Enquanto argentinos marcavam 42 anos da guerra contra o Reino Unido nas Malvinas, chefe do Comando Sul do Exército dos EUA visitava a Casa Rosada. Ocupado, o arquipélago hoje é uma base da OTAN financiada com recursos naturais do Atlântico Sul, que ameaça toda a região, alertou analista à Sputnik Brasil.
A visita da chefe do Comando Sul do Exército dos EUA (SOUTHCOM), Laura Richardson, à capital argentina, em meio às celebrações dos 42 anos do início do conflito das Malvinas, pegou analistas argentinos de surpresa.
De acordo com o porta-voz da Presidência argentina, Manuel Adorni, a visita é uma prova das “relações excelentes que a Argentina vem construindo com os EUA”, conforme reportou a TeleSur.
General do Exército dos EUA e chefe do SOUTHCOM, Laura Richardson se reuniu com a alta cúpula militar argentina, incluindo o chefe do Estado-Maior, Nicolás Posse, e com o ministro da Defesa, Luis Petri.
A data da visita da representante do país que ajudou militarmente o Reino Unido a derrotar a Argentina no campo de batalha demonstra o forte alinhamento do governo de Javier Milei ao polo de poder anglo-americano, disse o professor de Relações Internacionais da Universidade Nacional de La Plata, Gabriel Merino.
“A administração Milei tem falado sobre deixar de lado a demanda argentina sobre as ilhas Malvinas. Não concordo com isso”, disse Merino. “A demanda sobre as Malvinas é importante para a defesa da Argentina, para a defesa do Atlântico Sul e do continente Antártico, que tende a ganhar importância geopolítica.”
A ocupação pelo Reino Unido das ilhas data de 1883, em contexto de expansão mundial do império britânico. Mesmo após a retirada de populações argentinas do arquipélago, Buenos Aires reivindica o território, não só em termos históricos, mas também por considerá-lo parte de sua plataforma continental.
“Hoje, as Malvinas são de fato uma base marítima da OTAN no Atlântico Sul. A população civil do arquipélago hoje é de cerca de 1.000 civis e 2.000 militares”, disse Merino. “Eles exploram riquezas naturais e hidrocarbonetos das ilhas para sustentar essa base. Então os recursos naturais do Atlântico Sul estão financiando a ocupação do Atlântico Sul.”
Segundo ele, o apoio de Washington à ocupação britânica das Malvinas demonstra a importância do polo de poder anglo-estadunidense, que inclui EUA, Reino Unido e suas ex-colônias, como Canadá, Austrália e Nova Zelândia. “E esse núcleo é a prioridade estratégica dos EUA”, disse Merino.
“Existe um conjunto de bases da OTAN na região, não só nas Malvinas. O Reino Unido possui um conjunto de possessões marítimas no Atlântico Sul, enquanto os EUA mantêm bases territoriais na América do Sul”, lembrou Merino. “Juntas, essas bases marítimas e territoriais de países rodeiam o Brasil.”
Neste contexto, a “manutenção das Malvinas como uma base, a militarização do Atlântico Sul e a presença de potências extrarregionais não são ameaças só para a Argentina, mas também para o Brasil”.
Interesse brasileiro
De fato, a política de defesa do Brasil tradicionalmente demonstra preocupação com a presença de potências extrarregionais no Atlântico Sul. Na eclosão da guerra das Malvinas, por exemplo, o Brasil forneceu apoio militar para Buenos Aires em detrimento do Reino Unido.
“O Brasil adotou o que o professor Moniz Bandeira chamou de neutralidade imperfeita durante a Guerra das Malvinas”, disse o cientista político e escritor Paulo Velasco. “O Brasil se mantém neutro do ponto de vista jurídico e formal, mas não se furtou a ajudar a Argentina, inclusive militarmente.”
Na ocasião, o governo do general Figueiredo estava em pleno processo de aproximação com a Argentina, para dissipar rivalidades que haviam se agudizado na década de 70. Em foros internacionais, o Brasil apoiou abertamente a causa argentina, pedindo o fim da ocupação britânica das Malvinas.
“Além disso, o Brasil enviou mísseis franceses Exocet para a Argentina e fechou o espaço aéreo para aeronaves militares britânicas”, relatou Velasco. “Até hoje, 42 anos depois, navios militares britânicos que estão a caminho ou regressando das Malvinas estão proibidos de parar em portos brasileiros.”
Segundo ele, a Guerra das Malvinas foi “a prova de fogo para o Brasil mostrar para a Argentina que queria uma parceria de fato, e não só no discurso”.
A opção dos EUA de apoiar militarmente o Reino Unido, apesar de publicamente ter adotado a neutralidade, teve consequências de longo prazo para confiança de países latino-americanos nos acordos de defesa liderados por Washington.
“Isso levou os países da região a tentarem cuidar eles próprios da sua segurança. Um exemplo disso é a liderança brasileira, dentro da ONU, para criar a ZOPACAS, para evitar uma corrida armamentista e instalação de armas nucleares no Atlântico Sul”, disse Velasco.
Criada em 1986, a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS), reúne Brasil, Argentina, Uruguai e países da costa atlântica africana em uma iniciativa de proteção da soberania sobre o Atlântico Sul.
“A ZOPACAS ainda busca neutralizar atividades mais hostis de potências externas à região, como o Reino Unido. Essa iniciativa pode ser considerada uma consequência do conflito nas Malvinas”, considerou Velasco.
Outra consequência estratégica significativa do conflito no arquipélago foi a redução drástica no poderio militar da Argentina a longo prazo.
“Ao fim do conflito, as partes assinaram o chamado Tratado de Madri, que impõe restrições a compra e desenvolvimentos de armamentos pelas Forças Armadas argentinas”, disse o professor da Universidade Nacional de La Plata, Gabriel Merino. “Essas restrições estão em voga até hoje e contribuíram para o processo de periferização da Argentina.”
Conhecido como o “Tratado de Versalhes” da Argentina, o Tratado de Madri, assinado por Buenos Aires e Londres em 1989 e 1990, ainda estipula restrições ao desenvolvimento da indústria naval argentina e garante benefícios para investimentos britânicos no país.
Atualmente, as Forças Armadas argentinas encontram-se mal equipadas, subfinanciadas e com baixa capacidade para defender o território nacional. De acordo com o artigo publicado no Jornal Militar do Reino Unido, “a Argentina deixou de ser uma potência militar capaz”.
Aos 42 anos do início da Guerra das Malvinas, a visita de Laura Richardson é um lembrete da posição dúbia de Washington em relação a Buenos Aires. Se, com uma mão, os EUA comemoram o investimento de US$ 625 milhões (cerca de R$ 3 bilhões) anuais na defesa do seu parceiro do Sul, com a outra, seguem apoiando as provisões do Tratado de Madri, que incapacitam as Forças Armadas argentinas estruturalmente.
“A questão das Malvinas ocupa um lugar importante no desenho geopolítico atlantista, encabeçado pela OTAN. E essa questão não é só de interesse argentino, mas de toda a região”, concluiu o professor da Universidade Nacional de La Plata.