Ângela Carrato – Jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG
À frente de uma comitiva de mais de 300 pessoas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deve embarcar, neste domingo, para uma viagem de cinco dias à China. O evento está cercado de muita expectativa, pois se espera que tenha início um novo patamar nas relações entre os dois países.
Além da ex-presidenta Dilma Rousseff assumir formalmente a direção do NDB, o banco de desenvolvimento do BRICS, o Brasil deverá integrar a chamada Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative), que já envolve 145 países e consiste em uma série de investimentos, sobretudo nas áreas de transporte e infraestrutura, bancados pela China.
A Argentina, em 2022, foi o mais recente país latino-americano a ingressar na Nova Rota da Seda, que conta com 44 países africanos, 42 da Ásia, 29 da Europa, 20 da América Latina e Caribe e 10 da Oceania. O ingresso do Brasil é considerado de suma importância, seja pelo peso geopolítico, seja pela urgente necessidade de capitais para ampliar e modernizar a infraestrutura de portos, ferrovias e transportes urbanos de alta velocidade, essenciais para a retomada do nosso desenvolvimento.
A ida à China é a terceira viagem internacional de Lula neste novo mandato, que já esteve na Argentina e nos Estados Unidos, deixando claro que suas prioridades externas envolvem tanto a América Latina e o Caribe, quanto o bom relacionamento com os Estados Unidos e a China.
O que deveria ser óbvio em se tratando de um país soberano e que retorna à cena internacional depois dos seis anos de apagão, patrocinado pelos golpistas Michel Temer e Jair Bolsonaro, está se transformando em verdadeiro cavalo de batalha.
A chamada de capa do jornal O Globo, na quinta-feira (23/3) ao assinalar que “a agenda de Lula na China pode gerar ruído com os Estados Unidos” aponta para possíveis problemas com a Casa Branca e o governo Biden. Notório porta-voz dos interesses dos Estados Unidos, como de resto toda a mídia corporativa brasileira, o jornal dos irmãos Marinho cumpre o lamentável e subserviente papel de pressionar Lula a se manter restrito à esfera de influência do Tio Sam.
O que a mídia corporativa brasileira parece não ter se dado conta é de que, nessa terceira década do século XXI, o mundo não guarda mais semelhança com aquele da “guerra fria”, que emergiu no pós-Segunda Guerra Mundial. Da mesma forma que não tem mais semelhança com o que prevaleceu entre 1991 e 2010, quando, após o fim da URSS, os Estados Unidos se transformaram em única potência.
Foi no governo Obama que a ficha dos Estados Unidos caiu. Tanto que, de lá para cá, seus sucessores, Trump e Biden, não têm feito outra coisa a não ser procurar recompor, não importando os meios, o poderio que tinham, em especial na América Latina, que sempre consideraram seu quintal.
O problema é que o governo dos Estados Unidos – seja ele democrata ou republicano – não raciocina em termos de efetivas parcerias. Ele acostumou a mandar e ser obedecido e tem muita dificuldade com relacionar-se de outra forma com os integrantes da comunidade internacional, em especial com os países ao sul do rio Grande. Enquanto isso, a China, que possui trajetória histórica bem diferente, tem se revelado um país voltado para a cooperação e o desenvolvimento no que se refere às relações tanto internacionais quanto comerciais.
Foram muitas as tentativas do Brasil sensibilizar a Casa Branca para a necessidade de parcerias visando o desenvolvimento do continente. No passado se destaca a Operação Pan-Americana, proposta por Juscelino Kubitschek que, no final dos anos 1950, tentou buscar o apoio dos Estados Unidos para o combate ao atraso na região.
Formalmente a Casa Branca aderiu, mas transformou a proposta de JK em outro projeto, a Aliança para o Progresso, que visava apenas o combate ao comunismo. É importante lembrar que, após a vitória da Revolução Cubana, em 1959, a política dos Estados Unidos para a América Latina pautou-se apenas pelo obsessivo combate ao comunismo.
Mais recentemente, em meados dos anos 1990, a Casa Branca tentou, outra vez, submeter a América Latina aos seus interesses, com a proposta da criação da Área de Livre Comercia das Américas (ALCA), que foi rejeitada pela maioria esmagadora dos países. Se tivesse sido aceita, ela simplesmente eliminaria a indústria local, com os países latino-americanos se transformando em mercados cativos para os produtos do “grande irmão do Norte”.
É por isso que a Nova Rota da Seda tem feito sucesso. Ao entender as relações internacionais como uma forma em que todos devem ganhar, a China tem conseguido que a maioria dos países adira ao seu projeto de desenvolvimento global. Os Estados Unidos poderiam fazer algo semelhante, mas, pelo visto, querem apenas manter o mando que historicamente os caracterizou.
Foi nos governos petistas que a relação do Brasil no mundo mudou de patamar. Além do apoio à criação da União das Nações Sul-Americanas (Unasul), visando integrar a América do Sul, o Brasil esteve na linha de frente da criação do BRICS, deixando nítido que pretendia também influir na cena global.
Como se sabe, a descoberta do pré-sal, possivelmente a maior reserva de petróleo do século XXI, e o ingresso no BRICS estão na raiz do golpe patrocinado pelos Estados Unidos, que derrubou Dilma Rousseff, criou a fraudulenta Operação Lava Jato, e colocou Lula na prisão, por 580 dias, sem quaisquer provas de que tenha cometido crime.
O que a Casa Branca não imaginava é que Lula conseguiria dar a volta por cima e retornar à presidência da República.
