Ângela Carrato – Jornalista. Professora da UFMG. Membro do Conselho Deliberativo da ABI.
Muito tem sido dito sobre o resultado das eleições presidenciais nos Estados Unidos. Muitas têm sido as explicações e análises sobre a vitória estrondosa de Trump, que ganhou de lavada no voto popular, fez maioria no Colégio Eleitoral, no Senado, e, possivelmente, faça maioria também na Câmara dos Deputados. As apurações para a Câmara ainda não terminaram.
Some-se a isso que ele tem maioria na Suprema Corte, o STF de lá, fruto de indicações feitas em seu governo anterior (2017-2020).
Do ponto de vista institucional, Trump governará em condições absolutamente favoráveis.
Como ele conseguiu tudo isso?
Mentindo, mentindo, mentindo, iludindo as pessoas, trapaceando e cometendo crimes os mais diversos. Crimes e processos que agora serão anulados, pois a condição de presidente da República dos Estados Unidos, assim que assumir em 20 de janeiro de 2025, lhe confere tal prerrogativa.
Se Trump fosse candidato pela primeira vez e não tivesse feito um péssimo governo, alguém poderia argumentar que a população e a mídia desconheciam quem realmente ele é.
Mas não.
Ao final de 2017, seu primeiro ano de governo, o The Washington Posto calculou que ele havia feito 2.140 alegações falsas ou enganosas, uma média de quase 5,9 por dia. Trump mentia sobre absolutamente tudo, desde as investigações sobre a interferência russa nas eleições, passando por sua popularidade e suas conquistas até coisas prosaicas como o tempo em que passava vendo TV.
Ele atacou rotineiramente a imprensa, o sistema de justiça, as agências de inteligência, o sistema eleitoral e os funcionários públicos. No plano externo, atacou a China, interferiu em eleições em países europeus e fomentou golpes ao redor do mundo. Na América Latina que o digam os governos da Venezuela, de Cuba e da Bolívia.
Quatro anos é tempo curto para se esquecer de um dos piores presidentes que os Estados Unidos já teve. Um presidente antidemocrático, negacionista, que tentou desacreditar as vacinas, possibilitou a morte de milhares de pessoas pelo vírus do covid-19 e deixou a economia em frangalhos, ampliando ainda mais o fosso entre ricos e pobres.
A invasão do Capitólio, o Congresso dos Estados Unidos em 6 de janeiro de 2021, convocada por Trump, visava impedir a certificação da vitória eleitoral de Joe Biden. Cinco pessoas morreram e mais de 1500 foram acusadas pela tentativa de golpe.
Como tudo isso pode desaparecer da mente das pessoas? Como Trump conseguiu ser identificado a um salvador, aquele que fará “America Great again”?
Entender essa questão implica lançar mão de conhecimentos da história, da ciência política, da sociologia, mas, sobretudo da psicologia, da psicanálise e da neurociência.
Mesmo após as pessoas assistirem as atrocidades provocadas pelas duas grandes guerras, conhecemos, na atualidade, sujeitos que defendem o retorno de governos fascistas. Nos mais diversos países existem políticos que são favoráveis à intervenção militar, à repressão das massas, ao fim das políticas sociais, ao estado mínimo, à desigualdade de salários entre homens e mulheres, à demissão e perseguição a professores e a todos que fomentem a reflexão crítica.
Tais fatos parecem inexplicáveis se lembrarmos dos extermínios acontecidos durante a Segunda Guerra Mundial ou dos massacres cometidos pela ditadura civil-militar no Brasil. No entanto, para Sigmund Freud (1856-1939), o pai da Psicanálise, a explicação está em possíveis atravessamentos da formação psíquica nas vicissitudes sociais e vice-versa. Vale dizer: os laços pessoais constituem a essência dos laços sociais.
No texto “Psicologia das Massas e Análise do Eu”, de 1921, Freud mostra que não apenas os pais são os idealizados pelo sujeito. A escolha dos líderes aos quais outorgamos autoridade é fruto de uma transferência dos sentimentos e idealizações. Indo além, ele explica como a posição de autoridade do líder, assim como a manutenção dos laços entre os irmãos, exige renúncia à independência, à liberdade de escolhas e à autonomia.
