Ângela Carrato – Jornalista. Professora da UFMG. Membro do Conselho Deliberativo da ABI

 

Quase dezoito minutos. Esse foi o tempo que o Jornal Nacional, da TV Globo, dedicou em suas edições diárias, na semana passada, aos assuntos ligados às tentativas de golpe de estado no Brasil em 2022 e 2023.

Na quarta-feira, o noticiário da família Marinho não poupou esforços para detalhar o plano descoberto pela Polícia Federal para matar o então presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, seu vice Geraldo Alckmin, e o ministro do STF Alexandre de Morais.

Na quinta-feira foi a vez de cobrir, com riqueza de detalhes, o pedido que a mesma Polícia Federal fez para que sejam indiciadas outras 37 pessoas acusadas de atentarem contra o estado de direito no Brasil, a começar pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, pelos generais Augusto Heleno e Braga Netto, e pelo presidente do Partido Liberal (PL), Waldemar da Costa Neto.

Essas coberturas seriam perfeitas se não fosse o fato de uma semana antes, o mesmo JN descaradamente passar pano para o ato terrorista acontecido em Brasília, quando o bolsonarista, Francisco Wanderley Luiz, tentou explodir a sede do STF e, se tivesse tido oportunidade, matar o ministro Morais. Apesar da gravidade, repórteres e âncoras do JN preferiram dizer, mesmo diante de todas as evidências contrárias, que se tratou da ação de um “lobo solitário”.

Esta narrativa continuou predominando mesmo depois da ex-esposa do “lobo solitário” ter incendiado a oficina dele, na cidade de Rio do Sul, em Santa Catarina, onde moram.

Francisco Wanderley morreu na hora, vítima de um dos explosivos que detonou. Já sua ex-esposa está no hospital, com queimaduras por todo o corpo.  Assim que tiver condições, terá muito que falar, pois sua ação foi classificada pela PF como “queima de arquivos”.

O que levou a essa guinada de 180 graus por parte do Jornal Nacional, principal noticiário da TV brasileira, que até então se recusava a designar os golpistas como tal?  Mais ainda: será que finalmente o JN e o grupo Globo, do qual é parte, desembarcaram do apoio e sustentação a golpes contra governos progressistas em nosso país?

Não é novidade para ninguém minimamente informado que o grupo Globo foi fundamental para o suicídio de Getúlio Vargas em 1945, a deposição de João Goulart, em 1964, o golpe contra Dilma Rousseff em 2016, a prisão, sem provas, de Lula por 580 dias, em 2018, a eleição e quase reeleição de Bolsonaro, em 2022.

Como a descoberta dos planos dos golpistas, as prisões e os indiciamentos são recentes e envolverão muitos e delicadíssimos desdobramentos, qualquer previsão sobre como se comportará o grupo Globo é temerário, mas alguns indícios já se fazem visíveis.

A nova postura do grupo Globo pode ser explicada tanto pela conjuntura internacional, mais especificamente a partir da vitória de Donald Trump nos Estados Unidos, quando pelo que acontece aqui no país.

A TV Globo só foi criada graças à relação de Roberto Marinho com empresários e o próprio governo dos Estados Unidos.

O surgimento da emissora, nos idos de 1965, se deveu ao acordo com o grupo Time-Life. Mesmo ferindo gravemente a legislação brasileira – que proibia recursos externos e especialistas estrangeiros na direção de empresa de comunicação – os militares recém-chegados ao poder, decidiram arquivar as conclusões da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que apontavam para a cassação da concessão da emissora.

Os militares mantiveram a concessão da TV Globo e ela, por sua vez, passou a divulgar as “maravilhas do regime”.  Os dois lados se beneficiaram: o grupo Globo cresceu e se tornou poderoso e os militares permaneceram 21 anos no poder.

Nem os governos da Nova República, o período pós-ditadura que teve início em 1985 e segue até os dias atuais, se mostraram dispostos a enfrentar o poder deste grupo.

Não por acaso, os veículos da família Marinho foram os últimos a desembarcar do apoio aos militares, mesmo quando o clamor das ruas por eleição direta para presidente se fazia presente.

Já se tornou um clássico do anti-jornalismo brasileiro a cobertura que o JN fez do comício das diretas-já, na Praça da Sé, em São Paulo, em 1984. Apesar de o comício ter reunido mais de 300 mil pessoas para manifestar apoio à eleição direta, a cobertura da Globo não só reduzir a dimensão do evento, como tentou confundi-lo com o aniversário de 430 anos da capital paulista.

Se essa foi uma gravíssima mentira contra a luta pela redemocratização, não foi a única. O grupo Globo escondeu todas as manifestações populares pela redemocratização do Brasil.

Tal atitude teve custo elevado para a imagem da emissora. Nessa época foi cunhado o slogan “O povo não é bobo, abaixo da Rede Globo”, que voltou a ser utilizado contra ela em anos recentes, para denunciar sua participação nas mentiras que levaram à derrubada de Dilma, à prisão de Lula e a vitória manipulada de Bolsonaro em 2018. Bolsonaro só venceu, porque Lula, que liderava todas as pesquisas de opinião, foi impedido de concorrer e toda a mídia aderiu acriticamente à mal contada história da facada em Bolsonaro.

Os veículos do grupo Globo minimizaram e praticamente esconderam esses fatos. Lula, por exemplo, nunca foi ouvido durante todo o tempo em que foi acusado sem provas. O combate a ele se estende ao seu terceiro governo, com a família Marinho vindo dando voz e vez a todos que desejassem criticar seu governo.

