Sou colecionador de pequenas coleções, aquelas triviais, que dão lugar umas às outras e, na alternância, me refinei em uísque escocês e com muito gosto. Passei, educado, pela cachaça e acolho muitas garrafas, tantos de um, quanto de outra, o uísque e a cachaça são meus protegidos, mas, também, socorro, vez por outra, algumas ampolas de vinho. Colecionei armas de fogo, uns poucos carros antigos, peças artesanais chinesas, esculpidas no marfim, e colecionei desafetos. Criei cães de raça, adotei araras, gatos e tigres, mas não colecionei dívidas, e sequer moedas de ouro. Tenho filhos, em dois casamentos, mas não colecionei amores, e nem dores, aconteceram. Amigos, não colecionei, mas conquistei alguns; raros, sim, mas devotados. Não colecionei livros, infelizmente, mas colecionei derrotas mais do que vitórias, e aprendi a sofrer sofrendo, e depois não sofri mais, que chato, porque isso comprometeu a minha capacidade de aprender.

No aeroporto de Frankfurt, na Alemanha, embarcava de volta ao Brasil, com Xuxa, cadela da raça Rottweiler, que levei a Stammhein, na Floresta Negra, para acasalamento. Os cães nos permitem esse mimo, porque através do pedigree o tutor escolhe o padreador ou a matriz, mediante análise genética dos animais. Com filhos e filhas o pai acompanha namoro, noivado e comparece, sonâmbulo, à cerimônia na igreja, sem saber, sequer, o número da identidade das novidades e, quiçá, os seus nomes completos. E, infeliz do genitor que levantar questionamentos considerados indevidos.

Nevava, era noite, o aeroporto estava tumultuado e me dei por feliz, quando embarquei no Boeing 747, da Lufthansa. Na poltrona me recostei, como sobrevivente, por não falar inglês e tampouco o idioma alemão, do qual só me ocorria uma palavra: bundes, que soava familiar, e significa federal. Entretanto, nem tudo eram flores. O Comandante emitiu alerta pelo sistema sonoro, e de imediato as comissárias evacuaram a aeronave. A denúncia de bomba, coisa comum na Alemanha, soou aos meus ouvidos como ácido sulfúrico.

Na pista, foram as malas dispostas em paralelo e os passageiros convocados, um a um, para identificar as suas, que seriam restituídas ao porão da aeronave, vez ultrapassada a ameaça terrorista. Encontrei a bagagem, mas não a caixa de transporte da Xuxa, a cadela Rottweiler. Um desastre. Eu falava “my dog”, mas a palavra S U M I U , em inglês, me faltava. O vocábulo “disappeared” era o curinga do momento, cuja ausência me carimbou como o débil do voo, para quem a aeromoça olhava condoída. Um policial, do tipo “poseur”, chamado a ajudar, se apresentou educado e prontamente. Fora de controle e sentado na pista, falando embolado em portunhol e gesticulando em dó maior, a minha figura era sofrível. Naquele triângulo se inseriam o policial, a comissária da aeronave, e o profundo remorso que me possuía, por não dominar o idioma inglês, língua universal. Mas, como Deus ajuda os inocentes, o policial, fardado, que no peito ostentava várias insígnias, tinha ascendência latina e “hablava” o castelhano com desenvoltura. A caixa foi encontrada, Xuxa embarcou sob aplausos dos passageiros impacientes, para alívio do comandante, sendo festejada através das janelas do avião. No Brasil, pariu dez filhotes. Um deles recebeu o nome de DISAPPEARED , e outro de DÉBIL, um sucesso, a viagem.

Saímos de Curitiba bem cedo, de madrugada. Viajávamos num Mercedes Benz, fabricado em 1951, provido de enorme moldura frontal no radiador, carro muito charmoso. Fora reformado e se apresentava conservado, reluzente e quase novo. O modelo, parecido com o Ford do ano 29, tinha para-lamas enormes, que também serviam de estribos para motorista e passageiros. O carro recebeu alguns melhoramentos em São Paulo, sendo o trabalho finalizado em Curitiba, em oficina de tradição na reforma de antigos e renomada pela sua acuidade em exaurir o humor dos clientes, mormente por ela levados à beira da loucura.

A viagem transcorria lenta, face à densidade da neblina e mediante os cuidados devidos no tocante ao escorregadio da pista. A descida da serra, de Curitiba para Almirante Tamandaré, sempre perigosa e de intenso tráfego de caminhões, exigia atenção redobrada. Gentil ressonava, permitindo solavancos na distância entre o queixo e o pescoço. Eu falava sozinho, sem interlocução, enquanto o Gentil dormitava. Mas, estava de bom tamanho, porque era minha a escolha do tema, e o mesmo se restringia à neblina, que piorava em maturação e sinalizava perigo constante. Quanto mais dela reclamava, mais intensa a névoa se tornava. O carro, pela idade, não tinha muitos recursos e, com o para-brisa embaçado, o elegante e aplaudido Mercedes seguia viagem guiado mais pela intuição, do que pela direção.

Falando sozinho reclamei da oficina, porque o volante apresentava esterço muito curto, prejudicando a velocidade nas curvas acentuadas. As portas não fechavam corretas, provocando ruído e vibração excessivos, além da entrada de água da chuva, cúmplice da neblina, que encharcava o assento do motorista. Não gostei do freio, me parecia estranho, o pedal avançava afoito, em direção ao assoalho, e a sapata de borracha, que o calçava, estava solta e forçava contato direto e escorregadio com o metal. Contudo, estava feliz. Dirigia, alegre, o sonho do Mercedes antigo, charmoso, de época, cuja idade se avizinhava à minha. Gentil fizera diagnósticos sombrios sobre a viagem, mas se permitiu dormir, confiante não no carro, mas no motorista. Entre as suas pernas, apertado pelos joelhos, um guarda-chuva e, ao lado do banco, pacote de sanduiche, do tipo matula dos tempos de escola primária. Aquilo me soou esquisito, porque não era usual da parte dele. Parecia que o amigo estava se protegendo de imprevistos. Súbito, mediante aquaplanagem e um rápido descontrole na condução, Gentil acordou, em sobressalto. Reclamei de pronto da neblina, que me cegava a ponto de esconder, quase completamente, a estrada traiçoeira e escorregadia. Gentil, do alto do seu enorme nariz e com os olhos arregalados, gritou: Encosta!!! Encosta!!! Salta fora !!! O carro está pegando fogo!!!


Caio Brandão

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