Dito de outra forma, o líder produz uma espécie de efeito hipnótico no sujeito. O que faz com que cada pessoa apresente características dissonantes das que individualmente teria. No meio da massa, o sujeito pode expor a diminuição da capacidade intelectual, as mesmas reações que os demais, a falta de controle emocional e a intensificação das emoções.
A instauração do líder como ideal do ego faz com que cada membro do grupo sacrifique suas pretensões para ter a proteção do pai, a figura do líder ideal.
Em 1950, Theodor Adorno, no livro “A Personalidade Autoritária”, seguindo por esse caminho, buscou estudar o surgimento de uma espécie “antropológica” nova, que ele chamava de “homem autoritário”. Em contraste com o fanático de velho estilo, o homem autoritário combina os ideais e habilidades típicas da sociedade altamente industrializada com crenças irracionais ou antirracionais.
Os textos que compõem seu livro debatem como, em plena Segunda Guerra Mundial, o fascismo não era um episódio isolado, mas estava presente de forma latente em amostras da população estadunidense da época. A base da argumentação é que o autoritarismo mantém relações profundas com o “clima cultural geral” do modo capitalista de organização econômica. Fato que torna essa obra profundamente atual.
A vitória de uma figura como Trump nos obriga a olhar para o contexto mais amplo dos Estados Unidos e daquela sociedade para que possa ser entendida. Entendimento essencial, uma vez que desde agora não falta quem, aqui no Brasil, diga que nas eleições presidenciais de 2026, teremos disputa semelhante.
Ao contrário do que se imagina a grande vitória não coube a Trump, mas à mentira. Ele foi o porta-voz de uma realidade que não mais existe e que não há como restaurar: a posição de potência hegemônica, única, dos Estados Unidos no mundo.
As gerações pós-Segunda Guerra Mundial cresceram ouvindo que os Estados Unidos eram o melhor país do mundo, que lá havia prosperidade como em nenhum outro lugar, que havia liberdade e felicidade para todos. Nos chamados “anos dourados” do capitalismo (1950-1960), esse discurso, propagando pelos líderes políticos e pela mídia tinha alta ressonância na população. Os salários do trabalhador médio eram bons, não havia desemprego e o futuro, comparado aos anos anteriores, se apresentava como próspero.
A vitória do neoliberalismo, representada por Ronald Reagan, em 1981, começou a alterar essa situação. O grande capital estadunidense e internacional entendeu que manter políticas sociais era muito oneroso para os seus interesses. Tinha início o neoliberalismo neoliberal, com o desmonte do “Estado do Bem-Estar Social”, razão de ser dos “anos dourados”.
O fim da União Soviética, em 1991, aos olhos do grande capital passou a ser entendido como o triunfo absoluto do Tio Sam. Não faltou nem mesmo quem, como o filósofo estadunidense Francis Fukuyama, anunciasse que a história havia chegado ao fim. De acordo com ele, a difusão mundial das democracias liberais e do capitalismo de mercado possivelmente sinalizava o fim da evolução sociocultural da humanidade.
A teoria de Fukuyama foi rapidamente absolvida pela mídia corporativa estadunidense e divulgada pelo mundo. Tudo parecia tranquilo se a população não começasse, de forma um tanto lenta, a perceber que a realidade era bem diferente.
As diversas guerras em que a Casa Branca se meteu custavam caro, os ataques terroristas em 11 de setembro de 2001 jogaram por terra a certeza de que o país era inexpugnável e os cortes sociais tornaram a vida das camadas pobres e dos setores médios pior a cada dia.
Barack Obama conseguiu, num primeiro momento, restabelecer parte do sonho americano. Mas seu segundo governo foi um fracasso de tal monta, que um aventureiro como Trump conseguiu se eleger. Para a vitória de Trump pesou muito o avanço da China como grande potência mundial, eleita por ele como inimigo número um, e o declínio das condições de vida e trabalho da maioria da população estadunidense.
A mídia corporativa brasileira não mostra, mas em cidades como Los Angeles e Nova York existem enormes cracolândias, com pessoas vagando pelas ruas ou vivendo em improvisadas barracas. Mais de 40 milhões de pessoas são pobres nos Estados Unidos, não há saúde pública gratuita para todos e chega à universidade só quem pode pagar.
A automação de inúmeras atividades jogou parte da mão de obra no desemprego, os jovens não conseguem trabalho e lhes falta esperança de que possam vir a ter uma vida sequer igual a dos seus pais.
