O governo federal pretende retomar, nas próximas semanas, o diálogo com o Congresso Nacional para colocar novamente em pauta a regulação das plataformas digitais, segundo afirmou o secretário de Políticas Digitais da Presidência da República, João Brant. A proposta é atualizar o arcabouço legal que rege o funcionamento das chamadas big techs, diante do aumento dos casos de violência, desinformação e crimes virtuais cometidos nas redes sociais.

“O governo está finalizando sua posição de mérito e de estratégia. Nossa compreensão é que essa regulação deve equilibrar três pontos centrais: primeiro, a responsabilidade civil das plataformas; segundo o dever de prevenção, que implica agir antes que conteúdos ilegais e danosos se espalhem; e terceiro, a mitigação dos riscos sistêmicos relacionados à atividade dessas empresas”, afirmou Brant durante palestra na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) na última semana.

O principal projeto em discussão é o Projeto de Lei nº 2.630/2020, conhecido como PL das Fake News. Aprovado no Senado, o texto está em tramitação na Câmara dos Deputados, mas encontra dificuldades para avançar devido à falta de consenso entre os parlamentares.

Atualmente, as plataformas digitais operam sob o Marco Civil da Internet, em vigor desde 2014. De acordo com o Artigo 19 da lei, as redes sociais só podem ser responsabilizadas por conteúdos prejudiciais publicados por terceiros após o descumprimento de ordem judicial que determine sua remoção — com exceções, como casos de divulgação de conteúdo sexual não autorizado ou infrações de direitos autorais.

Na prática, a responsabilidade sobre o conteúdo postado nas redes sociais recai hoje sobre as próprias plataformas, que aplicam suas próprias políticas internas de moderação. Para Brant, essa autorregulação é insuficiente: “Em áreas como a regulação ambiental, estamos sempre atentos aos riscos sistêmicos. No ambiente digital, essas empresas atuam sem qualquer ônus ou responsabilidade proporcional aos danos que suas plataformas causam à sociedade”, afirmou.

A discussão sobre a regulação voltou a ganhar força após a divulgação de casos de violência contra crianças e adolescentes relacionados ao uso indevido das redes sociais. Para o governo, esse tipo de conteúdo expõe a urgência de mecanismos legais mais rigorosos. João Brant também apontou que fraudes e golpes disseminados digitalmente, muitas vezes patrocinados por anunciantes, são exemplos do descontrole atual. “Há plataformas que lucram diretamente com a veiculação de conteúdos fraudulentos”, afirmou.

Afonso Albuquerque, coordenador do Centro de Referência para o Ensino do Combate à Desinformação da Universidade Federal Fluminense (UFF), concorda que o atual cenário é insustentável e exige ação legislativa. “É preciso estabelecer regras de transparência algorítmica e fiscalizar como essas plataformas são financiadas. Hoje, temos empresas com enorme capacidade de interferência no debate público nacional operando num verdadeiro vazio legal”, alertou.

Albuquerque, contudo, avalia que a conjuntura no Congresso não é favorável para avanços imediatos no tema. Ainda assim, vê um elemento externo capaz de alterar esse quadro: os desdobramentos políticos envolvendo o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. “Há pouco tempo, essas plataformas estavam completamente alinhadas com os interesses do governo Trump. Agora, com as tarifas econômicas impactando os bilionários que o apoiam, o cenário se torna menos previsível”, observou.

O pesquisador também aponta que a postura das big techs, especialmente de figuras como Elon Musk e Mark Zuckerberg, ao interferirem em temas internos de diversos países, incluindo o Brasil, tem impulsionado uma reação internacional. “Há uma percepção crescente de que é necessário proteger a soberania nacional diante da atuação dessas empresas. A aliança de Musk com setores da extrema direita brasileira torna ainda mais visível o risco que essas plataformas representam para a democracia”, afirmou.

Para João Brant, os recentes embates entre Elon Musk e o Supremo Tribunal Federal (STF) foram um ponto de inflexão que reforçou a autoridade do Estado brasileiro e projetou sua posição internacionalmente. “O mundo todo estava observando. Quando o Brasil determinou a suspensão de serviços enquanto não fossem cumpridas ordens judiciais, demonstrou firmeza. E a situação terminou com Musk cedendo às exigências do Estado brasileiro. Foi um marco simbólico importante”, avaliou.

Segundo o secretário, esse episódio mostrou a outros países que é possível exigir o cumprimento das regras locais, e que não cabe às plataformas decidir quais leis seguir. “Ali ficou claro que os Estados nacionais podem, e devem, impor seus marcos legais. Foi uma virada de chave”, acrescentou.

Brant acredita que dois fatores podem contribuir para ampliar o apoio popular à regulamentação: a proteção de crianças e adolescentes, cada vez mais expostas aos riscos do ambiente digital, e o aumento dos casos de golpes financeiros disseminados nas redes. “São situações que atingem diretamente o cotidiano das pessoas e tornam evidente a necessidade de regras mais claras”, disse.

Afonso Albuquerque, por sua vez, defende que a solução não pode ser apenas nacional. Para ele, é urgente a criação de estruturas de governança transnacional, com normas pactuadas entre países e mecanismos internacionais de fiscalização. “A natureza global dessas plataformas exige respostas coordenadas. Sem isso, continuaremos lidando com riscos assimétricos e um desequilíbrio de poder entre empresas privadas e Estados soberanos”, afirmou.

Mesmo diante das resistências políticas, o governo acredita que o cenário atual oferece uma oportunidade para retomar o debate no Congresso. Com o avanço das discussões sobre soberania digital e a crescente pressão da sociedade por mais segurança online, o Executivo vê espaço para articular, novamente, a aprovação de uma legislação que regule de forma clara e eficaz as plataformas digitais no Brasil.

Foto: Bruno Peres/Agência Brasil


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