Ângela Carrato – Jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG.

A mídia corporativa brasileira parece ter descoberto o óbvio: Bolsonaro, além de mentiroso, é golpista.

Nos últimos dias, não faltaram manchetes de primeira página e nem editoriais indignados, com cobranças explícitas à comunidade política para que reaja “contra a escalada subversiva do presidente da República”.

Há três anos e meio que Bolsonaro trabalha contra o Brasil e contra a população brasileira. A exceção do setor financeiro e do agronegócio, todas as demais áreas foram desorganizadas ou destruídas por ele e sua equipe. Quase 700 mil pessoas morreram vítimas da covi-19, grande parte delas por causa do negacionismo deste governo. Por que essa indignação só agora?

Não resta dúvida que o episódio da convocação dos embaixadores estrangeiros por Bolsonaro para falar mal da democracia e do sistema eleitoral brasileiro foi algo inédito no mundo civilizado. Mas, vamos e convenhamos, não chegou a surpreender em se tratando de uma pessoa que tem protagonizado todo tipo de vexames, absurdos e barbaridades.

Fico imaginado, por exemplo, porque não houve qualquer indignação por parte da mídia corporativa brasileira quando Bolsonaro bateu continência para um funcionário dos Estados Unidos ou fez declaração de amor para um presidente estrangeiro? Essas também não foram demonstrações de “viralatismo”, desrespeito ao Brasil e à nossa soberania? Recuando um pouco mais no tempo, não foi atentado contra a democracia e a Constituição brasileira, Bolsonaro ter homenageado o torturador Brilhante Ustra, quando votou pela abertura do impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff? Ele não deveria ter sido preso?

O grotesco episódio dele com os embaixadores foi gravíssimo. Se as instituições estivessem funcionando, Bolsonaro deveria ser alvo de processo imediato. Se impeachment está descartado, por se tratar de um caminho longo demais às vésperas da eleição, e por ele estar blindado pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, há outras possibilidades. Só no episódio com os embaixadores, ele cometeu também crimes eleitorais: campanha antecipada e uso da TV Brasil, ambos passíveis de impugnação de candidatura pelo TSE.

Somem-se a isso crimes anteriores como as fake news utilizadas em sua campanha eleitoral de 2018, a atuação do “gabinete do ódio”, instalado no próprio Palácio do Planalto, e a sua permanente incitação à violência, com as “arminhas” e a defesa do porte de armas.

Essa indignação tardia da mídia pode ter outra motivação: tentar uma última cartada para emplacar a sua tão sonhada “terceira via”. É impossível não se pensar nisso, quando se observa que a mídia tem falado em defesa da democracia, criticado duramente Bolsonaro, mas nenhum jornal, emissora de rádio ou de televisão destaca o fato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva estar liderando todas as pesquisas de opinião, com chances cada vez maiores de vencer no primeiro turno.

Qual o motivo desta verdadeira espiral de silêncio em relação a Lula? Por que a mídia se recusa a noticiar que a campanha de Lula tem arrastado multidões por todos os lugares onde passa? Qual a razão desta mídia esconder as propostas de Lula para reconstruir o Brasil?

Não é novidade para ninguém que em 2018 Bolsonaro não era o candidato da mídia. Estimular o crescimento da candidatura dele foi um arranjo para neutralizar a de Lula. Como não deu certo, o jeito foi prender Lula, para tirá-lo do páreo. Alguns “barões” da mídia, como Edir Macedo, Sílvio Santos e Johny Saad, aderiram imediatamente a Bolsonaro. Já os irmãos Marinho e os Frias preferiram apostaram na “terceira via”.

Como a “terceira via” não decolou em 2018 e agora também não, tirar Bolsonaro do páreo pode ser a última cartada de alguns deles. Novamente, esses “barões”, que representam a classe dominante brasileira, não querem Lula e sonham com um candidato que tenha a mesma agenda econômica neoliberal de Bolsonaro e Guedes, mas saiba comer com garfo e faca e não os envergonhe em público.

Bolsonaro é inimigo da democracia, do Brasil e do povo brasileiro, mas não é o único. Quando a classe dominante insiste na tal da “terceira via”, no mínimo dá mostras de que não aceita a vontade popular. No passado, essa não aceitação deu no golpe iniciado por Aécio Neves contra a vitória de Dilma Rousseff. Golpe que prosseguiu com Temer e com a eleição “atípica” de Bolsonaro. A mídia aplaudiu tudo isso, mas não esperava ser engolida pela extrema-direita.

Se a indignação da mídia brasileira é sincera, no mínimo falta o mea culpa, porque ela é corresponsável por toda a tragédia que o Brasil vive desde 2016.