A mídia corporativa, que é parte da indústria cultural, por razões óbvias, nunca quis tematizar a fundo essas questões. É mais fácil e conveniente jogar a culpa pelo que passou a acontecer na ascensão da China e nos imigrantes ilegais latino-americanos. Imigrantes, é bom que se diga, sem os quais a economia dos Estados Unidos entrará em colapso.
Mas foi com esse discurso que Trump chegou ao poder e é com esse mesmo discurso que ele retorna à Casa Branca. Nem precisou alterar o slogan de campanha.
O nazismo e o fascismo chegaram ao poder pelo voto. O nazismo durou 12 anos, período em que Adolf Hitler e o seu partido controlaram o governo da Alemanha. O fascismo durou um pouco mais, com Benito Mussolini assumindo o poder em 1922 e lá permanecendo até ser executado por resistentes antifascistas em 1945.
Sobretudo o nazismo soube se valer muito bem da mídia de então, com destaque para o papel do rádio e do cinema como formas de propaganda para Hitler obter e manter o apoio das massas. Hitler teve até uma cineasta preferida, Leni Riefenstahl, que representou em seus filmes a estética nazista.
Esse assunto está bem discutido no filme “Arquitetura da Destruição”, do sueco Peter Cohen, lançado em 1989, onde é mostrada a relação de Hitler e de seus mais próximos colaboradores com a arte. Se observado por este aspecto, Trump ou mesmo Bolsonaro são até piores. Nenhum dos dois tem, teve ou pretende ter qualquer relação com a arte e com a cultura. Ambos se orgulham da própria ignorância, fazem pouco do sofrimento alheio, negam a ciência, cultivam a violência e fizeram péssimos governos.
Como então explicar que Trump tenha obtido essa vitória retumbante e Bolsonaro, mesmo inelegível e prestes a ser indiciado por uma série de crimes, ainda conte com legiões de apoiadores?
Não existe uma só explicação. Mas todas convergem para o papel central que a mídia teve e tem nesses processos.
É a mídia que, ao mostrar acriticamente as ações de líderes extremistas de direita, acaba provocando identificação das pessoas para com eles.
Nos Estados Unidos, onde a massa sempre se viu próspera e vivendo no país dos sonhos dourados, Trump, com sua riqueza, suas proezas, seu machismo, sua falta de limites encarna esse ideal, especialmente quando o mocinho Tio Sam está sendo confrontado pelos “bárbaros amarelos” e pelo “lixo” representado pelos imigrantes latino-americanos.
Trump se torna assim o “salvador da pátria”, aquele que representa o ideal dos “pais fundadores”, aquele que vai fazer os Estados Unidos poderosos de novo. Detalhe: do alto de sua prepotência, os estadunidenses se denominam americanos, como se todos nós, na América do Sul e na América Central não fossemos americanos.
Ao contrário de mostrar como o mundo está em profunda mudança, como a hegemonia estadunidense encontra-se profundamente abalada, como já existem vários centros de poder, como o BRICS é uma realidade e como a emergência dos países do Sul Global torna-se incontestável, a mídia corporativa nos Estados Unidos e também a daqui esconde a realidade.
Ambas querem manter um mundo que já não existe, mas conveniente aos interesses de quem a controla.
A vitória de Trump tem muito a ver com a conivência da mídia corporativa de seu país. Grandes jornais, que em outras épocas tiveram papel destacado nas eleições, como The New York Times e The Washington Post, lavaram as mãos.
Desde 2013, quando o bilionário Jeff Bezos comprou o The Washington Post, o jornal vem retraindo sua postura. Historicamente identificado com os democratas, a publicação limitou-se a divulgar, três semanas antes do 6 de novembro, pesquisa elaborada por acadêmicos que apontava que na rede social X, ex-Tuitter, de propriedade do bilionário Elon Musk, as postagens dos republicanos tinham muito mais visibilidade que as dos democratas.
Numa disputa acirrada como foi esta, a única explicação é de que Musk determinou que os responsáveis pelos algoritmos determinassem sombra para as postagens dos democratas e potencializassem as dos republicanos.
