A conclusão do Memorial dos Direitos Humanos no prédio do antigo Departamento de Ordem Política e Social de Minas Gerais (DOPS-MG), localizado na Avenida Afonso Pena, em Belo Horizonte, e o fim do cerco promovido pela Polícia Militar ao local, foram as principais reivindicações de movimentos sociais, pesquisadores da UFMG e autoridades durante audiência pública da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). A ocupação do prédio, iniciada em 31 de março, motivou o debate realizado no Parlamento mineiro.

As deputadas Bella Gonçalves (PSOL) e Andréia de Jesus (PT), respectivamente presidenta e vice da comissão, estiveram no DOPS em visita técnica junto à deputada Beatriz Cerqueira (PT) e ao deputado Betão (PT). Após ouvirem os relatos dos ocupantes e testemunharem o estado de abandono da estrutura, os parlamentares decidiram convocar a audiência conjunta.

Renato Campos Amaral, coordenador nacional do Movimento Luta de Classe e membro do Partido Comunista Revolucionário (PCR), relatou que, ao entrarem no prédio, os ativistas encontraram o local tomado por sujeira, ratos e morcegos. “O espaço era escuro, frio, úmido, um ambiente que nos fez imaginar o sofrimento dos presos políticos durante a ditadura”, afirmou. Os militantes fizeram a limpeza, nomearam as salas e celas com nomes de perseguidos políticos e organizaram o prédio para visitas. Também encontraram três carros novos abandonados, com pneus vazios, no pátio. “Queremos saber por que o governo Zema não explica o abandono das obras e desses veículos”, questionou.

Renato reivindicou três ações principais: a retomada imediata das obras e inauguração do memorial, a gestão compartilhada com participação da sociedade civil e o fim da presença policial no local, iniciada no dia 2 de abril. Para ele, o cerco representa uma tentativa de desmobilização e repressão simbólica ao movimento.

Durante a audiência, Oraldo Soares Paiva, da Comissão da Verdade dos Trabalhadores de Minas Gerais (Covet), criticou a ausência de uma justiça de transição efetiva no país. Segundo ele, os torturadores da ditadura militar não foram punidos e o Estado segue inerte. “As famílias dos generais permanecem amparadas. Não é coincidência que o memorial esteja sendo negligenciado”, afirmou. Oraldo também lembrou que, embora o DOPS de São Paulo tenha se tornado um memorial, os movimentos sociais não foram ouvidos no processo. Para ele, a ocupação mineira é um ato legítimo e necessário: “É preciso acabar com o cerco ao prédio para que a participação popular seja respeitada”.

Everson de Alcântara Tardeli, representante da sociedade civil no Conselho Estadual de Direitos Humanos (Conedh/MG), destacou que o DOPS era palco de ações do conselho, inclusive com visitas escolares organizadas junto à Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social até o ano passado. “Agora, isso morreu. Por isso apoio essa ocupação pacífica e organizada. Já é um memorial, com segurança para os visitantes. É necessário encerrar o cerco policial”, declarou.

Everson ainda ressaltou que o trabalho do Conedh vai além da memória histórica. Segundo ele, o conselho tem recebido inúmeras denúncias de tortura em unidades prisionais mineiras. “Nossa atuação também alerta para a continuidade de práticas abusivas no presente.”

Pesquisadores da UFMG explicaram o andamento do projeto encomendado pelo governo estadual à universidade em 2020. Letícia Julião, coordenadora institucional do projeto, afirmou que a proposta se baseia em registros das Comissões Nacional e Estadual da Verdade, com entrevistas de vítimas e familiares da ditadura. Além disso, a UFMG realizou a primeira escavação em um centro de detenção no Brasil, recolhendo materiais de relevância histórica em seis pontos do prédio.

Letícia explicou que o conceito museológico elaborado para o espaço considera o prédio como um sítio de memória traumática, e defendeu que qualquer outro projeto deve seguir essas diretrizes. “O governo não é obrigado a executar o projeto da UFMG, mas se o fizer com outro modelo, precisa respeitar o caráter histórico. Do contrário, será uma tentativa de apagar a memória da violência institucionalizada”, afirmou.

A professora e arquiteta Gabriela Machado, também da UFMG, responsável pela proposta arquitetônica do memorial, disse que foram definidos percursos de visitação guiados por vítimas da repressão que estiveram no local. Segundo ela, as intervenções físicas no prédio devem ser mínimas, para preservar as marcas das torturas e das celas. A proposta da universidade inclui ainda a derrubada dos muros do DOPS e a transformação do estacionamento em praça pública, aberta a debates e atividades coletivas.

A arquiteta Marina Gabrielle Quintiliano, da Subsecretaria de Política de Habitação da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese), afirmou que as obras estruturais e de acessibilidade do prédio devem ser concluídas até 2026, com base no projeto da UFMG. Segundo ela, a retomada da iniciativa se deu em 2019, com a criação de um grupo de trabalho formado pela universidade. O estudo foi finalizado em 2021 e, posteriormente, uma licitação foi aberta para executar o projeto, mas não houve empresas interessadas.

Desde 2022, de acordo com Marina, têm sido realizados reparos nos sistemas hidráulico e elétrico. Mais de oitocentos e setenta e dois mil reais já foram investidos nessas melhorias. Ela reafirmou o compromisso da Sedese com a preservação histórica do edifício e anunciou que fóruns de diálogo serão realizados para discutir a implantação do memorial, com a participação de movimentos sociais e outras entidades.

Sobre os veículos encontrados no pátio do DOPS, Marina explicou que pertencem à Assistência Social e não foram entregues aos municípios devido à entrada no período eleitoral em 2023, o que impediu a distribuição conforme a legislação.

O procurador Ângelo Giardini de Oliveira, adjunto regional dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal em Minas Gerais, relatou que foi aberto um procedimento no MPF para acompanhar a implantação do memorial. Ele já se reuniu com representantes dos movimentos sociais e solicitou informações à Sedese sobre as dificuldades encontradas, a situação do projeto e as orientações repassadas à Polícia Militar. Giardini aguarda o retorno do governo estadual para decidir os próximos passos do Ministério Público.

Encerrando a audiência, a deputada Bella Gonçalves propôs a criação de um comitê com representantes da Sedese, dos movimentos sociais e dos Ministérios Públicos Estadual e Federal para monitorar a execução do projeto. A ideia é que o grupo seja formalizado por meio de portaria. A parlamentar também exigiu o fim imediato do cerco policial ao prédio do DOPS.

A deputada Beatriz Cerqueira afirmou que a realização da audiência foi o mínimo que o Parlamento poderia fazer diante da omissão do Estado. Ela, que destinou emendas parlamentares ao projeto, frisou que os recursos são importantes, mas não substituem o papel da política pública. “Preservar a memória é um dever do Estado, não um favor aos movimentos sociais”, concluiu.

Com o avanço do debate público e o compromisso assumido por representantes da sociedade civil, pesquisadores e parlamentares, o impasse em torno do DOPS parece ganhar novos contornos. A mobilização popular reafirma a urgência de transformar o local símbolo da repressão em espaço de memória, justiça e reflexão coletiva.

Foto: Willian Dias


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