O contexto mundial neste início de terceiro governo Lula, no entanto, não deixa de ser bastante desafiador. Se, por um lado, o mundo multipolar já é realidade, não se pode perder de vista que nenhuma potência aceitou o declínio de forma pacífica. Antes da derrocada, por exemplo, o Império Romano patrocinou inúmeras guerras. O mesmo pode ser dito em relação à França, Inglaterra e, agora, aos Estados Unidos.
A guerra na Ucrânia, na realidade um conflito entre os Estados Unidos/OTAN e a Rússia, talvez seja, nos dias atuais, o melhor exemplo.
A Casa Branca não aceitou que a Rússia se transformasse em principal fornecedor de petróleo e gás para a Europa, através do oleoduto Nord Stream. Considerava que seria ampliar demais o poder da Rússia sobre o velho continente, sem falar que queria substituir a Rússia na venda desse petróleo e gás.
O resultado é conhecido: a Europa foi jogada numa guerra, cujos objetivos são tentar derrotar a Rússia, submeter a própria Europa aos seus interesses e abrir caminho para o enfrentamento direto com a China.
Vale observar que a mídia brasileira, tão preocupada em servir aos seus senhores em Washington, continua omitindo do seu “respeitável público” que um dos mais importantes jornalistas investigativos dos Estados Unidos, Seymour Hersh, em reportagem independente publicada em 8 de fevereiro, responsabilizou Bide e os serviços secretos dos Estados Unidos pela sabotagem que destruiu o gasoduto Nord Strem2. Destruição que obrigou os europeus, em especial a Alemanha, a comprar gás dos Estados Unidos, pagando cinco vezes mais caro.
Os Estados Unidos se valem de todo tipo de ação quando consideram que seus interesses estão em jogo. Detalhe: até o momento Biden não refutou, com dados, o minucioso relato apresentado por Hersh.
Não é novidade para ninguém que a guerra híbrida dos Estados Unidos contra a China já é realidade.
É neste delicado cenário que o governo Lula precisará se mover.
Para o Brasil, as parcerias com a China são não só importantes, como necessárias e desejáveis. Não é mais possível que um país que, há 50 anos, apresentava um grau de desenvolvimento superior ao da China, tenha ficado tão para trás. Mais ainda: em 2010, no final do segundo governo Lula, a pauta de exportação do Brasil para a China incluía a venda de aeronaves da Embraer. Pauta que, nos últimos anos, regrediu ao mero fornecimento de commodities, nome pomposo para a exportação de produtos primários como soja e minério de ferro.
Para se desenvolver e enfrentar as desigualdades que marcam o Brasil, as parcerias com a China são muito bem vindas. Se os Estados Unidos quiserem disputar o Brasil, ótimo! Basta oferecer parcerias que atendam aos nossos interesses, como a China está fazendo.
Mas não. Os Estados Unidos não tem interesse no nosso desenvolvimento – não querem nenhum país lhes fazendo sombra no continente – e ainda tentam sabotar.
A notícia/advertência dos irmãos Marinho foi antecedida por reportagem publicada pelo serviço de imprensa da britânica BBC, na terça-feira (21/3). Sob o pretexto de abordar a preocupação do governo Biden com a ida de Lula à China, a publicação inglesa informa que a comissão de relações exteriores do Senado dos Estados Unidos convidou autoridades do governo Biden para uma discussão sobre o “futuro das relações entre os Estados Unidos e o Brasil”. É a primeira vez em anos que o Legislativo estadunidense toma tal iniciativa.
Na audiência, congressistas republicanos e democratas, além de membros do Executivo, expressaram “mal-estar” com a aproximação entre Brasil e China. Em outra “reportagem”, a BBC revelou “estranheza” com o fato de empresários que foram denunciados pela Operação Lava Jato integrarem a comitiva do presidente Lula na viagem à China.
Está de volta a velha e manjada ingerência dos Estados Unidos na vida do governo brasileiro. Como se sabe, Inglaterra e Estados Unidos são como irmãos siameses em termos de política externa e o que um não quer dizer diretamente, o outro diz. Ainda na “reportagem” da BBC, é perguntado se “o governo Biden está fazendo o suficiente para desencorajar países como Brasil a buscarem investimentos e comércio com a China”. A tal “reportagem” ainda cita um senador republicano que teria lembrado a Doutrina Monroe, de 1823, para “alertar a China contra interferência no Hemisfério Ocidental”.
Diante desse quadro, começa a fazer sentido aquela aparentemente estapafúrdia pergunta, na pesquisa IPEC, divulgada na semana que passou, sobre o temor do comunismo no Brasil. Para 44% dos ouvidos, o presidente Lula pode implementar um regime comunista no país, mesmo o país não estando vivendo nenhuma revolução e Lula ser um conciliador e líder socialdemocrata!
O discurso sobre a existência de um inimigo comunista sempre foi utilizado pelos Estados Unidos e aliados para impedir o desenvolvimento do Brasil. Foi por causa de um suposto comunismo que o Tio Sam apoiou o golpe militar de 1964, que mergulhou o país numa noite que durou 21 anos. Foi temendo o desenvolvimento brasileiro que a Operação Lava Jato, apoiada pela CIA, FBI, Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ) e “deep state” destruíram as empreiteiras brasileiras, a indústria naval e jogaram o país na crise em que ainda se encontra.
Agora, que o Brasil, com Lula, busca recuperar o tempo perdido, a mídia entreguista e seus patrões nos Estados Unidos e na Inglaterra, começam a enviar recados, advertências e até a acenar com a volta do big stick. Dizem inclusive que vão “acompanhar de perto” a viagem de Lula. Que acompanhem!
Nós, brasileiros, também vamos acompanhar de perto as tentativas dessa turma para tentar sabotar o nosso desenvolvimento. E elas serão denunciadas.