Musk colocou sua rede social a serviço de Trump e distribuiu cheques de um milhão de dólares para quem conseguisse mais votos para o seu candidato. Não por acaso, uma eleição que mais se assemelhou a um programa de televisão dificilmente seria vencida por alguém que não fosse o comandante do reality show “O Aprendiz”.
O X e as demais redes sociais foram, na prática, as grandes vitoriosas neste processo. Seus proprietários, todos bilionários do Vale do Silício, não querem nem ouvir falar em regulação para as big techs e suas plataformas. Trump os atende perfeitamente, pois seu conceito de liberdade de expressão é passe livre para todo tipo de discurso de ódio e prevalência da lei da selva. Só que isso se choca com o papel atribuído tradicionalmente pela mídia a si mesma.
Daí, a pergunta que se coloca é: até quando a convergência entre os interesses da mídia tradicional e das big techs coincidirá?
Não resta dúvida de que a vitória de Trump assanhou a extrema-direita em todo o mundo. Não falta quem preveja tempos difíceis para a Europa, para a China e, sobretudo, para o Brasil.
Bolsonaro vai tentar seguir os passos de Trump, mas dificilmente terá sucesso. Não há como deixar de ser julgado pelos diversos crimes que cometeu. No caso da tentativa de golpe de estado, em 8 de janeiro de 2023, sua situação se torna cada dia mais complicada.
Na última sexta-feira, por exemplo, veio a publico a informação de que era parte dos planos dos golpistas monitorarem a segurança do presidente Lula e do ministro do STF, Alexandre de Morais, e capturá-los. Como a informação consta de conversas do ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, recuperadas pela Polícia Federal, não há como excluir militares de alta patente destes planos.
A mídia corporativa brasileira não deu destaque ao assunto e segue no propósito de acuar Lula e o seu governo. O objetivo é enfraquecer de tal forma a atual administração, que Lula desista de disputar a reeleição e não consiga, sequer, fazer seu sucessor, abrindo espaço para um possível retorno da extrema-direita ao poder.
A pressão sobre Lula tem sido tão grande, que esta mídia considera absolutamente normal o Banco Central, nas mãos do bolsonarista Roberto Campos Neto, elevar, na última quarta-feira, no apagar das luzes de sua gestão, a taxa de juros a 11,25%, a segunda maior do mundo. Como se isso não bastasse, ainda pressiona o governo a fazer cortes de gastos em programas sociais, em nome de uma suposta crise fiscal.
Lula tem resistido. Há dias tais cortes estão em discussão com os ministros, mas ele não se mostra convencido. Cortar gastos sociais terá um péssimo impacto junto à opinião pública, em especial os mais pobres, mesmo a economia indo bem e o nível de emprego chegando a patamares próximos do pleno emprego.
Nos dias atuais – e a eleição nos Estados Unidos deixou isso claro – não basta a economia ir bem. É preciso que as pessoas se sintam confortáveis e confiantes em relação ao futuro.
A mídia corporativa tem sabido como tirar proveito do medo e da insegurança das massas. Basta observar as manchetes dos principais jornais brasileiros ou as notícias em destaque nos telejornais.
Por isso é preciso muita atenção ao que tem dito o neurocientista Miguel Nicolelis. Dividindo seu tempo, há mais de 30 anos, entre o Brasil e os Estados Unidos, ele avalia que a população daquele país foi levada a viver uma espécie de distopia, que tem a ver com seus sonhos frustrados. Num contexto de insegurança, quem aparece prometendo restaurar um passado grandioso e idílico, mesmo que irreal, tende a sair vitorioso, independente dos absurdos que fale ou prometa.
Nicolelis está certo também quando diz que não adianta o governo brasileiro querer tapar o sol com a peneira e acreditar que Trump não tentará interferir na nossa política e o que aconteceu nos Estados Unidos não terá reflexos aqui. Daí acreditar que o momento deve ser de muita reflexão e de ação por parte de Lula.
As mentiras são poderosas, mas podem, devem e precisam ser confrontadas com a verdade.
Passou da hora de o governo Lula ter uma efetiva política de comunicação e contar para a população o que está acontecendo.
Está passando da hora dos movimentos sociais e setores progressistas se mobilizarem e voltarem às ruas.
O governo Lula e a sociedade brasileira podem tirar importantes lições do que aconteceu nos Estados Unidos e evitar que aqui as fake news prevaleçam.