexão internacional

Mesmo sendo um evento relativamente restrito a São Paulo, a Semana de Arte Moderna foi capaz de uma façanha admirável na época: projetar o Brasil como uma nova potência no cenário mundial.

“Foi por meio da Semana que Villa-Lobos, Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade começaram a atrair a atenção da vanguarda francesa, principalmente em Paris”, salienta Kenneth Jackson, professor de português e literatura na Universidade de Yale.

Ele destaca que em seu primeiro momento, o evento fez com que artistas internacionais de peso como Jean Cocteau, Florent Schmitt e Albert Roussel descobrissem e se interessassem pelo modernismo brasileiro.

“Esses contatos foram importantes, por exemplo, para a realização de duas exposições de Tarsila na Galerie Pércier em 1926 e 1928 e também para dois grandes concertos de Villa-Lobos em Paris 1924 e 1927”, ilustra.

A historiadora Marcia Camargos concorda e diz que um dos grandes sucessos do movimento modernista foi ter conseguido conjugar o estrangeiro e o nacional de uma forma inovadora.

“Embora os modernistas tenham ido beber nas fontes europeias ao longo da década de 20, eles também conseguiram impactar a produção de alguns artistas franceses, como o poeta Blaise Cendrars e o compositor Darius Milhaud, que de alguma forma também acabaram influenciados por esse legado modernista autenticamente brasileiro”, analisa.

Influência atemporal

Apesar da guerra de interpretações sobre sua significância, é inegável que a Semana de 22 e o Modernismo remodelaram muito do modo de se fazer e pensar arte no Brasil, e acabaram influenciando várias gerações de artistas ao longo das décadas.

Tendo como mote a promoção da cultura popular, as ideias fomentadas durante o evento respingaram em várias áreas, como arquitetura, urbanismo e pintura, e inspiraram diversos movimentos e tendências artísticas desde o Tropicalismo, passando pelo Cinema Novo até o funk carioca.

“Toda a produção cultural contemporânea carrega algo que a Semana de Arte Moderna irradiou”, avalia a doutora em letras pela UFMG, Telma Borges da Silva.

“A coisa da presença intensa da vida como substância da arte é evidente tanto nos filmes de Grace Passô quanto na produção musical de Emicida. Por valorizares os marginalizados e esquecidos desse Brasil profundo, eles têm o mesmo peso contido na obra de Mário de Andrade porque nos fazem olhar para nós mesmos como um país independente, um Brasil de gente brasileira, com uma língua e cultura própria. Essa é sua maior riqueza”, arremata.

Fonte: Vermelho


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