Por Vasconcelo Quadros

O Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema) teria fechado os olhos para uma série de irregularidades ambientais e permitido que grandes empresários do agronegócio desmatassem, entre 2015 e 2021, mais de 50 mil hectares de vegetação nativa de cerrado no Oeste do Estado, entre as bacias dos rios Grande e Corrente, afetando a vida de uma população tradicional estimada em mais de 600 mil pessoas distribuídas em 31 municípios do Matopiba, região conhecida como nova fronteira agrícola na divisa entre Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.

A denúncia é resultado de um projeto inédito intitulado “Desvendando as A.S.V do Cerrado Baiano”, com o cruzamento de dados oficiais e análise sobre milhares de portarias expedidas pelo órgão oficial ambiental estadual (Inema) autorizando o desmatamento. No relatório, ao qual a Agência Pública teve acesso exclusivo e que será lançado amanhã, estão envolvidos o Instituto Mãos da Terra (Imaterra), a Universidade Federal da Bahia (UFBA), a WWF-Brasil, o Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e Observatório do Matopiba.

O levantamento lista pelo menos 21 tipos de irregularidades que estão em inconformidade com normas ou afrontam as leis ambientais e que não teriam sido levadas em conta pelo Inema ao conceder a chamada Autorização de Supressão de Vegetação (ASV) a 16 grandes fazendas produtoras de grãos na região. Informações retiradas das portarias de concessão, das declarações dos empreendedores e estudos de campo demonstram, segundo as entidades, que o Inema não só teria adequado a legislação estadual para atender o agronegócio como também teria ignorado as leis federais, numa sucessão de irregularidades que podem, segundo o estudo, ser caracterizadas como crimes ambientais.

A bióloga Margareth Peixoto Maia, do Imaterra, que coordenou o pente fino nas ASVs, afirmou à Pública que o resultado das análises mostra que o Inema não está considerando de forma rigorosa e adequada os requisitos previstos como obrigatórios na legislação ambiental em casos de supressão de vegetação nativa, além de descumprir a lei de transparência ao limitar às entidades o acesso a informações e documentos públicos sobre o desmatamento.

O levantamento avaliou inicialmente 5.126 portarias de Autorização de Supressão de Vegetação emitidas pelo órgão de controle entre 2007 e junho de 2021 para todos os biomas da Bahia, das quais 1.051, ou 21% do total, estão relacionadas ao Oeste do Estado, exatamente a região onde hoje se concentra a força do agronegócio no Matopiba. Desse conjunto, os técnicos selecionaram 535 portarias publicadas entre janeiro de 2015 e junho do ano passado. No final, a análise se concentrou em 26 processos sobre os quais havia informações mais precisas de coordenadas geográficas das propriedades com indícios de irregularidades e desses, concluiu-se que pelo menos 16 fazendas cometeram irregularidades em série, sem que fossem cobradas ou ao menos alertadas pelo órgão ambiental.

Agronegócio desmatou, entre 2015 e 2021, mais de 50 mil hectares de vegetação nativa no Oeste Baiano

As irregularidades, segundo o levantamento

As mais graves irregularidades, consideradas como crimes ambientais em outros estados, estão relacionadas a concessão de Autorização de Supressão de Vegetação sem aprovação de reserva legal e registro no Cadastro Estadual Florestal de Imóveis Rurais (Cefir); Áreas de Preservação Permanente (APP) declaradas incorretamente ou simplesmente não declaradas, algumas delas desmatadas e degradadas, mas sem constar no pedido do empreendedor; falta de inventário florestal sob a justificativa de ausência de vegetação cujas imagens de satélite e fotos da área mostram existir nas propriedades. Nesse quesito, outra constatação considerada grave é a apresentação de inventário referente à área diferente daquela sobre a qual o proprietário solicita a Autorização de Supressão de Vegetação e listagens citando espécies vegetais que sequer existem nos biomas brasileiros; outra infração comum é a ausência de plano de afugentamento e salvamento da fauna, o que resultou em um dos casos, em operações com o uso de cães de caça — terminantemente proibido — e sem a definição de estabelecimentos de tratamento de animais feridos durante a operação.

Segundo o Imaterra, o Inema não só deixou de exigir uma série de documentos previstos em leis, como permitiu o desmatamento sem que fossem apontadas as medidas mitigadoras. O órgão ambiental também deixou de analisar de forma adequada o impacto do desmatamento e o potencial de conflitos nas comunidades afetadas, essas já restringidas nas suas atividades básicas, como a criação de gado e o extrativismo, e o direito de ir e vir.

Com base no levantamento, a Pública fez um ranking, hierarquizando, pelo tamanho das áreas desmatadas, a participação de cada um dos empreendimentos no total de desmatamento de 50.723,99 hectares de vegetação nativa, o equivalente a uma área superior a 51 mil campos de futebol — que simplesmente desapareceram da paisagem do cerrado baiano.

