Organizações e ativistas que já trabalham com a previsão de que o presidente Jair Bolsonaro (PL) executará um plano golpista nas eleições tentam articular uma reação orquestrada à ameaça de ruptura democrática e convencer mais setores sobre a urgência de mobilização.

Centenas de entidades da sociedade civil, movimentos sociais e políticos, profissionais do direito, militantes e acadêmicos atuam, em público e nos bastidores, para traçarem o roteiro de uma resposta imediata a ataques efetivos contra a ordem eleitoral.

A maior parte das ações se dá em conjunto com o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), que ampliou o contato com vários segmentos para barrar a investida autoritária. O esforço conta também com iniciativas que querem se manter discretas para driblar perseguições do bolsonarismo.

Associações que participam de comissões montadas pelo TSE estão na linha de frente dos trabalhos, mas outros grupos igualmente alarmados estão por conta própria se somando à guerra.

A bandeira de todos é única e cristalina: respeito às urnas eletrônicas e ao resultado que sair delas. Falta agora descobrir como, exatamente, evitar que uma tentativa de golpe prospere no Brasil em 2022.

“Para nós está claro que essa tarefa não caberá somente a uma instituição ou classe, mas a todos os setores do Estado e da sociedade”, diz Flávia Pellegrino, porta-voz do Pacto pela Democracia, uma rede que agrega mais de 200 organizações inseridas no debate.

Os caminhos adotados até aqui incluem ações de prevenção e alerta. São conversas dos movimentos com representantes do TSE, do STF (Supremo Tribunal Federal) e do Congresso Nacional, além de diálogos em fóruns que reúnem plataformas de redes sociais e partidos.

Reduzir o alcance das campanhas de desinformação e das alegações infundadas de fraudes no pleito é visto como prioridade geral.

Um grupo de 15 pesquisadores que tem feito estudos sobre a máquina de fake news optou por não figurar publicamente como comunidade organizada, sob o argumento de que temem ataques da base do presidente.

Os especialistas, ligados a universidades e reconhecidos em suas áreas, aparecem para divulgar as conclusões de suas pesquisas, mas sem se colocarem como parte de um movimento. A pedido dos próprios, esta reportagem omite os nomes dos membros e do coletivo.

Líderes da articulação antigolpe enxergam semelhanças com a narrativa promovida por Donald Trump nos Estados Unidos em 2021, que culminou com a invasão do Capitólio e a morte de cinco pessoas.

A versão brasileira passa pela tentativa de desmoralização do Judiciário —Bolsonaro ameaça deixar de cumprir ordem judicial— e a incitação de apoiadores, inclusive policiais e atiradores esportivos.

“Com a deslegitimação dos tribunais, o direito sozinho não vai dar conta de funcionar como anteparo”, diz Estefânia Barboza, docente da Universidade Federal do Paraná que pertence à Demos, uma frente com professores de direito de vários estados que advertem sobre o risco à democracia.

“No momento crítico, vamos precisar da política e de todas as instituições, empresas, igrejas, sindicatos. E vai ter que ter povo na rua”, segue ela. “Muita gente subdimensiona a gravidade. Nós estamos apavorados. Eu não sou militante, sou professora, mas a situação me obriga a fazer algo.”

Rogério Sottili, que dirige o Instituto Vladimir Herzog e está engajado em discussões na Comissão Arns e em outros ambientes, afirma que Bolsonaro semeia elementos de ruptura desde 2018. “Mas esse jogo não vai dar em nada se antes gritarmos que ele quer fraudar o processo.”

“Não acredito que os militares vão botar tanque na rua para defender isso. Não é mais 1964 [ano do golpe militar]. O cenário é diferente”, segue Sottili, que serviu a governos do PT, partido do líder das pesquisas, Luiz Inácio Lula da Silva, com 48% de intenções no Datafolha, ante 27% de Bolsonaro.

Embora parte dos envolvidos nas coalizões faça oposição aberta ao atual mandatário ou declare apoio ao ex-presidente petista, muitos deles afirmam que as atividades são desconectadas de preferências.

“Nosso olhar não é partidarizado, não é contra nem a favor de um ou outro candidato”, diz Flávia, do Pacto pela Democracia, que se define como plural e apartidário. “O que sair das urnas terá que ser reconhecido. Queremos, inclusive, atrair apoiadores de Bolsonaro [para a causa].”

Na esfera partidária, o temor de golpe é mais robusto entre siglas de oposição ou independentes, como mostrou levantamento da Folha no mês passado. Legendas aliadas do presidente se calam. Órgãos como a Procuradoria-Geral da República e entidades setoriais também demonstram apatia.

O Direitos Já! Fórum pela Democracia reuniu dirigentes de 11 partidos (como PC do B, PSDB, Podemos, Novo, PSD, PDT e PSB) para alinhar a resistência. “Queremos uma resposta firme e uníssona”, diz Fernando Guimarães, coordenador do movimento.

No ecossistema que tenta desenhar reações, são repetidas as cobranças de um posicionamento enfático do empresariado e da elite. Um argumento lógico é mencionado como justificativa para a adesão: um golpe, ainda que malsucedido, prejudicará automaticamente finanças e negócios.

A Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), por exemplo, não informa se avalia um posicionamento institucional sobre a violação às eleições.

Tampouco é discutida uma reedição do manifesto “Eleições serão respeitadas”, publicado em agosto de 2021 por mais de 250 representantes de peso do PIB, economistas, intelectuais, políticos, banqueiros, artistas e personalidades. A mobilização paralisou mesmo com a piora no cenário.

Parte da explicação está no fato de que parcela do empresariado se identifica ideologicamente com Bolsonaro e apoia a reeleição. Há poucos dias, na Associação Comercial do Rio de Janeiro, convidados aplaudiram discurso do presidente com ameaças ao STF e riram de piadas ofensivas a Lula.

Dois empresários paulistas com trânsito entre os pares e o meio político disseram à Folha, sob anonimato, que a inércia também pode estar ligada à vontade de parte do setor de fabricar uma terceira via. Segundo um deles, isso é visto como mais urgente do que interceder por eleições limpas.

“Quer motivo mais suficiente do que a elevação do risco Brasil para que a elite financeira se sinta pressionada e se contraponha a esse absurdo?”, reivindica Estefânia, do Demos.

O grupo da professora expressou suas preocupações em documentos enviados à ONU (Organização das Nações Unidas) e à CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos). E pretende ainda acionar Mercosul e outros organismos multilaterais.

A avaliação é que a pressão estrangeira, embora limitada do ponto de vista prático, será fundamental. Os grupos entendem que o reconhecimento imediato de outros países ao nome do eleito será importante para sinalizar confiança externa no sistema brasileiro.

Em julho, uma comitiva viajará a Washington para reiterar esse pedido a autoridades e influenciadores do debate público global, de acordo com Paulo Abrão, diretor do WBO (Washington Brazil Office), centro que atua no tema em parceria com outras 32 entidades.

Abrão, que foi secretário da CIDH e integrou o governo Dilma Rousseff (PT), é da opinião de que ignorar ou minimizar o golpismo de Bolsonaro não é uma alternativa, ainda mais com tantas evidências. O mandatário já insufla apoiadores para irem às ruas no 7 de Setembro.

“A capacidade real de evitar o pior vai depender do que fizermos agora, em termos de mobilização e formação de consciência social. A tática da letargia ou da invisibilidade das ameaças não ajuda em nada”, diz ele.