Quarenta anos após a redemocratização, o Brasil assiste a um movimento de redução no número de partidos com representação no Congresso, que pode, até 2026, aproximar o cenário partidário ao das eleições de 1986. Naquela disputa, a primeira com voto direto após o fim da ditadura militar, o pluripartidarismo teve um papel crucial na transição democrática, mas resultou em desafios para a governabilidade. Ao todo, 12 partidos conquistaram cadeiras na Câmara dos Deputados. Atualmente, há 16 bancadas na Casa, incluindo três federações partidárias, mas a cláusula de barreira tem levado ao menos cinco partidos a discutir fusões e incorporações, acelerando o enxugamento do quadro político.
Especialistas avaliam que o pluripartidarismo, junto com a Lei da Anistia e o fim do AI-5, foi essencial para o desmantelamento da ditadura. Durante o regime militar, o bipartidarismo dominou entre 1966 e 1979, com apenas a Arena, base do governo, e o MDB, que representava a oposição consentida. O fim da ditadura possibilitou o surgimento de novos partidos, ampliando o leque de representatividade. No entanto, a fragmentação trouxe dificuldades para a construção de coalizões governamentais. Em 2018, o Brasil chegou a ter 35 partidos registrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), dos quais 30 elegeram representantes para a Câmara — o recorde histórico. Desde então, as mudanças nas regras de acesso a recursos de campanha e o fim das coligações proporcionais têm levado à redução desse número. Hoje, há 29 partidos formalmente registrados.
Apesar da diminuição de legendas, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) enfrenta dificuldades para formar uma base parlamentar coesa, algo que não ocorreu com a mesma intensidade em seus dois primeiros mandatos, em 2002 e 2006. Naquelas eleições, o PT e o PMDB (hoje MDB) eram as maiores forças da Câmara, com cerca de 90 deputados cada um. O cenário se alterou à medida que a fragmentação aumentou, reduzindo a capacidade de articulação do Executivo. Em 2022, o PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, elegeu 99 deputados, tornando-se a maior bancada da Casa — um fenômeno raro, já que opositores do governo geralmente não ocupavam esse posto.
A cientista política Joyce Luz, pesquisadora do Cepesp/FGV-SP, destaca que a retomada do pluripartidarismo na década de 1980 ajudou a enfraquecer a Arena, mas a fragmentação dificultou a governabilidade. “O principal desafio hoje não é apenas a pulverização partidária, mas a crescente distância ideológica entre um Executivo mais à esquerda e um Legislativo mais à direita, onde o centro político perdeu força”, analisa.
Desde o governo Bolsonaro, o Centrão consolidou-se como o principal fiador da governabilidade, sendo um bloco informal de parlamentares que negocia apoio em troca de benefícios políticos. “O Legislativo passou a ter um alicerce suprapartidário, sem a coesão que antes era garantida pelos líderes de cada legenda”, explica Luz.
Leonardo Weller, historiador e coautor do livro Democracia negociada — Política partidária no Brasil da Nova República, lembra que o termo “Centrão” surgiu no período pós-ditadura para designar a aliança entre siglas pequenas, como PL, PSC e PDC, e partidos maiores da direita, como PFL e PDS. Essas legendas formaram uma frente que, ao longo dos anos, manteve-se influente nos bastidores da política nacional. O PMDB, maior bancada da época, também tinha em suas fileiras uma ala conservadora que, mais tarde, seria integrada ao Centrão.
“O Centrão era, na verdade, o ‘Arenão’ disfarçado. Com o tempo, Bolsonaro assumiu o espaço que antes era do PSDB como principal polo da direita, tornando o cenário mais radicalizado. No entanto, muitos desses partidos ainda integram a base do governo, como aconteceu nos mandatos petistas anteriores”, explica Weller.
O historiador destaca que a relação entre Executivo e Legislativo também foi impactada por mudanças fiscais e legislativas desde 2015, especialmente com a obrigatoriedade do pagamento de emendas parlamentares. “O governo disputa uma fatia cada vez menor do Orçamento com o Congresso, o que dificulta a negociação política”, pontua.
O ex-presidente da Câmara Arlindo Chinaglia (PT-SP), deputado federal desde 1995, destaca que a fragmentação partidária foi uma consequência direta da redemocratização e do enfraquecimento de grandes partidos. Ele vê, no entanto, uma guinada mais recente à direita como um fator adicional de instabilidade. “Antes, a direita não se assumia como tal, tanto que na Constituinte se criou o termo Centrão para suavizar essa identificação. Mas, nos últimos anos, o Congresso tem caminhado para posições cada vez mais conservadoras”, afirma.
Leonardo Weller destaca que a pulverização partidária acelerou-se nos anos 1990 devido a incentivos da legislação eleitoral, como o acesso a recursos do fundo partidário e o tempo de propaganda na televisão. A regra de coligação proporcional também permitia que pequenos partidos se beneficiassem ao formar alianças com siglas maiores, ampliando sua representação sem necessariamente contar com uma base eleitoral significativa.
A partir de 2017, o Congresso aprovou uma série de mudanças para reduzir a fragmentação, como a criação do fundo eleitoral e a imposição da cláusula de barreira. Essas regras exigem que os partidos atinjam um percentual mínimo de votos e deputados eleitos para continuar recebendo financiamento público. Além disso, o fim das coligações proporcionais, a partir de 2020, restringiu ainda mais o espaço para legendas menores.
A cientista política Joyce Luz explica que essas mudanças criaram um ambiente favorável para fusões partidárias. “Se você tem menos partidos, isso tende a aglutinar as preferências do Congresso, facilitando a articulação política”, afirma.
Para Cláudio Cajado (PP-BA), deputado em seu oitavo mandato, a redução do número de partidos é benéfica, pois diminui o peso das chamadas “legendas de aluguel” — partidos que sobreviviam apenas para negociar tempo de televisão e recursos do fundo eleitoral. No entanto, ele defende medidas que aumentem a coerência partidária dentro das siglas.
“Um deputado não pode ocupar cargos na Mesa Diretora, presidir comissões ou relatar projetos defendendo posições totalmente opostas ao programa do partido pelo qual foi eleito”, argumenta Cajado.
O cenário partidário brasileiro ainda está em transformação, com a cláusula de barreira promovendo uma fusão gradual das legendas. O número de partidos com representação na Câmara tende a se aproximar do patamar das eleições de 1986, quando havia 12 siglas no Congresso. Apesar da redução, a governabilidade segue desafiada por um Legislativo cada vez mais independente e ideologicamente diverso.
O pluripartidarismo, fundamental na redemocratização, continua sendo um elemento central na política brasileira, mas sua reconfiguração aponta para um modelo menos fragmentado e, potencialmente, mais previsível no futuro.
Com informações de O Globo.
Foto: Arquivo/Senado