No topo está a propriedade da Delfin Rio S/A Crédito Imobiliário, controladora de uma das fazendas do Condomínio Estrondo, em Formosa do Rio Preto, que teria derrubado quase a metade do total, exatos 24.732 hectares de vegetação nativa do cerrado na bacia do Rio Grande. Em seguida vêm Santa Colomba, 4.986,61, a única das 16 que, localizada na bacia do Rio Carinhanha, foi incluída no levantamento pela relevância de um sério conflito fundiário entre comunidade e empreendedores.

As três fazendas com maior área desmatada na região, Delfim, Santa Colomba e Tamarama, são também aquelas que teriam infringido as legislações nacional e estadual — duas leis, dois decretos e oito portarias e normas de proteção social e do meio ambiente em cima das quais foram analisadas as Autorizações de Supressão de Vegetação.

A Delfin, que integra o Condomínio Estrondo, de mais de 300 mil hectares, segundo o estudo, teria cometido 13 irregularidades e conseguido uma ASV sem que tivesse aprovado a reserva legal da propriedade. As portarias, dizem as entidades, são uma síntese do tratamento privilegiado do Inema aos grandes do agronegócio. A Delfin foi analisada também em outro relatório específico produzido pelo Imaterra. Nele consta que a empresa não teria informado que a área solicitada tem 236,2 hectares de APP, não teria apresentado plano de reserva legal, teria ignorado áreas desmatadas não usadas, e outras degradadas que não foram recuperadas e não teria feito qualquer referência a existência de sítios arqueológicos próximos a propriedade. A empresa também não teria apresentado informações adequadas sobre os potenciais impactos socioambientais decorrentes da perda de biodiversidade ou do comprometimento de recursos hídricos e do clima. O inventário florestal apresentado pela Delfin, segundo a análise, não fez referência à presença de vegetação cujo corte é proibido, uma estratégia para, segundo o estudo, se desviar da obrigação de adotar medidas compensatórias. O Inema, que tem a obrigação de seguir a lei, aceitou a prorrogação da Autorização de Supressão de Vegetação por seis anos sem pedir qualquer estudo novo, mesmo diante de informações incompletas ou defasadas sobre fauna e flora.

O estudo do Imaterra alerta também que a empresa teria gerado uma relação crítica com as comunidades tradicionais de Cachoeira, Marinheiro, Cacimbinha, Gatos e Aldeia, no entorno da Fazenda Estrondo, onde vivem várias gerações. A área é palco de sucessivos conflitos gerados pela sobreposição do desmatamento autorizado em territórios dessas comunidades tradicionais. Em conflito permanente com o empreendimento, os moradores sofrem restrições no ir e vir, impactos ambientais, e aguardam pela regularização de seu território por meio da ação discriminatória que está em curso.

Segundo o Imaterra, o Inema deixou de analisar de forma adequada o impacto do desmatamento na região

A segunda que mais desmatou, com um total de 4.986 hectares, a Santa Colombo, teria cometido oito infrações à luz da legislação. Lá o Imaterra encontrou 73,38 hectares de APP não declaradas, áreas degradadas — o que por si só, de acordo com Código Florestal, impossibilitaria a concessão de ASV —, inventário florestal com espécie desconhecida e sem registro no país, além de prejuízos ao modo de vida dos “geraizeiros“, com a interrupção de acesso às áreas de extrativismo e de soltura do gado.

A Fazenda Tamarana, com 2.884 hectares desmatados, teria incorrido em nove irregularidades, segundo o levantamento. Além de conseguir a concessão da Autorização de Supressão de Vegetação sem aprovação da reserva legal, a empresa informou uma área de compensação localizada a 90 quilômetros da propriedade, se sobrepondo a posse de uma comunidade tradicional da localidade de Capão Modesto, onde moram 60 famílias que vivem da criação de gado e extrativismo e agora, caso a reserva legal declarada seja mantida na ASV, ameaçada de expulsão de suas terras.

A Tamarana também não teria encaminhado estudos de impacto ambiental e apresentou inventário florestal com erros na análise de compensação e de reposição florestal ao deixar de informar a existência de espécies de árvores em extinção. No plano de afugentamento da fauna não há sequer a indicação de instituição habilitada a receber animais feridos ou mortos durante a operação, executada por pessoas não habilitadas ao manejo, como exige a legislação.

O estudo indica, segundo Margaret Peixoto Maia, que nos municípios afetados pela massiva concessão de autorizações de desmatamento irregular o PIB per capita, o IDH e as desigualdades pioraram, ou seja, as commodities soja, milho e algodão destinados à exportação, resultado da onda de expansão da nova fronteira agrícola do Oeste Baiano, enriqueceu apenas os mais ricos. O quadro é agravado pelos passivos ambientais, impactos no clima, nos recursos hídricos, como já mostrou o especial “Os privilegiados com a água do Cerrado Baiano”, da Pública, no ano passado, e nos conflitos fundiários envolvendo povos tradicionais e empreendedores numa região marcada também pela grilagem de terras sustentada pela leniência do governo e corrupção no judiciário.

