Paula Ferreira de Almeida Marzano
Flávio Brasil Marzano

A Lei 11.340/2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha, foi criada em 7 de agosto de 2006 com o objetivo de coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, já previa em seu corpo tal proteção, ao dispor, em seu artigo 226, § 8º, que “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.

Através de várias estudos, ao longo dos anos, verificou-se que na sociedade brasileira a violência doméstica tinha fundamentalmente como vítima as mulheres. Aliada ao patriarcalismo e ao machismo estrutural, enraizados, a legislação brasileira até pouco previa uma série de restrições de direitos às mulheres, inferiorizando-as aos seus maridos nas relações domésticas.

Objetivando então proteger a mulher de sofrer toda sorte de violências dentro de seu ambiente familiar, a lei veio, ao longo desses anos, trazendo mecanismos de proteção de forma a minimizar a situação de vulnerabilidade da mulher em seu ambiente doméstico.

A Lei Maria da Penha inovou no campo jurídico ao prever uma serie de institutos que visam o nivelamento e empoderamento das mulheres nas suas relações familiares.

Dentre as possibilidades de proteção legal que a Lei Maria da Penha traz, existe a chamada “Medida Protetiva” que é uma intervenção feita pelo judiciário, em caráter de urgência, que permite que, dentre outras, o agressor seja afastado do lar, proibido de manter contato com a vítima seja por qual meio ou mídia for, proibido de se aproximar da ofendida ou de frequentar lugares que ela frequenta, que podem ser requeridas tanto pela própria vítima quanto pelo Ministério Público.

Muito se discutiu ao longo desses últimos anos 16 anos sobre a aplicabilidade da referida norma, cogitando-se aplicações analógicas da lei a situações onde, por exemplo, fosse o homem a vítima da violência. Surgiram interpretações diversas, algumas no sentido de se aplicar a lei a homens vitimados no âmbito familiar tendo como fundamento o princípio da igualdade constitucionalmente previsto no artigo 5º da carta magna brasileira.

Ocorre que o entendimento majoritário sempre foi no sentido de que a mulher teria a proteção legal em detrimento do homem, obviamente por ser mais frágil nas relações estabelecidas. Contudo, viu-se ao longo dos tempos decisões esparsas onde magistrados interpretavam o conceito de “mulher” no sentido mais amplo. Concediam, esporadicamente, medidas protetivas e afins a homens em situações mais peculiares. Sobretudo, a população LGBTQI+ ficava às margens das interpretações, tendo sido vivenciado muito pouco no direito sobre o cabimento ou não de tamanha proteção à pessoas vítimas de violência doméstica que se enquadram neste contexto.

Recentemente, mais precisamente, em abril de 2022, a 6º Turma do STJ – Superior Tribunal de Justiça, em decisão com posicionamento fundamental e transgressor, reconheceu a proteção legal e concedeu a uma mulher trans as benesses da Lei Maria da Penha, atribuindo a ela medidas protetivas sob a égide de tal dispositivo legal.

Segundo consta dos autos do processo, uma mulher trans (protegida, obviamente, por segredo de justiça) vinha sendo agredida por seu genitor que, segundo consta, era usuário de drogas e álcool. O referido senhor teria agarrado a filha pelos punhos e a atirado na parede, tentando também agredi-la com um pedaço de madeira. Em fuga, a mulher teria sido socorrida pela PM. (o fato aconteceu no estado de São Paulo). O caso foi levado ao judiciário e o juiz de primeira instância negou as medidas protetivas. Indignada, levou o pleito a recurso e o tribunal de Justiça do Estado de São Paulo também negou as medidas protetivas ao argumento de que o conceito “mulher” era usado na Constituição Federal e que sua interpretação deveria ser biológica, ou seja, “cientificamente”.

Há que se fazer um hiato, neste momento, para esclarecer, de forma definitiva, o que é uma mulher trans para que fique clara a interpretação da norma e o passo dado pelo STJ neste momento histórico. Mulher trans é a mulher que nasceu com gênero masculino mas não se identifica com o mesmo, sendo, portanto, mulher em sua concepção mais ampla, de gênero feminino, independentemente do biológico. A pessoa trans é a pessoa que não se identifica com o gênero ao qual foi designado em seu nascimento e deve ser respeitada e aceita da forma que quer ser designada, no caso, como uma mulher em sua plenitude.

Assim, ao conceder as medidas protetivas da Lei Maria da Penha à uma mulher trans, o STJ quebra paradigmas enraizados na sociedade que não mais coadunam com a realidade social em que vivemos. Aceitar as pessoas e respeitar as escolhas faz com que o sistema judiciário seja visto com mais aceitação, humaniza o sistema, transumana as relações.

O precedente é inédito na corte e ainda não há decisões semelhantes em outras turmas, nem no STF mas verifica-se que a flexibilização pode trazer bons frutos.

Abre-se um precedente para se discutir a abrangência de tal norma criando possibilidades.

Há alguns anos, no estado do Rio de Janeiro, a Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de São Gonçalo aceitou pedido da Defensoria Pública e aplicou medidas protetivas para proteger uma mulher trans de sua mãe, que, não aceitando a escolha da filha, decidira interná-la em uma clínica psiquiátrica. Constam relatos esparsos de outros tribunais terem tido o mesmo entendimento em casos semelhantes. Assim, tem-se a percepção de que todas as medidas protetivas podem ser aplicadas àquelas do gênero feminino, independentemente do sexo de nascimento. Ou seja, pertinentes à proteção de gays, travestis, transgêneros e transexuais, além, de obviamente, as mulheres cis.

O STJ decidiu então, que a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) é aplicável para o caso da mulher transexual vítima de violência em ambiente doméstico. A proteção conferida não pode ser limitada às pessoas que ostentam condição de mulher biológica. A lógica é a da análise do sexo versus o gênero.

O relator do caso citado, Ministro Rogério Schietti, disse em seu voto, lindamente, que “a vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos não pode ser resumida à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas e o Direito não se deve alicerçar em argumentos simplistas e reducionistas”.

Disse ainda entender que a discussão perpassa sobre os conceitos de gênero e sexo, assim como breves noções de termos transexuais, transgêneros, cisgêneros e travestis, com a compreensão voltada para a inclusão dessas categorias no abrigo da Lei em comento, tendo em vista a relação dessas minorias com a lógica da violência doméstica contra a mulher.

Não se pode olvidar que a mulher trans sofre desde o momento que percebe sua condição e que excluí-la da aplicação da norma é, além de preconceito cruel, mais uma forma de impor a ela sofrimento desnecessário e vil. A mulher trans é mulher e merece toda a dignidade da proteção de sua vunerabilidade. E ponto final.

Leia aqui o voto do relator

https://www.conjur.com.br/dl/lei-maria-penha-aplicavel-proteger.pdf