Daí não faltar nem mesmo quem questione se o Globo chegou realmente a desembarcar do apoio aos golpistas. Se em 2013, em editorial, o grupo admitia esse apoio ter sido “à luz da história um equivoco”, quatro anos depois estava de novo mergulhado na campanha pelo golpe, travestido de impeachment, contra Dilma. Não por acaso, este golpe é definido como parlamentar, jurídico e midiático. Mais recentemente soube-se também da ativa participação nele de militares ligados à ditadura implantada em 1964.

Jornais como o Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo optaram por desembarcar do apoio aos militares antes mesmo da vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, em 1985. O autodenominado “Estadão” foi dos primeiros a denunciar a censura prévia que passou a vigorar no país através da publicação de versos de Camões e receitas de bolo nos seus espaços censurados.

Já a Folha de S. Paulo, que havia emprestado, nos anos 1970, carros e kombis para militares do DOI-CODI transportarem presos políticos torturados sem levantar suspeitas, decidiu se reposicionar.  Foi assim que a publicação assumiu, depois da derrota da emenda Dante de Oliveira, que propunha o retorno das eleições dietas para presidente, a defesa da democracia.

Posição que para muitos não passou de mera jogada de marketing.

Seja lá como for, as posições agora parecem se inverter.

Controlado por mercado financeiro e com a família Mesquita apenas como figurante em seu expediente, o “Estadão” tem se colocado como adversário do PT, de Dilma e Lula desde sempre e flerta abertamente com extremistas de direita como o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas.

O caso mais grave, no entanto, tem sido o da Folha, que, há poucos dias, publicou o artigo de Bolsonaro “Aceitem a democracia” (!) e como se isso não bastasse, ainda fez entre seus leitores uma enquete para saber a receptividade que a anistia para os “envolvidos nos atos” de 8 de janeiro de 2023 poderia ter.

Nem as recentes descobertas dos planos envolvendo assassinatos parecem alterar a disposição da Folha para criticar Alexandre de Morais e colocar o STF sob suspeita para julgar os envolvidos nesta trama.

A Folha, aliás, tem se pautado por criticar o ministro Alexandre de Morais, fazendo coro com o próprio Bolsonaro e os bolsonaristas mais exaltados. Por isso, dos veículos corporativos brasileiros, sem dúvida ela é a que, no momento, se posiciona mais à extrema-direita, sem  compromisso com os fatos, com a seriedade e com a democracia.

Não que a postura do grupo Globo tenha sido diferente no passado e até dias atrás.  Mas os indícios de mudança, como já apontados, não devem ser descartados.

Apesar de o procurador-geral da República, Paulo Gonet, só no início de 2025 se posicionar sobre os pedidos, com fartas provas, de indiciamento de Bolsonaro e dos demais 36 acusados de articularem e incitarem golpes contra o estado de direito, a batalha na mídia entre os que defendem a “anistia” e os que querem que os culpados sejam julgados já começou.

Dificilmente Gonet terá como não aceitar tais indiciamentos e dar início ao processo. No caso de Bolsonaro, este se somará a outros dois indiciamentos envolvendo adulteração de cartões de vacina e o roubo das joias sauditas.

A Polícia Federal continua trabalhando e espera-se para breve também o pedido de indiciamento para políticos e parlamentares que participaram da trama golpista e para empresários que financiaram essas ações. Da mesma forma que um modesto cidadão como o terrorista que se explodiu na semana passada não teria condição para fazer o que fez sozinho, o mesmo pode ser dito dos que destruíram a Praça dos Três Poderes e dos  integrantes dos acampamentos em frente aos quarteis. Quem os financiou?

O esclarecimento do que se passou nos últimos anos está apenas começando.

A mídia corporativa, se quiser, pode ter um importante papel neste processo. Pode também, como fez nas últimas décadas, jogar tudo para debaixo do tapete e tentar seguir em frente.

Daí ser fundamental acompanhar como ela se comportará.  É preciso observar, por exemplo, se o grupo Globo vai manter a posição dos últimos dias, que é correta, ou se tenderá a ir ajustando-a a partir de interesses próprios, que não são os da maioria da população brasileira.

Dois importantes fatores parecem favorecer a postura atual no grupo Globo: sua estreita relação com os políticos democratas derrotados por Donald Trump nos Estados Unidos e a oportunidade histórica para romper com a pecha de “apoiar golpistas”.

Ao contrário do otimismo dos bolsonaristas para com Trump, convencidos de que o presidente dos Estados Unidos, que toma posse em 20 de janeiro, poderá desempenhar um importante papel para uma eventual anistia a Bolsonaro, o partido Democrata e a Globo possuem avaliação diferente.

Para eles, Trump, mesmo sendo um extremista de direita, criará e estará metido em tantos problemas que não sobrará tempo e nem disposição para se envolver com o Bolsonaro.  A expectativa é que a administração Trump comece em clima de guerra, se ele tentar cumprir a promessa de deportar todos os imigrantes ilegais no país, em sua maioria latino-americanos. Some-se a isso que terá dificuldades extras em função da equipe que está montando, bem fora dos padrões, em especial no caso do comando militar e de agências de segurança.

Se, no passado, golpistas e torturadores brasileiros foram anistiados e a impunidade gerou monstros que continuam nos aterrorizando, julgar e condenar com penas severas todos que atentaram contra a democracia pode ser uma oportunidade única para passar o Brasil a limpo.

Até porque são nítidas as conexões dos golpistas de hoje com os de 1964 e a impunidade ou punições brandas apenas os fortalecerá.