Desmatamento reflete no clima e na falta de recursos hídricos, impactando comunidades locais

Operação Faroeste

Em dezembro de 2019, Polícia Federal e Ministério Público Federal desencadearam a chamada Operação Faroeste, por meio da qual desvendou-se uma azeitada máquina de fraudes na grilagem de terras devolutas no Matopiba, perpetuadas com a conivência do judiciário. O escândalo derrubou a cúpula do Tribunal de Justiça da Bahia, levou desembargadores para a cadeia e deixou escancarado que grandes empreendimentos do agronegócio se estruturaram no Oeste Baiano tendo como alavanca um dos mais arrojados esquemas de fraudes fundiárias já descobertos no país.

“Ao ignorar a legislação ambiental, o governo da Bahia converteu o desmatamento numa política pública de Estado. Os sinais disso estão na mudança da legislação ambiental — como o fim da exigência do licenciamento ambiental e da reserva legal —, no modus operandi que menospreza proibições previstas na legislação estadual e no fato de que quase 100% do desmatamento ter sido executado com autorização do governo estadual”, afirma a bióloga Margareth Peixoto Maia. Segundo ela, em outros estados, mesmo onde o agronegócio representa a força principal da economia, infrações à legislação ignoradas pelo Inema caracterizam crime de desmatamento ilegal.

As entidades estão preocupadas com um provável avanço descontrolado do desmatamento no Estado em decorrência da farra de concessões de Autorização de Supressão de Vegetação. Em outro trabalho coordenado por Margareth Maia, esse envolvendo toda a superfície do Estado, o Imaterra e a UFBA analisaram mais de 4 mil portarias de ASVs, publicadas pelo governo estadual entre janeiro de 2010 e julho de 2020, e concluíram que as autorizações resultaram no desmatamento de mais de 800 mil hectares, o equivalente a 26,4 vezes a área territorial continental do município de Salvador. Para efeito de comparação, ela cita o caso de Mato Grosso, maior produtor de grãos do país, que emitiu, entre 2009 e 2018, 580 ASVs.

Quase a totalidade da supressão de vegetação nativa ocorrida no estado, nesse período, foi autorizada pelo governo da Bahia, representando, portanto, uma política pública governamental. Isso difere da realidade de outros estados. No Mato Grosso, o desmatamento feito entre 2012 e 2017, ignorando infrações que aqui foram flexibilizadas, foi considerado ilegal em 97% dos casos”, afirma.

A flexibilização da legislação ambiental teve início com um decreto do governo estadual de 2014 (o de número 15.682), na gestão do senador e ex-governador Jaques Wagner, dispensando a exigência do licenciamento ambiental para empreendimento agrossilvipastoril. Foi, segundo a bióloga, um dos maiores retrocessos, abrindo caminho para a massiva concessão de ASVs, essas incorporadas como política governamental.

Em 2016, alertado para o desastre, o Ministério Público Federal chegou a recomendar que o governador Rui Costa revogasse o decreto, determinando que o Inema voltasse a atuar à luz da legislação vigente. O governo ainda não se manifestou. A conclusão do Imaterra sobre as concessões em massa de ASVs é um alerta sobre o avanço do desmatamento na Bahia, estado que desde 1985, conforme estudos incluídos no relatório, perdeu 23,1% do cerrado, 15% da mata atlântica e 11,6% da caatinga. No ano passado, segundo relatório anual de desmatamentos da edição 2021 do MapBiomas, divulgado no início deste mês, a Bahia passou a ocupar o quinto lugar no ranking nacional do desmatamento, com 152.098 hectares suprimidos, ou 9,19% da área desmatada do país.

Outro lado

Procurada pela reportagem, a Delfin Rio S/A informou em nota que “não teve acesso ao levantamento do Imaterra/UFBA, portanto desconhece as bases que levaram a tais suposições. A empresa nega veementemente todas elas e assegura que a supressão de vegetação realizada na região passou por um rigoroso planejamento e, posteriormente, vasto processo de licenciamento ambiental, trâmite que levou seis anos de análises nos órgãos ambientais de todas as esferas. Todos os procedimentos realizados estão integralmente documentados, vistoriados pelos órgãos competentes e rigorosamente dentro da legislação ambiental brasileira, inclusive o Ministério Público da Bahia verificou a legalidade da licença ambiental e não encontrou irregularidades”, diz a nota, que pode ser lida na íntegra.

A Fazenda Santa Colombo e Fazenda Tamarama, citadas no texto como a segunda e terceira que mais desmataram entre as 16 apontadas no levantamento, também foram procuradas pela reportagem mas não se manifestaram até a publicação. O mesmo ocorreu com o órgão ambiental da Bahia, o Inema, que não retornou o contato da reportagem. Caso se pronunciem, o texto será atualizado.

Créditos de imagens: José Cícero/Agência Pública
Fonte: Agência Pública


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